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Litigiosidade tributária no Brasil: quais são suas principais razões?

Autor

  • Elidie Palma Bifano

    é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS e advogada em São Paulo.

26 de outubro de 2022, 8h00

A dúvida acima proposta acerca das raízes da litigiosidade em matéria tributária, no Brasil, aflorou-me após ter participado do excelente XXV Congresso Internacional de Direito Tributário da Associação Brasileira de Direito Tributário (Abradt), de Minas Gerais, organizado pelo dr. Valter Lobato, em homenagem à ministra Regina Helena, do Superior Tribunal de Justiça. Os temas de debate, todos, vêm sendo discutidos em tribunais administrativos e judiciais, há muito tempo, e seguem sendo objeto de fiscalização e subsequente autuação pelas autoridades fiscais, assim povoando o universo de preocupação dos contribuintes.

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Qual é a raiz desse problema que custa tão caro aos contribuintes e à nação: decorre de um suposto amor à discussão judicial do povo brasileiro, herdado de nossos antepassados; reside nas leis mal feitas ou decorre de comportamento reiterado do Fisco que sempre olha o contribuinte sob o viés da malícia.

No que tange à tendência de recurso ao Judiciário, é interessante relembrar que uma das primeiras ações de Martim Afonso de Souza, ao chegar no Brasil, foi criar a Justiça, em 1530, por força de autorização que recebeu de D. João III, a qual seria importante instrumento na administração das novas terras. Ainda, antes do nascimento da Justiça, surgiram os tributos, cobrados pela Metrópole, Portugal, sobre o fruto da extração de recursos naturais, sendo que em cada capitania hereditária, regime de divisão da terra introduzido em 1503, existia um funcionário, o feitor ou almoxarife, que tinha dentre outras, a função de arrecadar em nome do rei. A falta de arrecadação ou o desvio de tributos era duramente castigada. Logo, Justiça e tributos são contemporâneos, pelo menos no Brasil.

A vinculação entre o Judiciário e os tributos segue nos dias de hoje, considerando os relatórios do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)  — 2021 — que concluem haver, na atualidade, um excesso de litigância, colocando-se em evidência o fenômeno das demandas repetitivas. De acordo com o CNJ ao, reiteradamente, cometer lesões individuais, o poder público gera um uso abusivo e predatório do Judiciário brasileiro, o que causa "morosidade, ineficiência, falta de efetividade", assim comprometendo o acesso à Justiça e contribuindo para a desigualdade no país.

As discussões em matéria tributária ascendem, na esfera federal, a trilhões de reais. A quem creditar tudo isso? Ao brasileiro cujas origens evidenciariam um amor à litigância ou ao poder público que, como concluiu o CNJ, comete reiteradas lesões contra os cidadãos. Essa propalada lesão cometida pelo poder público, a nosso ver, pode decorrer de alguns fatores: (1) existência de comando normativo que deveria ser observado, e não o foi, no entendimento do Fisco, dando-lhe azo para autuar os contribuintes; (2) ausência de norma legal efetiva que autorize a cobrança do tributo; (3) falta de observância dos preceitos constitucionais na edição das normas e (4) inadequação da aplicação da norma pelo contribuinte ou pelo Fisco, por força de equivocada interpretação de qualquer uma das partes.

No que tange à norma legal, propriamente, o Brasil talvez seja o país que mais legisla e normatiza em matéria tributária. Nossa Constituição Federal contempla um Título (VI) denominado "Da tributação e do Orçamento", cujo Capítulo I trata do Sistema Tributário Nacional, que se desdobra em 12 diferentes artigos (145 a 156), longos e complexos, que minudenciam princípios e perfil dos tributos de competência dos diferentes entes federativos. Após a sua promulgação, a Constituição foi emendada inúmeras vezes, (18), apenas em matéria tributária.

Com o fito de estabelecer uma comparação, diga-se que a Constituição Espanhola, aprovada pelas Cortes em 31/10/1978 e ratificada por referendo popular em 6/12/1978, contempla apenas um artigo (133) que trata de tributos, dispondo que o poder originário para estabelecer tributos pertence, exclusivamente, ao Estado, mediante lei, permitindo-se às Comunidades Autônomas e às corporações locais estabelecer e exigir tributos, de acordo com a Constituição e as leis. De outro lado a Constituição espanhola sofreu apenas uma emenda, em setembro de 2011, que não trata de matéria tributária. Dirão muitos que os contextos são diversos e o Brasil é um país ainda novo (500 anos) em busca de definições.

