Seguros Contemporâneos

Prazo prescricional em matéria de seguros e a Fazenda Pública

Autor

  • Renato Chalfin

    é sócio do Chalfin Goldberg e Vainboim Advogados mestrando em Direito Civil pela Universidade de Lisboa e professor convidado da pós-graduação de Direito Civil da Uerj.

27 de outubro de 2022, 8h00

Em 30/11/2021, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.303.374/ES, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça firmou a seguinte tese para efeito do artigo 947 do CPC: "É ânuo o prazo prescricional para exercício de qualquer pretensão do segurado em face do segurador — e vice-versa — baseada em suposto inadimplemento de deveres (principais, secundários ou anexos) derivados do contrato de seguro, ex vi do disposto no artigo 206, § 1º, II, "b", do Código Civil de 2002 (artigo 178, § 6º, II, do Código Civil de 1916)”.

Disciplinada de forma geral nos artigos 205 e 206 do Código Civil (CC), a prescrição, em matéria de seguros, recebeu um tratamento específico do legislador brasileiro. Isso não evitou, contudo, que por vezes surgissem decisões judiciais respaldadas por outros dispositivos e, consequentemente, diferentes prazos prescricionais para a solução de conflitos entre as referidas partes. Seja o prazo quinquenal disposto no artigo 27 do Código de Defesa do Consumidor, sejam os demais presentes no CC — prazo de três anos da reparação civil (artigo 206, § 3º, inciso IV) e da pretensão de enriquecimento sem causa (artigo 206, § 3º, inciso V), ou prazo geral de dez anos, quando a lei não tiver fixado prazo menor (artigo 205) —, a verdade é que, até a aprovação da tese acima, carecia uniformização da matéria na jurisprudência.

O acórdão proferido em assunção de competência serviu como pá de cal nesta desarmonia, consignando que, independentemente da natureza da pretensão nascida na relação securitária, o prazo prescricional será de um ano. Quando julgou conveniente, ressalvou exceções à esta regra, afirmando "que tal proposição não alcança, por óbvio, os seguros-saúde e planos de saúde, (…) aos quais esta Corte assentou a observância dos prazos prescricionais decenal ou trienal, a depender da natureza da pretensão", tampouco "o seguro de responsabilidade civil obrigatório (o seguro DPVAT), cujo prazo trienal decorre de dicção legal específica (artigo 206, § 3º, inciso IX, do Código Civil)".

Embora jamais mencionada pelo acórdão, desponta, ainda com certa timidez, uma suposta terceira hipótese de relativização do prazo ânuo, a se buscar considerar que as pretensões exercidas pelo ente público contra o segurador se sujeitariam ao prazo prescricional de cinco anos, por analogia, consoante artigo 1º do Decreto nº 20.910/32: "As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem".

A questão que se pretende analisar neste artigo é se o prazo prescricional ânuo do artigo 206, §1º, inciso II do Código Civil se aplicaria a demandas de seguro envolvendo entidades da Fazenda Pública, ou se sobressairia o prazo quinquenal do artigo 1º do Decreto nº 20.910/32.

Entre os que advogam por esta segunda solução, é comum a alegação de que a matéria teria sido decidida pelo STJ, em julgamento de Recurso Especial Representativo de Controvérsia [1], que assentou o prazo quinquenal previsto no citado Decreto à toda ação indenizatória ajuizada pela e contra a Fazenda Pública [2], nada obstante o referido julgado não cuide de demanda proposta por segurado contra seguradora.

Geralmente ocupando-se de casos vertidos a contrato de seguro-garantia facultado pelo artigo 56, §1º, inciso II da Lei 8.666/93 [3], as parcas decisões que buscam respaldar o prazo de cinco anos alegam: "em sendo a apelada uma autarquia estadual, faz jus aos privilégios legalmente previstos e destinados às entidades fazendárias, além do que o seguro garantia decorreu de obrigação assumida em processo de licitação e contrato administrativo, daí sua natureza jurídica de direito público" [4].

