Opinião

Pontapé inicial para regulação de ativos virtuais no Brasil

Autor

  • Otávio Corrêa Vaz Guimarães

    é advogado criminalista no Andre Kehdi e Renato Vieira Advogados graduado em Direito pela Universidade de São Paulo graduando em Direito Francês pela Faculdade de Direito da Universidade Jean Monnet (França) e pós-graduando lato sensu em Direito Penal Econômico na Universidade de Coimbra/IBCCrim.

8 de setembro de 2022, 6h34

No dia 4 de maio deste ano, o Senado enviou à Câmara dos Deputados o seu substitutivo para o projeto de Lei nº 4.401/2021, antigo PL nº 2.303/2015. A proposta, originária da Câmara, retornou para aprovação em Plenário após as mudanças realizadas pela outra casa do Congresso e, se aprovada, irá para sanção presidencial.

O projeto de lei, além de estabelecer diretrizes para a prestação de serviços de ativos virtuais no Brasil, dispõe sobre a regulamentação nacional das pessoas jurídicas que realizam tais atividades e traz, na esfera penal, alterações no Código Penal, na Lei nº 9.613/98 (Lavagem de Dinheiro) e na Lei nº 7.492/86 (Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional).

Em primeiro lugar, sobre a proposta como um todo, é importante frisar que a regulação de ativos virtuais é em determinado grau necessária e, por isso, a discussão do tema em nível legislativo se justifica.

O alargamento do universo dos ativos virtuais se insere no movimento global de pluralização dos mecanismos de investimento, de reserva de valores e de meios de pagamento. Nesse já não tão novo cenário, tem-se a desvinculação dos métodos tradicionais de armazenamento e transferência de recursos em favor da intangibilidade; do afastamento do aparato público como ente mediador das tendências monetárias; e, principalmente, em favor do depósito de confiança em alta tecnologia.

Com a diminuição do alcance das estruturas já conhecidas de controle e fiscalização da movimentação de valores, atualizações legais e normativas, tais quais o PL nº 4.401/2021, aqui discutido, a IN RFB nº 1.888/19, que disciplinou a prestação de informações sobre operações com criptoativos à Receita Federal [1], e o Comunicado Bacen nº 31.379, de 16/11/2017, que alertou sobre riscos decorrentes da guarda e negociação de moedas virtuais [2], vêm para tentar organizar e estabelecer balizas para a conjuntura dos ativos virtuais.

Digno de nota que já ficaram ultrapassadas, diante da assimilação de sua desnecessidade, as propostas de vedação completa do uso desse tipo de representação de valor, e hoje se caminha para a coordenação entre a esfera econômica menos tradicional e a resguarda dos bens jurídicos possivelmente afetados que se espera do aparelho estatal, com o estabelecimento de parâmetros de risco permitido. Isto é, agora, o que se objetiva é encontrar um ponto médio entre a estrutura de política financeira, monetária, cambial e criminal econômica e a realidade dos ativos virtuais e os benefícios que podem trazer à sociedade.

Nesse sentido, o substitutivo do Senado no PL nº 4.401/2021 dá um "empurrão" inicial na regulação de ativos virtuais no país, e delega para um ou mais órgãos ou entidades da administração pública federal, a serem definidos em ato do Poder Executivo, diversas competências. Dentre elas estão a autorização de funcionamento de prestadoras de serviços de ativos virtuais (artigo 2º), a definição de quais ativos serão regulados para os fins da lei (artigo 3º, §1º), a parametrização das diretrizes estabelecidas para esse setor (artigo 4º, caput) e uma série de obrigações para regulação das empresas que oferecem serviços com ativos virtuais (artigo 7º).

Ou seja, a norma, se aprovada no Congresso e sancionada, não propriamente regulará os ativos virtuais, mas sim traçará o caminho para que eles o sejam pela administração pública, dentro dos limites e conforme as diretrizes estipuladas no projeto.

Essa opção legislativa não é feita à toa. Como o universo dos ativos virtuais se articula em velocidade muito maior que o processo legislativo, a transferência da capacidade regulamentar para certo ente, dotado de maior dinamicidade e especialidade, como são o Banco Central e a CVM em casos já regulados, confere maior adaptabilidade à resposta pública a determinado setor.