Muito já se falou da complexidade de nosso sistema e do nível de regulação que a Constituição buscou como sendo uma garantia para o contribuinte, mas a realidade pode ser bem outra. Nos últimos tempos, muda-se a Lei Maior ao sabor dos interesses de momento, deixando ela de ser o instrumento maior de segurança do cidadão e do sistema. Afora a determinação constitucional sobre os tributos, temos as leis, ordinárias ou complementares, que regulam a tributação, na forma prevista constitucionalmente e, essas leis, relembre-se, também devem ser formuladas à luz dos ditames de uma norma, a Lei Complementar nº 95/98, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, de forma minudente, em atendimento ao parágrafo único do artigo 59 da Constituição. Esse regramento da Lei Complementar nº 95/98, supõe-se, voltado à adequada elaboração de uma lei para evitar conflitos supervenientes, se não observado, poderia comprometer, a nosso ver, a validade da lei editada. Contudo, os fatos são outros, as disposições dessa lei são ignoradas na feitura das normas e os tribunais consideram a sua inobservância, ao que parece, um pecado menor.

De tudo o que já se comentou, até aqui, infere-se que parte da litigiosidade do sistema tributário pode ter raízes na sua complexidade constitucional, bem como na inobservância de mínimos padrões de qualidade nas normas infraconstitucionais que ao seu redor orbitam. Assim, embora possa existir lei ordinária sobre a matéria tributária, o que é essencial para a exigência do tributo, essa norma pode não atender aos preceitos recomendados pela Lei Complementar nº 95/98. Um exemplo corriqueiro de ofensa a essa lei complementar é a edição de leis que não atendem ao disposto no seu artigo 7°, II, que determina que a lei não contenha "matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão". Essa figura de inserção de disposições ao longo dos debates congressuais ou a introdução de emendas que não guardam relação com a matéria discutida, é conhecida como "jabuti" e estaria agora vedada, conforme decidido na ADI nº 5127. Ainda que se observe a lei, dada sua complexidade, certamente haverá oportunidade para o fisco autuar os contribuintes.

No que tange à norma atender aos preceitos constitucionais (legalidade, isonomia, capacidade contributiva, não confisco, dentre outros) é essencial que o legislador ordinário assim o faça, pois essa é a única garantia de que o contribuinte desfruta. Esse é um tema corriqueiro em nossos tribunais, pois normas mal elaboradas afastam-se da observância das determinações constitucionais, ensejando a busca pelo Poder Judiciário como remédio extremo de proteção. Uma consulta à jurisprudência de nossos tribunais evidencia o número de temas envolvendo ofensas à Constituição perpetradas por leis ordinárias e, muitas vezes, por atos administrativos que sequer entram na categoria de normas legais. Foi o que ocorreu na recente decisão da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, por unanimidade, atendeu a pedido de contribuinte e reconheceu a ilegalidade da aplicação da metodologia de fixação do preço de transferência, por meio do método Preço de Revenda menos Lucro (PRL-60), nos termos definidos pelo artigo 12, parágrafo 11, da Instrução Normativa 243/2002 (AREsp 511.736). Chama a atenção o tempo da discussão, ou seja, exatos 20 anos! Considere-se, também, o número de contribuintes afetados, os valores envolvidos, os custos da discussão para as partes, bem como os tributos indevidamente pagos e que agora devem ser restituídos.

Por fim quanto à terceira indagação, ela envolve juízos de valor voltados à interpretação que Fisco e contribuinte fazem da norma, na sua aplicação. Assim, é legítimo que o contribuinte interprete a norma tributária, consoante seu entendimento e situação concreta, aplicando-a. O Fisco pode aceitar, ou não, o entendimento do contribuinte e autuá-lo, à luz dos fatos, mas, veja-se, o Fisco não pode de forma maliciosa, distorcer os fatos ou imputar ao contribuinte intenção que ele não teve. Na atualidade os contribuintes alegam que os fatos, em grande parte das vezes, são distorcidos pelo Fisco, de tal sorte que resultam descritas, pelas autoridades, situações que nunca ocorreram ou ocorrem, na prática. Estão enquadradas nessa condição as autuações de negócios jurídicos para os quais o Fisco alega a chamada ausência de propósito negocial nas operações realizadas.

Essa categoria de alegação, sem fundamento na lei brasileira visto que importada do direito anglo saxão, resulta por contaminar a totalidade da operação, pois na maior parte das circunstâncias as autoridades buscam elementos ocultos e não expressos nos contratos que evidenciariam a malicia do contribuinte que busca uma falsa economia tributária. Ora, nessa situação, nem os 12 artigos constitucionais, as 18 emendas constitucionais, tampouco as centenas de milhares de normas tributárias se prestam a proteger o cidadão da ganância fiscal pois ela está fundada em fatos e fundamentos falsos.