Eis o primeiro equívoco. Os contratos administrativos são contratos típicos da administração, sobre os quais incidem as normas de direito público. Os contratos privados da administração pública, por sua vez, são contratos regulados pelas normas de direito privado. Convém ressaltar que, quando a administração pública celebra contratos regulados por normas de direito privado, situa-se no mesmo plano jurídico da outra parte, ou seja, não há supremacia de uma parte sobre a outra, o que justifica, inclusive, a redação do artigo 62, § 3º, inciso I da Lei 8.666/93, segundo a qual, o contrato de seguro será regido, predominantemente, por normas de direito privado, previstas a partir do artigo 757 do CC [5].

Com efeito, o contrato de seguro-garantia, em que o ente público figura como segurado, ou seja, terceiro beneficiário, assume a natureza jurídica de direito privado, a atrair a disciplina geral do CC. Como bem ensina Gustavo Tepedino [6], "[a]final, trata-se de estipulação em favor de terceiro, em que o segurado não é parte da relação jurídica de direito privado estabelecida entre o tomador (contratado da Administração Pública) e o segurador, mas sim terceiro beneficiário", assim "a ela se aplicam as normas de direito privado, dentre as quais a que regula a prescrição" [7].

O segundo equívoco recai sobre a premissa de que, "embora o Código Civil seja posterior ao Decreto-Lei Federal nº 20.910/32, este último diploma legal é norma especial, incidente nas relações jurídicas de cunho administrativo. E, por prever um regramento especial referente ao prazo prescricional para as pretensões contra a Fazenda Pública, deve prevalecer o lapso quinquenal" [8].

Especificamente no tocante à alegada especialidade do decreto vis à vis o Código Civil, o que soa claro é que, ao menos com relação à pretensão para cobrança de capital segurado, é o Código Civil que se apresenta especial em comparação ao decreto, simplesmente porque de cobrança de indenização securitária o decreto não cuida. Isto é, para além da questão temporal ventilada, não há dúvida de que o CC de 2002 é especial frente ao Decreto de 1932 por uma razão singela: quem cuida de prescrição para cobrança de seguro é o Código, e não o decreto.

O artigo 206, §1º, inciso II do CC é norma especial em matéria securitária, produzindo efeitos em qualquer que seja a natureza jurídica do segurado, público ou privado. Para ilustrar ainda mais essa especialidade, o STJ, no já referido acórdão do incidente de assunção de competência, consagrou o entendimento de que, em se tratando de cobrança de seguro (e deveres anexos), pouco importa a presença de relação de consumo, sendo aplicável o prazo ânuo disposto no CC, e não o prazo quinquenal do artigo 27 do CDC. O recado que se extrai desta interpretação é apenas um: em matéria de prescrição securitária, especial é o CC perante qualquer outra lei.

De acordo com tese firmada em julgamento de casos repetitivos, a analogia não pode ser admitida em relação à prescrição, uma vez que a interpretação das regras jurídicas a esse respeito deve ser restritiva [9]. Quer dizer, se o legislador, expressamente, determinou o prazo prescricional ânuo para pretensões de segurado contra segurador e vice-versa, o intérprete não pode, valendo-se de legislação mais antiga e genérica, concluir pela aplicabilidade do prazo de cinco anos que, como visto, sequer cuida de prescrição em contratos de seguros.

A prevalecer esse entendimento, estar-se-ia desvirtuando toda a lógica por trás da fixação do prazo ânuo. Em matéria de seguro, seja em território brasileiro, seja em território estrangeiro [10], os prazos prescricionais devem ser mesmo curtos.

Trata-se de prática adotada mundo afora justamente para assegurar a higidez econômica das seguradoras e do mercado como um todo, a qual deve prevalecer independentemente da natureza jurídica do segurado. Quanto mais tempo permanecer constituída reserva técnica, pior será ao segurador, a seus acionistas e ao mercado, sobretudo para que novos riscos possam ser absorvidos mediante a emissão de mais e mais apólices. É, portanto, não só benéfico ao segurador, mas também aos segurados, que passam a ter acesso ao seguro com preços mais baratos e não são surpreendidos com a necessidade de aumento considerável do prêmio em sua renovação [11].

