Opinião

Atuação no saneamento pressupõe conhecer a regulação dos recursos hídricos

Autor

  • Juliano Heinen

    é procurador do estado do Rio Grande do Sul e doutor em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

2 de setembro de 2022, 18h19

Ao que parece, a literatura nacional normalmente trata do saneamento básico e da legislação e política dos recursos hídricos de modo apartado. Desse modo, assim posto, parece que os temas têm pouca relação, o que não é verdade.

As legislações de ambos os assuntos possuem uma interface estreita e imbricada. Indo diretamente ao ponto: o saneamento básico não poderá ser efetivado sem os recursos hídricos, os quais são a base da sua prestação. Não se precisa dizer muito para notar que a dispensação de água potável, o esgotamento sanitário, a drenagem de águas urbanas e mesmo a limpeza urbana relacionam-se de modo central com a regulação do tal bem da humanidade. É até uma questão de bom senso.

De outro lado, ainda merece ser pontuado que o saneamento é uma das múltiplas atividades que se relacionam com a regulação das águas. Este último sistema jurídico-normativo tratará também de políticas públicas coligadas à geração de energia elétrica, à agropecuária, ao transporte hidroviário, ao turismo, às questões ambientais envolvendo flora e fauna (v.g. pesca) etc. Logo, não fica difícil perceber que são muitos os usos dos recursos hídricos.

Antes, cabe dizer que o signo "água" refere-se ao bem da humanidade ou da natureza, enquanto que "recursos hídricos" se refere ao uso econômico deste bem. Depois, é de se perceber duas premissas:

— O direito do saneamento básico deve ser estudado com as leis e regulamentos dos usos da água e com a política de recursos hídricos;

— O saneamento básico é uma de múltiplas atividades que se relacionam com a regulação dos usos da água e com a política de recursos hídricos.

No tema dos recursos hídricos e das águas destacam-se dois marcos normativos: o Código de Águas (Decreto-lei nº 24.643/1934) e a lei nacional que disciplina o uso dos recursos hídricos. Este último marco normativo foi objeto de um intenso debate junto ao Congresso Nacional à época. E não podia ser diferente, uma vez que o tema envolve e desperta uma série de interesses e compreensões. Como produto deste debate, foi editada a Lei nº 9.433/1997  a Lei Nacional de Recursos Hídricos  que compreendeu a política nacional e a disciplina de normas gerais do assunto. Essa arquitetura normativa deverá ser complementada pelas legislações estaduais e municipais, cada qual normatizando os temas regionais e locais, de acordo com a distribuição de competências fixada na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988:

— Artigo 20, incisos III, V, VI e VIII – regra que regula os bens da União envolvendo águas;

— Artigo 21, inciso XII, alíneas b, d e f  regra que trata da concessão e permissão e serviço que envolve o uso de recursos hídricos;

— Artigo 22, inciso IV– diz que compete privativamente à União legislar sobre águas;

— Artigo 23, incisos IX e X – é de competência comum a política pública sobre saneamento básico, pesquisa e exploração de recursos hídricos;

— Artigo 26, inciso I – arrola os bens estaduais envolvendo mananciais hídricos.

Se, de um lado, o Código de Águas (Decreto nº 24.643/1934) pretendeu disciplinar quase que exclusivamente o tema do aproveitamento econômico das águas, notadamente em relação à geração de energia elétrica, a Lei nº 9.433/1997 pretendeu ir além. A política nacional no tema pretendeu:

— Perfazer um arranjo institucional sistêmico, ou seja, instituir organismos que atuassem de modo eficiente e sinérgico;

— Estatuir princípios e instrumentos de gestão;

— Permitir a tutela e cobrança dos usos múltiplos da água  que não só o energético;

— Colocar a bacia hidrográfica como instituição central do sistema de recursos hídricos;

— Descentralizar a gestão da referida política pública.

Quanto a este último ponto, com a edição da Lei nº 9.984/2000, que criou a Agência Nacional de Águas (ANA), a gestão da mencionada política pública acabou por ganhar uma maior centralidade.  A partir do que dispõem as legislações citadas, fixaram-se uma série de instrumentos regulatórios do uso das águas:

— Normas infralegais dos usos da água;

— Planejamento do setor por meio dos Planos Nacional e Estaduais de Recursos Hídricos. Tais documentos são de extrema relevância no setor, por fixar, em suma, metas e parâmetros de atuação a todo o setor;

— Fiscalização do uso dos recursos hídricos e das regras do setor;

— Cobrança pelo uso das águas (usuário-pagador) ou pela poluição, que pode ser potencial ou efetiva (poluidor-pagador);

— Outorga do uso da água, que se dá por meio de autorização de uso. Trata-se de um ato administrativo ampliativo que estabelece condições e limites para o uso do recurso. Tal ato deverá respeitar aquilo que é definido nos Planos de Recursos Hídricos e pelos Comitês de Bacia. É um importante instrumento de regulação da qualidade e da quantidade do recurso, por isso sempre está coligada à gestão dos mananciais hídricos [1].

