Seguros Contemporâneos

Sistematização do aviso do sinistro ao segurador (parte 2)

Autor

  • Daniel Dias

    é professor da FGV Direito Rio doutor em Direito Civil pela USP com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado (Alemanha) estágio pós-doutoral na Harvard Law School (EUA) advogado e consultor jurídico.

8 de setembro de 2022, 8h00

Introdução
Na primeira parte dessa coluna iniciei o estudo do aviso do sinistro ao segurador, mais especificamente analisando criticamente e sistematizando os requisitos para a perda do direito à indenização por inobservância da incumbência do segurado de informar o segurador da ocorrência do sinistro.

Foram enfrentados, naquela oportunidade, os dois primeiros requisitos: (1) ocorrência do sinistro e (2) ciência (efetiva ou potencial) do sinistro pelo segurado. Seguimos agora para os três últimos.

(3) Não participação do sinistro ao segurador, logo que o soube: culpa do segurado (omissão injustificada)

Um terceiro requisito é a não participação do sinistro ao segurador, "logo" que o segurado soube da sua verificação.

Mas o que significa essa exigência? A previsão é objetiva e o segurado precisa agir imediatamente, haja o que houver? Ou ela abre espaço para uma análise subjetiva, que leve em consideração as circunstâncias do caso e o comportamento do segurado, de modo a aferir se houve ou não justificativa para sua omissão ou demora, se houve ou não culpa da sua parte em não informar ou em informar tardiamente?

No CC/1916, a previsão do caput do artigo 1.457 era entendida de maneira objetiva. Segundo J. M. Carvalho Santos, tratava-se de exigência de comunicação imediata: "o aviso deverá ser dado imediatamente, desde que a notícia do sinistro tenha chegado ao conhecimento do segurado, nada obstando que outro maior prazo seja estipulado na apólice" [1].

Por outro lado, havia no parágrafo único do artigo 1.457 um requisito adicional, de ausência de justificativa da omissão, o que permitia que se analisasse o comportamento do segurado, se agiu ou não culposamente. Assim, segundo o mesmo Carvalho Santos, "a omissão injustificada, diz o texto legal, deixando ver claramente que se o inadimplemento da obrigação de avisar a verificação do sinistro resultar de fôrça maior ou caso fortuito, em hipótese alguma poderá legitimar a recusa da Companhia em pagar a indenização. Mas, para tanto, é essencial que o segurado prove o caso fortuito" [2].

No CC/2002, a previsão do parágrafo único do artigo 1.457 não foi repetida. E quais são as implicações disso? A intenção do legislador foi de objetivar a exigência de conduta do segurado, de modo a que ele precise informar o segurador imediatamente, aconteça o que acontecer?

Uma tal leitura seria excessivamente rigorosa com o segurado e deve ser repelida. Por outro lado, doutrina e jurisprudência têm caminhado em direção diametralmente oposta e vêm consagrando o entendimento de que a omissão precisa ser dolosa ou decorrente de culpa grave do segurado.

Segundo José Augusto Delgado:

"A conclusão a que chegamos é no sentido de que o art. 771 do Código Civil de 2002 deve receber da jurisprudência uma interpretação harmônica com os objetivos do contrato de seguro. A literalidade do seu conteúdo não deve ser empregada com a força cogente que, ao primeiro exame, parece possuir.

[…]

O segurador, na nossa opinião, para se liberar da obrigação de pagar a indenização, tem o ônus de provar a omissão dolosa ou culposa, esta de forma grave, do segurado, bem como a expansão do dano" [3].

O STJ tem aplicado esse entendimento. Em 2016, o tribunal julgou caso em que o autor teve o seu carro roubado, sinistro coberto pelo contrato de seguro de automóvel, mas demorou três dias para comunicar o evento à seguradora. Esta indeferiu o pedido administrativo do segurado à indenização. Com base no artigo 771 do CC/2002, alega que "o atraso na notificação do sinistro é causa de perda do direito à indenização securitária" [4].

O ministro Ricardo Villas Boas Cuêva, relator do caso, em face do artigo 771, afirmou:

"Desse modo, é ônus do segurado comunicar prontamente ao ente segurador a ocorrência do sinistro, já que possibilita a este tomar medidas que possam amenizar os prejuízos da realização do risco bem como a sua propagação.

Todavia, não é em qualquer hipótese que a ausência da pronta notificação do sinistro acarretará a perda da indenização securitária; isto é, a sanção não incide de forma automática.

Com efeito, para tanto, deve ser imputada ao segurado uma omissão dolosa, que beire a má-fé, ou culpa grave, que prejudique, de forma desproporcional, a atuação da seguradora, que não poderá se beneficiar, concretamente, da redução dos prejuízos indenizáveis com possíveis medidas de salvamento, de preservação e de minimização das consequências" [5].

