Opinião

Reforma green da Constituição italiana, o green deal europeu e o Brasil

Autor

  • Andrea Marighetto

    é advogado doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito summa cum laude pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

25 de outubro de 2022, 14h00

Após anos de debates e discussões, a Constituição italiana se adequa às tendências globais em matéria de tutela de meio ambiente. Foi há pouco aprovada definitivamente a proposta de lei que modifica a Carta Constitucional. No especifico, hão sido alterados dois artigos: o artigo 9º e o artigo 41º da Constituição italiana. O objetivo foi o de (literalmente) tutelar e proteger o meio ambiente, a biodiversidade, os animais, e os ecossistemas no interesse das futuras gerações.

Spacca
Vale evidenciar que qualquer processo de modificação da Carta Constitucional italiana não é imediato, mas exige a superação de um iter bem burocrático. Todas as eventuais modificações podem ser realizadas unicamente através de Lei, que seja votada em duas sucessivas deliberações pela maioria absoluta dos membros de cada Câmara, dentro de um prazo de intervalo não inferior a três meses. Só assim o iter de aprovação será completo. Caso não seja possível conseguir a maioria absoluta, o iter de aprovação precisará  também de "passar" pelo referendum popular[1]. Em relação ao caso especifico das alterações aos artigos 9º e 41º, as deliberações a maioria absoluta aconteceram no dia 9 de junho 2021 e 3 de novembro de 2021 pelo Senado e 12 de outubro e 9 de fevereiro 2022 pela Câmara dos Deputados.  

A reforma é sem duvida muito significativa, não unicamente pelo conteúdo material de que trata, mas pela própria forma através da qual esta reforma está sendo realizada, ou seja, per meio da alteração da Primeira Parte (a dos Princípios Fundamentais), que nunca foi alterada desde a sua adoção em 1948. A "ultima" relevante alteração teve com Lei Constitucional nº 3° de 18 de outubro de 2001, quando foi modificado completamente o Capo V, 2ª Parte, da Carta[2]. Esta outra importante reforma de 2001 promoveu a descentralização da função administrativa e legislativa estabelecendo nova e diferente repartição das competências normativas entre regiões, províncias e municípios, em respeito à promoção dos princípios de subsidiariedade e do federalismo na governança das administrações públicas dos estados membros assim como disposto pelo Livro Branco da EU sobre Governance[3].

Voltando à atual reforma, os novos artigos estão assim formulados: (a) art 9º "A Republica promove o desenvolvimento da cultura, da pesquisa cientifica e da técnica. Tutela a paisagem e o patrimônio histórico e artístico do Pais. Tutela o meio ambiente, a biodiversidade e os ecossistemas, também no interesse das futuras gerações. A lei do Estado disciplina as modalidade e as formas de tutela dos animais"; (b) art 41º "A iniciativa econômica privada é livre. Não pode ser desenvolvida em contrasto com a utilidade social ou de forma a causar dano à segurança, à liberdade, à dignidade humana, à saúde, ao meio ambiente. A lei determina os programas e os controles oportunos para que a atividade econômica publica e privada possa ser endereçada e coordenada aos fins sociais e ambientais".

Esta redação é em linha com a normativa da União Europeia, em particular, da Carta de Nice que dispõe sobre os Direitos Fundamentais da União Europeia[4]. A carta trata da tutela do meio ambiente ao artigo 37º, que dispõe "um nível elevado de tutela do meio ambiente e o melhoramento da sua qualidade devem ser integrados nas politicas da União e garantidos em conformidade ao principio do desenvolvimento sustentável"[5]. Paralelamente, também está em linha com o Tratado sobre o funcionamento da União Europeia (TFUE) ao artigo 191º que define a politica europeia do meio ambiente[6]. Além do mais, a Constituição italiana, após desta reforma, se alinha a Europa com a Constituição espanhola de 1978, a Constituição holandesa de 1983, a Constituição alemã de 1994 e a Constituição francesa de 2005, além de integrar mais radicalmente o programa europeu "Agenda 2030", ou seja, para a realização de um desenvolvimento sustentável "greener, safer and better"[7].

A "nova" tutela do meio ambiente — hoje verdadeiro valor constitucional protegido — extrapola de uma visual exclusivamente "antropológica" ou "em função de ser humano", mas assume a conotação de especifica entidade orgânica complexa ou, melhor, de bem jurídico unitário de valor primário constitucionalmente protegido. É interessante evidenciar como a jurisprudência constitucional já fazia tempo que vinha reconhecendo o meio ambiente como valor unitário constitucionalmente garantido, mas é o atual reconhecimento explicito que, de um lado, consolida esta interpretação; doutro, põe novas questões sobretudo em relação à modificação do artigo 41º da Constituição. O artigo 41º, de fato, trata do principio da iniciativa econômica e dos seus limites, que — hoje ainda mais — [o principio da iniciativa econômica] há a ser limitado e (ou) regulamentado para que não cause dano ao meio ambiente, e não viole fins sociais e ambientais.