Por derradeiro, sublinha-se que o Decreto nº 20.910/32, ao fixar, como regra geral, o prazo prescricional de cinco anos para o exercício de pretensões contra o ente público, tinha por objetivo conferir tratamento mais favorável à Fazenda Pública, tendo em vista que o CC de 1916, vigente à época de sua promulgação, acenava com prazos prescricionais consideravelmente mais amplos (v.g., o prazo de vinte anos a que aludia o artigo 177 desse diploma). Não por outro motivo que o artigo 10 do Decreto [12] estabelece que as pretensões exercidas contra a Fazenda Pública prescrevem em cinco anos, salvo nos casos em que a lei prever prazos menores, justamente para beneficiar a tutela do interesse público.

Logo, se ao particular aplica-se o menor prazo prescricional previsto em lei para pretensões contra a Fazenda Pública, pelo princípio da isonomia [13], deve-se utilizar esse mesmo prazo para pretensões do ente público contra o privado, relacionadas à mesma matéria. Se o segurador possui um ano para exercer seu direito de ação contra o segurado, independentemente da natureza jurídica deste, é este o prazo a que o segurado, seja ele público ou privado, estará igualmente sujeito para fins de prescrição.

Em síntese essencial, as pretensões entre segurador e segurado, independentemente deste último constituir ente público, se sujeitam à prescrição ânua, pois (a) o STJ já pacificou esse entendimento; (b) além de ser posterior, o Código Civil de 2002 é especial frente ao Decreto nº 20.910/1932; (c) em matéria de prescrição, deve-se imprimir interpretação restritiva; (d) este prazo é razoável e necessariamente curto, com vistas a garantir a higidez econômica do mercado como um todo; (e) respeita o objetivo elementar do próprio decreto, que era exatamente constituir prazos menores às pretensões de terceiros contra a Fazenda Pública; e (f) observa o princípio da isonomia.

 

* Esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados.

 


[1] STJ, REsp nº 1.251.993/PR, rel. min. Mauro Campbell Marques, 1ª Seção, j. 12/12/2012.

[2] TJ-SP, Apelação nº 1011451-55.2014.8.26.0053, rel. des. Francisco Bianco, 5ª Câmara de Direito Público, j. 11/11/2019.

[3] "Art. 56. A critério da autoridade competente, em cada caso, e desde que prevista no instrumento convocatório, poderá ser exigida prestação de garantia nas contratações de obras, serviços e compras. § 1o Caberá ao contratado optar por uma das seguintes modalidades de garantia: (…) II – seguro-garantia".

[4] TJ-SP, Apelação n. 0008423-88.2006.8.26.0114, rel. des. Sidney Reis, 6ª Câmara de Direito Público, j. 14/9/2020.

[5] TJ-RJ, Apelação nº 0197657-49.2017.8.19.0001, rel. des. Marcos Chut, 23ª Câmara Cível, j. 19/2/2020. Nesse mesmo sentido: TRF-4, Apelação n. 5046612-35.2019.4.04.7100, 3ª Turma, rel. des. Rogerio Favreto, j. 21/9/2021. Confira-se, ainda, a parte final do caput do art. 89 da Lei n° 14.133/2021.

[6] Trecho extraído de Opinião Doutrinária acostada aos autos do processo nº 5106638-36.2019.4.02.5101, atualmente em trâmite na 6ª Turma Especializada do TRF da 2ª Região, em que enfrenta diretamente o prazo prescricional que incide sobre as pretensões envolvendo segurador e segurado, esse último na condição de ente público.

[7] Exatamente desta forma já decidiu o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios: "A alegação do apelante no sentido de não ser o segurado por não ter contratado o seguro garantia não merece acolhimento, já que consta da apólice (ID 50631994, pág. 2) que a Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão figura como sendo a efetivamente segurada e a empresa a Fênix Consultoria Administração e Serviços EIRELI EPP consta apenas como a tomadora do contrato de seguro. E se ainda assim o ente estatal não se qualifica como parte segurada, ao menos não se afasta a hipótese da estipulação em seu favor, o que assim o submete aos precisos termos da estipulação. Dessa forma, apesar do contrato não ter sido celebrado diretamente pelo autor é ele efetivamente o segurado ou beneficiário em razão do contrato. (…) Aplica-se, portanto, o prazo prescricional estabelecido no artigo 206, § 1º, II, ‘a’ do Código Civil". (Apelação nº 0710241-05.2019.8.07.0018, rel. des. Carlos Rodrigues, 1ª Turma Cível, j. 19/8/2020).