Assim, complementa o ministro Cuêva, "se existirem fatos relevantes que impeçam o segurado de promover a comunicação de sinistro e o acautelamento de eventuais consequências indesejadas — a exemplo de providências que lhe possam causar efeitos lesivos ou a outrem —, não há como penalizá-lo com a drástica sanção de perda do direito à indenização, especialmente considerando a presença da boa-fé objetiva, princípio-chave que permeia todas as relações contratuais, incluídas as de natureza securitária" [6].

O ministro Cuêva chega a essa conclusão através de uma interpretação sistemática do artigo 771 "com as cláusulas gerais da função social do contrato e de probidade, lealdade e boa-fé previstas nos arts. 113, 421, 422 e 765 do CC, devendo a punição recair primordialmente em posturas de má-fé ou culpa grave, que lesionem legítimos interesses da seguradora" [7].

Com base nisso, retornou o ministro Relator ao caso:

"Na espécie, não houve má-fé ou omissão injustificada do segurado quanto ao atraso na comunicação do aviso de sinistro, de modo que não merece ser sancionado com a perda do direito à indenização securitária.

De fato, o atraso de 3 (três) dias para informar o roubo do automóvel se deu em razão de ameaças de morte feitas pelo criminoso quando da subtração do bem à mão armada no interior da residência da própria vítima. Na ocasião, o meliante havia prometido ao segurado “retornar para matar seus familiares, ordenando que não comunicasse a polícia por pelo menos uma semana" (fl. 560).

Assim, o temor de represálias era real e não seria razoável exigir do segurado comportamento diverso, que poderia colocar em risco não só sua segurança mas também de sua família [8].

Da lição doutrinária e decisão judicial percebe-se que, mesmo sem a previsão análoga à do parágrafo único do artigo 1.457, a exigência de omissão injustificada acabou retornando. E retornou agravada. Não bastaria omissão culposa, como era o caso, ter-se-ia agora de haver omissão dolosa ou por culpa grave.

Não há, porém, base legal ou sistemática para essa interpretação. Do ponto de vista legal, a situação atual seria aparentemente mais rigorosa para com o segurado do que era sob a vigência do CC/1916, pois houve a supressão do requisito da "omissão injustificada".

Por outro lado, pelas regras gerais do direito das obrigações, o CC/2002 na realidade estabelece uma interpretação e aplicação conjunta do art. 771 com o artigo 392, norma geral do inadimplemento das obrigações, a qual prevê que, "nos contratos onerosos, responde cada uma das partes por culpa". E os argumentos apresentados não são capazes de agravar regramento legal expresso e findam por violá-lo.

A omissão do segurado, portanto, precisa ser culposa, com base na aplicação conjunta dos artigos 771 e 392, e não necessariamente decorrente de dolo ou culpa grave.

(4) Prejuízo para a seguradora pela falta ou demora na comunicação
A doutrina e a jurisprudência têm defendido mais um requisito: a não comunicação do segurado, logo que soube do sinistro, tem de ter gerado prejuízo para a seguradora. Ou seja, tem de ficar demonstrado que, caso tivesse sido avisada prontamente, a seguradora teria efetivamente podido evitar a ocorrência ou agravamento de consequências do sinistro.

Como visto, esse requisito era presente no parágrafo único do artigo 1.457 do CC/1916, mas não foi repetido no CC/2002. Curiosamente, apesar disso, ele simplesmente retorna sendo construído pela doutrina e jurisprudência.

José Augusto Delgado leciona:

"A ausência de comunicação, por exemplo, sem qualquer conseqüência, não deve ser levada ao extremo de, por si só, outorgar direito ao segurador de se liberar do pagamento da indenização.

Essa postura, caso adotada, ficará distante da finalidade para a qual o seguro é contratado e gerará, conseqüentemente, benefícios ao segurador que fogem da essência do negócio jurídico firmado" [9].

O STJ também aplica esse entendimento. No caso narrado acima, em que o segurado demorou 3 dias para informar a seguradora, apesar dessa demora, o carro acabou sendo recuperado, "inexistindo consequências negativas à seguradora com o ato omissivo de entrega tardia do aviso de sinistro" [10].

O reconhecimento desse requisito faz sentido e está ligado à finalidade do artigo 771. A incumbência de informar do segurado não é uma exigência formal. De fato, serve ao propósito de permitir à seguradora a possibilidade de evitar, ou atenuar, as consequências do sinistro. Se uma tal possibilidade não havia de fato, não faz sentido sancionar o segurado. Essa sanção, numa tal hipótese, seria inteiramente formal, materialmente vazia.