Além das definições legais do que se possa considerar um "uso da água" (artigos 12 e 13 da Lei nº 9.433/1997), os Comitês de Bacia têm a competência de regrar suplementarmente o tema. Logo, todo usuário que pretender uma outorga deverá dialogar com as múltiplas regulações nacionais, regionais e locais, quando pretende uma outorga, inclusive oriundas dos organismos de representatividade de cada bacia. Por exemplo, bacias especiais poderão ter limitações de captação, dada a sensibilidade do ecossistema, o que poderá inaugurar toda sorte de disputas pelas cotas de captação existentes e pelas pretensões dos eventuais entrantes.

Apesar de se estabelecer um sistema com múltiplos organismos, cada qual recebeu um papel claro na legislação sobre o tema. Vamos sistematizar os principais atores do Sistema Nacional de Recursos Hídricos e suas funções:

a) Conselho Nacional de Recursos Hídricos: instância administrativa superior do sistema, com competências deliberativas e normativas. Cabe definir as diretivas nacionais na política de águas. É órgão de segunda instância administrativa para decidir controvérsias no tema;

b) Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico: criada pela Lei nº 9.984/2000, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) é a agência reguladora dedicada a fazer cumprir os objetivos e diretrizes da Lei das Águas do Brasil, a Lei nº 9.433/1997 e do novo marco legal do saneamento básico, a Lei nº 14.026/2020. Como agência reguladora que é, possui natureza autárquica especial, independência. Por isso regida também pela Lei nº 13.848/2019; A ANA, dentre tantas funções, é responsável por regular a qualidade das águas e estabelecer normas de referência no setor de saneamento básico;

c) Comitês Estaduais e Distritais de Recursos Hídricos: Instância administrativa superior no sistema estadual e distrital do sistema de recursos hídricos, com competências deliberativas e normativas. Cabe definir as diretivas regionais na política de águas. É órgão de segunda instância administrativa para decidir controvérsias no tema;

d) Comitês de Bacia: órgão colegiado que emite pareceres, estabelece resoluções e toma decisões no âmbito geográfica da bacia. Chamado de "parlamento das águas", porque é composto de representantes da sociedade, usuário e estado. É um espaço para o debate de questões relacionadas aos recursos hídricos e para a articulação da atuação das entidades intervenientes. Também é órgão de solução de controvérsias, em primeira instância, dos conflitos relativos ao uso da água. Uma das suas funções essenciais consiste em estabelecer os mecanismos de cobrança pelo uso de recursos hídricos e sugerir os valores a serem cobrados. Além disso, deve praticar a harmonização entre os múltiplos e competitivos usos da água, por meio, por exemplo, da fixação de critérios e rateio de custos;

e) Agências de Água ou de Bacia: servem como secretarias executivas dos Comitês de Bacia, auxiliando, por exemplo, a operação de suas funções e capacitação. É pessoa jurídica sem fins lucrativos, com personalidade jurídica, capacidade administrativa e financeira próprias.

Com a exposição feita até aqui, percebe-se que a atuação dos operadores no ramo do saneamento básico não pode prescindir do conhecimento e do diálogo com as regras e com os atores que atuam no âmbito dos recursos hídricos. Pelo que vejo, há uma série de doutrinadores ou operadores pensando nos dois sistemas normativos sem maior diálogo, o que não parece ser um caminho virtuoso.


[1] Lei nº 9.433/11997, artigo 12: "Estão sujeitos a outorga pelo Poder Público os direitos dos seguintes usos de recursos hídricos: I – derivação ou captação de parcela da água existente em um corpo de água para consumo final, inclusive abastecimento público, ou insumo de processo produtivo; II – extração de água de aqüífero subterrâneo para consumo final ou insumo de processo produtivo; III – lançamento em corpo de água de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, tratados ou não, com o fim de sua diluição, transporte ou disposição final; IV – aproveitamento dos potenciais hidrelétricos; V – outros usos que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da água existente em um corpo de água. §1º Independem de outorga pelo Poder Público, conforme definido em regulamento: I – o uso de recursos hídricos para a satisfação das necessidades de pequenos núcleos populacionais, distribuídos no meio rural; II – as derivações, captações e lançamentos considerados insignificantes; III – as acumulações de volumes de água consideradas insignificantes. §2º A outorga e a utilização de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica estará subordinada ao Plano Nacional de Recursos Hídricos, aprovado na forma do disposto no inciso VIII do artigo 35 desta Lei, obedecida a disciplina da legislação setorial específica".

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!