[8] TJ-SP, Agravo de Instrumento n. 2114168-20.2019.8.26.0000, rel. des. Afonso Faro Jr., 11ª Câmara de Direito Público, j. 6/8/2019.

[9] STJ, REsp nº 1.823.911/PE, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 2ª Seção, j. em 28/10/2020.

[10] Veja-se, exemplificativamente, os prazos na Espanha (2 anos, art. 23 da Ley 50/1980), na França (2 anos, article L114-1 Code des Assurances) e na Argentina (1 ano, art. 56, Ley 17.418/1967).

[11] Confira-se, nesse sentido, as lições de Pedro Alvim: "O prazo prescricional do seguro varia de acordo com as diferentes legislações, mas é geralmente curto, de um a dois anos. (…) Constitui uma necessidade imperiosa, pondera J. C. Moitinho de Almeida, para a gestão do seguro, a existência de pequenos prazos para o exercício, pelo segurado, dos direitos derivados do contrato. Na sua falta, por um lado, desaparecem os vestígios dos sinistros, o que dá origem a simulações ou dificuldades de defesa dos seguradores, por outro, aumentam os custos do seguro, na medida em que se torna necessário conservar abertos processos antigos, assim como para eles manter as respectivas reservas". ALVIM, Pedro. O contrato de seguro. Rio de Janeiro: Forense, 1999, pp. 507-508.

[12] Art. 10. "O disposto nos artigos anteriores não altera as prescrições de menor prazo, constantes das leis e regulamentos, as quais ficam subordinadas às mesmas regras".

[13] Novamente, recorre-se às lições lançadas por Gustavo Tepedino na Opinião Doutrinária datada de 3/10/2022 e acostada à ação nº 5106638-36.2019.4.02.5101:

"Com a superveniência do Código Civil de 2002, que passou a produzir efeitos em 11 de janeiro de 2003, os prazos prescricionais sofreram drástica redução, refletindo a redução universal das distâncias em decorrência da evolução dos transportes e dos meios de comunicação. Destaque-se o prazo prescricional para as pretensões indenizatórias, reduzido de 20 (vinte) para 3 (três) anos (art. 206, § 3º, V, do Código Civil), assim como as pretensões de enriquecimento sem causa e de repetição de indébito, sujeitas ao mesmo prazo trienal (art. 206, § 3º, IV).

Assim, diversos prazos prescricionais inferiores a 5 (cinco) anos passaram a reger as relações paritárias, convivendo, no âmbito do sistema, com o prazo quinquenal destinado às relações entabuladas com a Fazenda Pública. Nesse cenário, em determinadas situações, os prazos prescricionais previstos no Código Civil se revelarão mais benéficos do que àquele quinquenal estabelecido pelo Decreto n.º 20.910/1932. Na esteira do tratamento privilegiado dispensado à Fazenda Pública, caso se configure o suporte fático para incidência da norma prescricional do Código Civil, que estabeleça prazo inferior a 5 (cinco) anos, tal prazo do diploma codificado há de prevalecer nas relações com a Fazenda Pública, em observância ao art. 10, Decreto n.º 20.910/1932, anteriormente mencionado, sob pena de se atribuir ao particular tratamento mais benéfico do que aquele dispensado ao ente público, rompendo a lógica do sistema.

(…) Como visto, as pretensões securitárias que têm por titular segurado em face do segurador e vice-versa se subordinam ao prazo prescricional de 1 (um) ano, a contar da ciência do fato gerador da pretensão. A se considerar que as pretensões exercidas pelo segurador contra a Fazenda Pública se sujeitam ao prazo prescricional de 1 (um) ano, inferior àquele previsto no Decreto n.º 20.910/32 – mais benéfico, portanto, ao ente público –, pelo princípio da isonomia, também as pretensões da Fazenda Pública, na qualidade de segurada, exercidas em face do segurador, se sujeitarão ao prazo ânuo, afastando-se, portanto, o prazo prescricional quinquenal". (Destacou-se).

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