Então, se a não participação do segurado ao segurador, logo que soube do sinistro, não prejudicou o segurador, o segurado não perde o direito à indenização. Chega-se a isso através de uma interpretação teleológica do artigo 771.

(5) Necessidade ou interesse do aviso
Por fim, desde o CC/1916, a doutrina defendia que a incumbência do segurado de informar o segurador da ocorrência de sinistro "desaparece desde que se torne supérfluo qualquer aviso, pela notoriedade do fato, ou quando, pela espécie do seguro, não tenha a Companhia interesse algum em ser avisada imediatamente da ocorrência, como, por exemplo, no seguro sobre vida" [11].

O STJ já reconheceu e aplicou esse entendimento:

"O comando do art. 1.457 do CC/16, cuja essência foi mantida pelo art. 771 do CC/02, não autoriza a seguradora a recusar o pagamento da indenização pelo simples fato de o segurado não ter comunicado o sinistro. A obrigação de informar a seguradora do sinistro “logo que o saiba” desaparece desde que se torne supérfluo qualquer aviso, pela notoriedade do fato ou quando, pela espécie de seguro, não tenha a seguradora interesse algum em ser avisada imediatamente da ocorrência" [12].

Desde o CC/1916 esse requisito já não tinha base legal expressa. Mas ele pode igualmente ser reconhecido a partir de uma interpretação teleológica do dispositivo.

Conclusão
A incumbência do segurado de informar o segurador da ocorrência de sinistro é previsto no artigo 771. A partir da leitura dessa previsão ter-se-ia apenas os seguintes três requisitos para a perda do direito do segurado à indenização: sinistro, ciência efetiva do segurado e não comunicação por parte do segurado logo que soube. Da leitura do dispositivo, fica-se com a impressão de que a simples não comunicação imediata, assim que o segurado ficou sabendo da verificação do sinistro, levaria à perda do direito à indenização.

Mas não é isso que acontece. O dispositivo é interpretado de maneira a dele se a extrair ao todo cinco requisitos: (1) ocorrência do sinistro; (2) ciência efetiva ou ignorância indesculpável do segurado; (3) a não comunicação culposa do segurado (omissão injustificada); (4) prejuízo para a seguradora pela falta ou demora na comunicação; e (5) necessidade ou interesse da seguradora em ser avisada.

É curioso notar que os requisitos (3) e (4) estavam presentes no CC/1916 e foram suprimidos no CC/2002, o que levou a doutrina e jurisprudência a ter de reafirmar sua existência, apesar da falta da mesma base legal. Nesse particular, pode-se concluir que houve, portanto, uma piora do regramento legal do CC/2002 em relação ao CC/1916.

Em relação ao requisito (3), parcela da doutrina e da jurisprudência vão longe demais ao defender a necessidade de dolo ou culpa grave do segurado. O sistema já prevê a exigência de culpa (artigo 392), não sendo devido esse agravamento do regime geral.

Os requisitos (4) e (5), apesar de não previstos expressamente, são extraíveis do artigo 771 a partir de interpretação teleológica do dispositivo.

 

* Esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados.

 


[1] CARVALHO SANTOS, Código civil brasileiro interpretado, cit., p. 351-352.

[2] CARVALHO SANTOS, Código civil brasileiro interpretado, cit., p. 351-352.

[3] DELGADO, José Augusto. Comentários ao novo Código Civil: Das várias espécies de contrato. Do seguro. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense., vol. XI, tomo I, 2004, p. 291-295, itálico aditado.

[4] REsp nº 1.546.178/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 13/9/2016, DJe de 19/9/2016, fls. 3-4 do inteiro teor do acórdão.

[5] REsp nº 1.546.178/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 13/9/2016, DJe de 19/9/2016, fl. 5 do inteiro teor do acórdão.

[6] REsp nº 1.546.178/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 13/9/2016, DJe de 19/9/2016, fl. 6 do inteiro teor do acórdão.

[7] REsp nº 1.546.178/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 13/9/2016, DJe de 19/9/2016, fl. 7 do inteiro teor do acórdão.

[8] REsp nº 1.546.178/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 13/9/2016, DJe de 19/9/2016, fl. 7-8 do inteiro teor do acórdão.

[9] DELGADO, José Augusto. Comentários ao novo Código Civil, cit., p. 291-295.

[10] REsp n. 1.546.178/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 13/9/2016, DJe de 19/9/2016, fl. 8 do inteiro teor do acórdão.

[11] CARVALHO SANTOS, Código civil brasileiro interpretado, cit., p. 351.

[12] REsp nº 1.137.113/SC, relatora ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 13/3/2012, DJe de 22/3/2012.

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