Opinião

Anacronia da TR e seus efeitos colaterais: confisco e desigualdade

Autor

  • Celso Alves Feitosa

    é advogado especialista em Direito Tributário consultor jurídico sócio fundador de Alves Feitosa Advogados Associados ex-juiz do TIT-SP (1988 a 2015) e ex-conselheiro no Conselho de Contribuintes/Carf (1987 a 2004).

10 de setembro de 2022, 11h23

"Os direitos fundamentais do homem não foram elencados na Constituição apenas para serem formalmente reconhecidos mas para serem concretamente efetivados" (Celso Antônio Bandeira de Mello [1])

As reflexões que se seguem alcançam os relevantes, e supremos, direitos individuais à propriedade e à igualdade, consagrados pela Constituição Federal, em seu artigo 5º, XXII e "caput", respectivamente, e que estão sendo, em meio à utilização da taxa referencial (TR) como método indicador para a correção da moeda, gradativamente desprezados nos últimos tempos.

Aliás, quanto ao termo propriedade em si considerado, já nos ancorando nas lições de José Afonso da Silva, "não constitui uma instituição única, mas várias instituições diferenciadas, em correlação com os diversos tipos de bens e de titulares, de onde ser cabível falar não em propriedade, mas em propriedades" [2].

Nesse sentido, então, o dinheiro, ou o capital pecuniário, insere-se na composição da propriedade de seu respectivo titular, interessando-nos, nessa peleja, o dos administrados, a merecer, portanto, total proteção em face de seu eventual abuso, sobretudo por ingerência do Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob pena de configuração natural do temerário instituto do confisco.

Da mesma forma, o capital pecuniário dos administrados há de ser preservado em meio a um absoluto estado de igualdade sobretudo entre eles próprios, administrados, mormente quando tal dinheiro venha a ser custodiado, por alguma razão, e, de forma imposta, pela própria gestão pública.

Premissas devidamente consignadas, cabe-nos, agora, vinculá-las diretamente ao objeto eleito para debate, consubstanciado nas vicissitudes da denominada TR, instrumento de desindexação da economia e, como dito, indicador de correção monetária, instituído pela Lei nº 8.177/1991, associando-a, para melhor compreensão, a casos práticos, recorrentes, que bem vêm a demonstrar um viés altamente confiscatório e não igualitário que tal taxa tem assumido em meio ao capital pecuniário de administrados que o transferem (tal capital), por eventualidade e circunstâncias legais, à gestão pública, sem qualquer possibilidade de anuência sua.

Servem-nos, aqui, como exemplos, os casos de bloqueios judiciais de ativos financeiros pela Justiça Federal, encaminhados à Caixa Econômica Federal, custodiados na forma das normas financeiras que regem o Banco Central e o Tesouro Nacional, e que, anos após, retornam aos seus titulares, administrados, por não comprovação de acusações sobre eles efetivadas, por exemplo, em ações de improbidade administrativa, em meio, contudo, a uma aritmética financeira de atualização da moeda totalmente em seu desfavor, causando a repudia de seus titulares e, sobretudo, do próprio Direito, porquanto irrisória a variação monetária produzida pela TR nos últimos anos, em confronto com outras indicadores inflacionários. Tomado o período compreendido entre 2017 e 2021, as diferenças são plenas: 33,93%-Selic; 29,77%-IPCA; 63,34%-IGPM; 31,32%-INPC; 33,90%-CDI e 6,948%-TR.

Essa repudia, aliás, ganha contornos de relevância e de razoabilidade, máxime quando nos apoiamos na interpretação do fenômeno jurídico sob o viés da tridimensionalidade do Direito (MIGUEL REALE), cuja teoria, ao fim, propõe-se a uma plena efetividade das normas jurídicas.

Quando a referida teoria evoca e correlaciona três fatores interdependentes a tomarem o Direito, de forma uníssona, como fato, norma e valor, está-se, no fundo, dizendo que o Direito apenas se constrói adequadamente numa estrutura axiológico-normativa justificada em determinado tempo e contexto, ou seja, num plano histórico-cultural que torne a interpretação jurídica razoável e efetiva para os fins a que se propõe, que nada mais é do que concretizar a justiça.

Por certo, então, tomados os três elementos acima aludidos (fato, norma e valor), percebemos um absoluto destempo da TR, quando imputada às referidas situações jurídicas alusivas à devolução de valores (ativos financeiros) que estavam bloqueados nas exemplificativas ações de improbidade administrativa, aos seus titulares, administrados, descompasso esse causador de implacável corrosão no patrimônio pecuniário anteriormente bloqueado, maculando os já aclamados direitos individuais à propriedade e à igualdade dos administrados.

De fato, ao receberem os seus valores de volta, os seus titulares os veem absolutamente diminuídos e, portanto, confiscados, em confronto com o que poderiam ter obtido via outros índices de correção monetária, já referidos ou, caso os tivessem, por exemplo, submetido, até mesmo, a fundos de investimentos de suas pessoais preferências, cujos rendimentos ofertados se poriam em absoluta superioridade econômico-financeira em comparação com a malfadada e inexpressiva TR, incapaz de efetivar qualquer equilíbrio mínimo em meio a só variação monetária ínfima que produz.