E quando se trata dos ativos virtuais isso é especialmente importante, em vista da sua alta capacidade mutatória. A análise combinatória que pode ser feita das características de um ativo virtual (emissor definido ou não; fluxo de dados fechado, aberto, híbrido; rede centralizada ou descentralizada; conversibilidade existente ou não, uni ou bidirecional; grau de universalidade; uso criptográfico, entre outros [3]) permite que novos modais sejam criados constantemente. Por isso, ao se regulamentar a atividade com esses ativos, a capacidade de renovação normativa é imprescindível.

Outro ponto que merece menção é a escolha do Senado pela nomenclatura "ativos virtuais", em contrapartida a "criptoativos" mais especificamente, que são as figuras com maior proeminência nas discussões acerca do tema. Isso porque a definição adotada pelo substitutivo [4] não exige que os ativos façam uso de tecnologia criptográfica.

As consequências dessa opção abrangente serão vistas quando da implementação da lei, caso ela venha a ser aprovada, porém já é possível adiantar que o órgão responsável por estabelecer as normativas sobre os ativos terá ofício mais árduo, visto que nem todos os ativos virtuais podem ser abarcados sob o mesmo guarda-chuva regulatório.

Isto é, eventuais tecnologias que obtenham lastro não em criptografia e blockchain, mas em outros métodos de segurança, como a existência de uma autoridade central emissora e controladora, reclamam atividade regulatória diferente das que utilizam tais tecnologias. Por sua vez, as criptomoedas, por sua difícil rastreabilidade e relativa anonimidade, também possuem demandas que lhes são específicas, principalmente para uma atuação contenciosa no que toca aos mecanismos legais de rastreio e investigação da origem e destino de valores.

Em matéria penal, o PL nº 4.401/2021 traz como diretriz a prevenção à lavagem de dinheiro, o combate à atuação de organizações criminosas, ao financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa (artigo 4º, VIII), e altera algumas leis.

O projeto cria o crime de "fraude em prestação de serviços de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros" como modalidade qualificada do estelionato (a ser incluído no Código Penal no artigo 171-A). Aqui, a redação não parece ter sido feliz. Isso porque no mesmo tipo foram incluídos ativos de natureza distinta e há normas especializadas que instituem delitos cometidos nos âmbitos do mercado de capitais e do sistema financeiro nacional (Leis nº 6.385/76 e nº 7.942/86, respectivamente), de modo que, por razões de consistência jurídica, não parece fazer sentido pulverizar a tipificação penal relativa aos valores mobiliários e ativos financeiros, e trazê-la ao Código Penal.

Não obstante, em uma primeira análise, ou não foi possível vislumbrar colisão de normas, ou apenas se encontrou conflito aparente entre os tipos penais das Leis nº 6.385/76 e nº 7.942/86 e o proposto no PL nº 4.401/2021. No caso do artigo 27-C da Lei da CVM, o crime de manipulação do mercado, o concurso aparente de leis se resolve pela especialidade da legislação esparsa. Quando a simulação ou fraude tiver o objetivo de elevar, manter ou baixar a cotação, o preço ou o volume negociado de um valor mobiliário, preenchidos os demais requisitos do tipo, se estará diante da prática de manipulação do mercado. O possível artigo 171-A do Código Penal, por sua vez, não exige manobra com esse específico propósito.

Por outro lado, entre o crime de exercício irregular de cargo, profissão, atividade ou função (artigo 27-E da Lei nº 6.385/76) e do PL nº 4.401/2021 não parece haver conflito. Enquanto o primeiro tutela a estabilidade do mercado de capitais via atuação registrária da CVM, o segundo trata de delito patrimonial em proteção ao investidor, de modo que não parece existir obstáculo ao cometimento de ambos em concurso de crimes.

Quanto ao sistema financeiro nacional, poderá ter espaço o artigo 6º da Lei nº 7.492/86, que tipifica a conduta de induzir ou manter em erro, sócio, investidor ou repartição pública competente, relativamente a operação ou situação financeira, sonegando-lhe informação ou prestando-a falsamente. Por não haver nesse tipo o elemento subjetivo especial de obtenção de vantagem ilícita em prejuízo alheio, quando este estiver presente, a interpretação se encaminhará para a aplicação do tipo proposto no projeto de lei, caso seja aprovado e sancionado. Em caso contrário, preenchidos os elementos quanto a alvo (sócio, investidor ou repartição pública competente) e mecanismo do erro (sonegação ou prestação falsa de informação), se poderá cogitar da aplicação do artigo 6º da Lei nº 7.492/86. A capitulação dependerá do caso concreto.

