Opinião

Alimentação como superdireito

Autor

  • Humberto Cunha Filho

    é professor de Direitos Culturais nos programas de graduação mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (Unifor) presidente de honra do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e autor dentre outros dos livros “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)atos Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética).

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26 de outubro de 2022, 6h32

Os historiadores do universo jurídico perceberam que os direitos foram aparecendo e se consolidando de forma seletiva e progressiva, e didaticamente foram agrupados em blocos que ficaram inicialmente conhecidos por "gerações". Na primeira delas a preocupação foi com as liberdades, através das quais buscava-se assegurar as escolhas personalíssimas.

Depois, o foco foi no sentido de se estabelecer um patamar mínimo de igualdade, com o Estado realizando certas prestações de serviços e entrega de bens correspondentes a direitos sociais, econômicos e culturais, que são, formalmente, os integrantes da segunda geração.

Na sequência geracional, observou-se a atribuição de valor a certos comportamentos e bens de interesses que vão para além dos indivíduos, como o patrimônio público, a moralidade administrativa, o meio ambiente e o patrimônio cultural. Geralmente, quando se observa um direito específico, a tendência é a de querer enquadrá-lo em apenas uma das gerações e categorias acima mencionadas, por ser este ato costumeiramente correto.

Um exemplo disso é o que ocorreu a partir da Emenda Constitucional nº 64, de 4 de fevereiro de 2010, que desde então alterou o artigo 6º da Constituição Federal do Brasil para introduzir a alimentação como direito social. Neste caso, porém, a norma diz muito menos do que a alimentação efetivamente representa no universo jurídico, pois além da faceta de direito social — assim designado porque o Estado fica na obrigação de garanti-lo aos que não podem ter acesso sem tal ajuda , possui todas as demais configurações jurídicas, a depender do ângulo de observação, o que o converte em um superdireito, como se passa a pormenorizar.

Inicialmente, a alimentação envolve um aspecto de direito de liberdade, no sentido de que cada pessoa tem a prerrogativa de escolher aquilo que ingere e a forma de se nutrir. Disto decorre, por exemplo, que mesmo diante de uma configuração social preponderantemente consumidora de proteínas animais, é uma prerrogativa individual a de se optar por uma alimentação vegetariana, macrobiótica ou de outra natureza.

Enquanto direito metaindividual, muitos aspectos da produção e distribuição de alimentos despertam preocupações no que concerne à sua pouco observada dimensão de patrimônio público, uma vez que a ideia de segurança alimentar determina que haja estoques estatais para as emergências. Naquilo que concerne à moralidade administrativa e social, evocam-se os cuidados para evitar ou quando menos minimizar desperdícios. Relativamente à questão ambiental, todas as fases da cadeia de alimentos devem ser regidas pela ideia de sustentabilidade.

No âmbito da segunda geração, além do aspecto de direito social, é agigantada a dimensão de direito econômico da alimentação, conforme pode ser intuído pelo simples fato de que nenhum ser humano pode viver sem ela. Todavia, para além de um bem de consumo, há que se destacar a existência de uma dimensão atrelada à propriedade intelectual, com a proteção de marcas de bens alimentícios, que os singularizam e valorizam.

No mesmo sentido, as patentes para inventos e melhorias relacionados ao ato de se alimentar, o que abrange desde equipamentos agrícolas às taças que agregam beleza ao sorver de uma bebida. Junte-se a isso, atos como a certificação de origem, que correlaciona um produto alimentar com um dado território, seja por um favorecimento telúrico ou pelas boas técnicas dos modos de fazer, como ocorre (ou poderia ocorrer) com o queijo do Jaguaribe, a aguardente de Redenção ou o café de Guaramiranga, por exemplo.

A despeito do que foi dito, nenhuma dimensão jurídica da alimentação supera sua faceta de direito cultural, mesmo que não houvesse qualquer lei a fazer esse indicativo, pois trata-se de elemento caracterizador de um povo. E legislação há, tanto interna quanto internacional. Em termos planetários, com base na Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, vários bens que foram reconhecidos associam-se a práticas alimentares, como a técnica dos pizzaiolos italianos, a dieta mediterrânea e os modos de interação social a partir da referência dos cafés turco e árabe.

No Brasil, a base do reconhecimento do patrimônio cultural imaterial é o Decreto do Registro, datado do ano de 2000, por meio do qual, vários bens relacionados à alimentação já foram içados ao status de patrimônio cultural do país, começando pelo ofício de fazer panelas de barro, passando por práticas agrícolas tradicionais, chegando ao ofício das baianas do acarajé, o modo artesanal de fazer queijos mineiros, as práticas associadas à produção de cajuína, a maneira de fazer os doces gaúchos, dentre outros.

Conclui-se, assim, que a alimentação precisa ser percebida em todas as suas potencialidades, nos mais distintos âmbitos, pois os atos que a circundam e permeiam servem não apenas para nutrir o corpo, mas também as múltiplas facetas da convivência humana.

Autores

  • é professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (Unifor), presidente de honra do IBDCult (Instituto Brasileiro de Direitos Culturais), comentarista do Instituto Observatório do Direito Autoral (Ioda) e autor, dentre outros, dos livros "Teoria dos Direitos Culturais" (Edições Sesc-SP) e "(F)Atos, Política(s) e Direitos Culturais" (Dialética-SP).

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