Operar com a TR, sem qualquer manifestação volitiva espontânea dos administrados, titulares de dado capital pecuniário, portanto, representa infundada injustiça sobre eles, que se viram forçados a ter as suas riquezas, ao longo dos anos, não só não recompostas, por meio de índices inflacionários maiores, coexistentes, como ainda, privadas de produção de novas e maiores riquezas, que poderiam ter advindo de outras fontes de investimentos, como fundos e títulos mais expressivos, mercado financeiro etc., o que bem estampa o confisco na propriedade de tais administrados.

O nível de disparidade causada pela TR, como indicador de correção monetária, é tão grande, que, não fosse somente o próprio desequilíbrio financeiro dela decorrente, tem-se que acaba gerando, também, uma gritante desigualdade entre os próprios administrados, tomando-se aqui como parâmetro outros administrados que levantam valores depositados judicialmente em litígios, porém, de natureza tributária, e que veem o seu capital pecuniário atualizado, ao menos, pela Taxa Selic, o que não se mostra em nada razoável mormente quando a moeda a se atualizar é a mesma, e, em tempos que também são iguais, situação que vai de encontro com a Constituição Federal, porquanto a isonomia não está nela, mas é ela própria (José Souto Maior Borges), não havendo fator de discrímen algum para que os administrados em tal tema, de correção monetária, pudessem sofrer diferenciações (Celso Antônio Bandeira de Mello).

A TR é verdadeiro instrumento nonsense, que, na ânsia de corrigir o poder aquisitivo da moeda, acaba, hodiernamente, por corroê-la, absorvendo parte considerável do valor da propriedade que detinha até sua transferência à ingerência pública, aniquilando, com isso, o capital pecuniário de seus titulares.

Não há mais espaço histórico-temporal para sua utilização, salvo em se oprimindo a essência da tridimensionalidade do Direito tal como acima aludida (Miguel Reale), sendo que insistir-se na aplicação atual da TR significaria malferir, de morte, a mais adequada aplicação do Direito, dando espaço à extirpação da propriedade representada pelo capital pecuniário do administrado, frente a desvalorização da moeda, no tempo, valendo aqui consignar que "enquanto houver inflação, a correção monetária se impõe para que o Direito não nos leve a cometer injustiças. Não sacrifiquemos a Justiça a mitos, principalmente a mitos ultrapassados" (Arnoldo Wald).

Essa, justamente, a grande base da teoria tridimensional do Direito, em que de nada vale o Direito, se suas normas não acompanharem o momento histórico a que se inserem, mormente, este, atual, onde não cabe, ou, não deveria caber, lugar à imposição aos administrados, de sujeitarem-se ao confisco explícito de seu capital pecuniário, tolhendo o poder de aquisição de seus patrimônios, da forma como tinham antes de sua sujeição à gestão deles pelo Estado, tal como se vê em meio à TR, que capacidade alguma tem para refletir a variação do poder aquisitivo da moeda atualmente, a despeito de, no passado, poder ter cumprido com os seus fins.

Sua capacidade presente, na verdade, tem sido a de gerar enormes prejuízos patrimoniais aos detentores de capital pecuniário à tal taxa submetidos. Se benefícios a TR gera, assim o é apenas para o banco, Caixa Econômica Federal, que gere os depósitos judiciais de ativos financeiros bloqueados pela Justiça Federal, e que os utiliza no mercado financeiro a peso de ouro.

A TR, enfim, por sua variação inexpressiva nos últimos anos, vai na contramão, portanto, da justiça financeira diante de titulares de capital pecuniário que os veem sendo, sem qualquer anuência ou participação sua, a ela submetidos, em detrimento de outras formas mais expressivas que vigem para fins de recomposição do valor de compra da moeda (Selic, IPCA, IGP-M, INPC, etc.), que veem flutuando em níveis de correção consideravelmente mais altos e próximas da realidade inflacionária do país, ou, de formas mais robustas de investimentos, propriamente ditos, oferecidas no mercado.

Cabe ao judiciário, enfim, a readequação de tais incongruências, a exemplo do que já vem ocorrendo em meio ao levantamento do FGTS do que já se viu diante do pagamento de precatórios, em que a TR vê-se afastada, num encontro de contas, então, mais compatível com os desideratos de justiça de nossa própria Constituição Federal, que, nunca é demais rememorar, não se constitui como um mero repertório ou repositório de recomendações ao seu intérprete, mas, antes, um conjunto de normas a serem efetivamente concretizadas (Roque Carrazza), não podendo a TR tornar ilusórios os primados da propriedade e da igualdade, sob pena de desembocar, ao fim, na indesejada falta de justiça aos administrados.


[1] Eficácia das Normas Constitucionais e Direitos Sociais, 1ª ed., 2ª tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.

[2] Curso de Direito Constitucional Positivo, 16ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, p. 277.

Autores

  • é advogado especialista em direito tributário, consultor jurídico, sócio-fundador de Alves Feitosa Advogados Associados, ex-juiz do TIT-SP (1988 a 2015) e conselheiro no Conselho de Contribuintes/Carf (1987 a 2004).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!