Outra inclusão do projeto com repercussões penais é a equiparação da pessoa jurídica que oferece serviços referentes a operações com ativos virtuais, inclusive intermediação, negociação ou custódia, à figura da "instituição financeira" da Lei nº 7.492/86 (artigo 1º, nova redação do inciso II do parágrafo único). As consequências disso são consideráveis, pois agora os executivos e funcionários de tais entes, que serão autorizados a funcionar a depender da definição do órgão responsável na esfera executiva, estarão imbuídos da qualidade especial exigida por alguns dos crimes contra o sistema financeiro nacional, de competência federal, o que até o momento não ocorria.

Por fim, o PL 4.401/2021 trouxe algumas alterações no crime de lavagem de dinheiro e na estrutura preventiva da Lei nº 9.613/98. Se aprovado e sancionado o PL, o crime em questão contará com causa de aumento não só se cometido de forma reiterada ou por intermédio de organização criminosa, mas também se for cometido com a utilização de ativo virtual (nova redação proposta para o artigo 1º, § 4º, da Lei nº 9.613/98). Além disso, a inclusão das empresas prestadoras de serviços de ativos virtuais como entes obrigados à identificação de clientes, manutenção de registros e comunicação de operações nos termos dos artigos 10 e 11 da Lei de Lavagem representa importante passo de apropriação pelo aparato público do universo dos ativos virtuais.

Vão nesse último sentido, especialmente, a responsabilidade das empresas de reporte ao Coaf de operações com ativos passíveis de serem convertidos em dinheiro em limites superiores aos fixados pelas autoridades competentes, e a necessidade de comunicação de operações indiciárias do crime de lavagem ao mesmo órgão. Isso porque é justamente o Coaf a unidade de inteligência financeira nacional responsável por receber dados a respeito de movimentações de valores suspeitas ou possivelmente suspeitas, analisá-los e eventualmente enviá-los a autoridades competentes para a instrução de procedimentos, inclusive criminais.

Tudo isso permite o abrandamento da anonimidade inerente a alguns ativos virtuais e, com certeza, será primordial para a fiscalização desse setor.

Enfim, por se tratar do primeiro mecanismo legislativo que, se sancionado, trará alguma disciplina aos ativos virtuais, há muito para se definir e poucos exemplos nacionais como base para fazê-lo. Como visto, a redação que pende de aprovação pela Câmara dos Deputados parece ter acertado em alguns pontos, como na delegação da efetiva regulamentação e fiscalização à entidade definida pelo Poder Executivo, e principalmente nas obrigações inseridas quanto à lavagem de dinheiro.

Por outro lado, disposições como a criação do crime do artigo 171-A do Código Penal, a opção por uma legislação mãe de todos os ativos virtuais e a equiparação das prestadoras de serviços às instituições financeiras devem ser pontos de atenção. Seus efeitos determinantes e/ou a redação escolhida ao que tudo indica clamam um maior amadurecimento. Mas, por agora, resta aguardar o desdobramento do processo legislativo no PL nº 4.401/2021.

 


[3] Para mais detalhes sobre as variações de ativos e moedas digitais: GOMES, Daniel de Paiva. Bitcoin: a tributação de criptomoedas. Da taxonomia camaleônica à tributação de criptoativos sem emissor identificado. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

[4] Art. 3º: Para os efeitos desta Lei, considera-se ativo virtual a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento, não incluídos: I – moeda nacional e moedas estrangeiras; II- a moeda eletrônica, nos termos da Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013; III – instrumentos que provejam ao seu titular acesso a produtos ou serviços especificados ou a benefício proveniente desses produtos ou serviços; e IV – representações de ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento”.

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  • é advogado criminalista no Andre Kehdi e Renato Vieira Advogados, graduado em Direito pela Universidade de São Paulo, graduando em Direito Francês pela Faculdade de Direito da Universidade Jean Monnet (França) e pós-graduando lato sensu em Direito Penal Econômico na Universidade de Coimbra/IBCCrim.

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