O maior exemplo do que se comenta e que envolve a alegada ausência de propósito negocial nas operações realizadas são as operações de aquisição de investimentos mediante pagamento de ágio que, na visão do Fisco, estariam todas contaminadas por comportamentos indevidos dos contribuintes, razão pela qual, só esporadicamente, passariam pelo crivo dos tribunais administrativos. Esse tema já chegou ao Poder Judiciário (50 casos) e tem tido, em algumas circunstâncias, aceitação dos tribunais, o que significa que em médio prazo a questão estará amplamente judicializada, entrando no cômputo da litigiosidade.

Diante desse cenário o que se pode fazer para garantir ao contribuinte a segurança de que necessita para manter sua atividade econômica? A nosso ver, é urgente uma revisão da legislação tributária com o objetivo de reduzir/consolidar normas, tanto no nível da lei ordinária quanto das normas infralegais. Essa revisão deveria levar em conta o regramento da Lei Complementar nº 95/98 para afastar as dúvidas e redundâncias que possam ser geradas na aplicação das leis. Dentre essas muitas questões a serem revistas, estão as regras decorrentes dos padrões internacionais de contabilidade, os IFRSs, visto que muitas de suas práticas não se encontram devidamente neutralizadas para fins de Imposto sobre a Renda, além de afetarem o cálculo de tributos sobre o patrimônio, como é o caso do Imposto de transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos, matéria nunca regulada.

Na revisão das normas legais deve-se tomar como modelo as normas que se têm mantido ao longo do tempo, sem alterações, como é o caso do artigo 47, da Lei nº 4.506/64, lei básica do Imposto sobre a Renda, que trata das despesas operacionais, ou seja, gastos não computados nos custos, necessários à atividade da empresa e à manutenção da respectiva fonte produtora. Durante o referido XXV Congresso da Abradt, pudemos falar desse tema e enfatizamos que essa disposição, ainda que vetusta, é objetiva, completa e acabada, não admitindo dúvidas. Observe-se que o conceito de despesa operacional tem o atributo de ser atemporal, pois nele se incluem todos os tipos de atividades, as atualmente praticadas, de acordo com o momento econômico e outras praticadas no passado, porque então exigidas, mas descontinuadas, não importa por qual razão.

Ninguém tem dúvida de que a despesa operacional está diretamente vinculada com a atividade social, como desenvolvida pela entidade, ainda que não incorporada nos seus documentos societários. Cabe aqui uma breve referência à Lei nº 6.404/76 que em seu artigo 176, ao tratar das Demonstrações Financeiras e do lucro líquido, faz referência às despesas operacionais, tendo a Lei nº 11638/07 eliminado a expressão despesa não operacional a indicar que toda e qualquer despesa de uma entidade há de ser operacional, em atendimento a seus propósitos. E o administrador a isso deve estar atento (artigo 153, da mesma lei), sob pena de ser demandado por má gestão. Essa determinação da lei societária não pode ser desconsiderada pelas normas tributárias.

Para que a entidade bem cumpra no atendimento das normas societárias e tributárias voltadas às despesas operacionais, importantes programas de governança corporativa tributária vêm sendo implantados nas sociedades criando requisitos formais e documentais para tanto.

A despeito da clareza das normas societárias e tributárias e dos programas de compliance, a despesa operacional é objeto reiterado de autuações e discussões nos tribunais, especialmente administrativos, o que faz com que elas também sejam abraçadas pela onda da litigiosidade. É importante reiterar que as despesas operacionais, de acordo com a lei, são as necessárias à atividade, bem como aquelas exigidas para a manutenção da fonte produtora.

No que tange à atividade, a despesa deve estar associada ao tipo de negócio desenvolvido, bem como a ações que buscam a manutenção das condições de competitividade, Quanto à fonte produtora, corresponde ela ao conjunto de ativos tangíveis e intangíveis que geram/movem os negócios. que se refere aos intangíveis, esclareça-se que eles não têm expressão contábil e correspondem ao nome, conhecimento técnico, quadro de especialistas, preocupação com o meio ambiente, credibilidade, estabilidade, tradição, confiança e outros, sendo que qualquer ameaça à integridade desse conjunto de atributos pode resultar na perda de reputação. Assim gastos com esse objetivo são, necessariamente, dedutíveis, citando-se a esse título multas, que não sejam fiscais, pagas a agentes reguladores e a clientes/fornecedores, multas em acordos de leniência, propinas exigidas para operar, recall para substituição de partes e peças, dentre outras.

O próximo teste pelo qual as empresas deverão passar, a nosso ver, diz respeito aos gastos incorridos por conta da pandemia, quer com seus funcionários, quer com as comunidades onde estão instaladas, que sem dúvida serão, por certo, questionados pelo Fisco como não atendendo aos critérios de operacionalidade para sua dedução. É esperar para conferir.

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  • é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS e advogada em São Paulo.

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