Apesar do reconhecimento do meio ambiente qual valor primário constitucionalmente garantido, a necessidade de manter a centralidade do Ser Humano e dos Direitos Fundamentais da Pessoa no Sistema de Direito como tudo é considerado mecanismo imprescindível e eficaz para garantir a tutela do meio ambiente e a luta à mudança climática. De um lado, foi evidenciado que a possibilidade de garantir o respeito dos Direitos Humanos das futuras gerações depende principalmente da realização de estratégia ambiental comum apta a garantir primariamente a sua própria existência; doutro lado, foi outrossim destacado que a centralidade do Ser Humano e o seu relacionamento direto com a tutela do Meio Ambiente nos permite de compreender o comprometimento do Ser Humano com o Meio Ambiente, não unicamente no que releva a tutela do Meio Ambiente em si, mas também a consequente e necessária insurgência dos deveres e das responsabilidade do Ser Humano a tutela do Meio Ambiente.

A Carta Constitucional, assim como integrada pela tutela do Meio Ambiente, permite de adaptar princípios de origem supranacional (como, exatamente, a tutela do Meio Ambiente) ao Ordenamento Jurídico nacional e às suas próprias características, especificando-os e esclarecendo questões transversais relacionadas entre matérias, institutos e competências, oferecendo — desta forma — um tipo de racionalização da normativa existente. Assim, por exemplo, a inclusão do valor do Meio Ambiente permite de justificar a existência de deveres para proteger a natureza reconduzíveis a todos os cidadãos.

A reforma, no entanto, introduz [aparentemente] duas importantes limitações (ou melhor, regulamentações) ao exercício da atividade econômica: (i) de um lado, não poder produzir dano à saúde e ao meio ambiente; (ii) doutro, não pode violar segurança, liberdade e dignidade humana. O respeito da saúde e do meio ambiente são — portanto — antepostos aos outros limites, frisando de forma clara e expressa que a tutela do meio ambiente é de jure valor primário a ser tutelado. Da mesma forma, a destinação e a própria coordenação de atividade econômica publica e privada deverá seguir finalidades sociais mas também ambientais.

A nova normativa comporta consequências diretas no âmbito da gestão e da estratégia das empresas, especificando ainda mais as suas funções sociais. Em outras palavras,  os critérios de proteção e tutela do meio ambiente, juntamente ao impacto social das politicas e da gestão empresariais, assumirão sempre mais importância em linha e nos limites previstos pela lei, assim como será  sempre mais relevante a utilização de instrumentos de gestão inspirados a princípios éticos e de boas praticas. Em outras palavras, a reforma introduz novos limites à liberdade empresarial ou seja à iniciativa econômica privada, sendo que esta ultima [a iniciativa econômica privada] não poderá [por Lei Constitucional] provocar dano à saúde, ao meio ambiente,  assim como (quase em um plano mais baixo) à segurança, à liberdade, à dignidade humana, sendo que — como acima mencionado — os princípios da tutela à saúde e ao meio ambiente são considerados primários (antepostos aos outros)!!

A ratio da norma é, portanto, a de atribuir ao meio ambiente "dignidade autônoma", no sentido de querer tutelar os seres viventes  em quanto tais, e não unicamente como instrumentos ou recursos da humanidade. A tutela ao meio ambiente não pode, portanto, ser considerada mais em uma ótica puramente antropocêntrica, ou seja, instrumental ou — de qualquer forma — ligada à saúde do homem. Trata-se de uma concepção objetiva do meio ambiente que mira a conceituar o meio ambiente como valor (supremo) verso o qual todas as leis e as ações do Estado se devem conformar.

É interessante remarcar que o legislador italiano interviu diretamente na Carta Constitucional de forma que — parafraseando Perlingeri — as normas constitucionais vinculam não apenas o Poder Legislativo, mas qualquer poder legitimado a criar regras que concorram a compor o Ordenamento Jurídico, incluindo não unicamente as relações entre as entidades públicas e privados mas a própria auto-regulamentação reconhecida e garantida para o exercício da autonomia privada entre os privados[8].

O principio constitucional prevalece sempre sobre a norma ordinária, mesmo que — em caso de contrasto ou de simples questão interpretativa entre o primeiro e a segunda — esta prevalência haja a ser "reconhecida" por pronuncia da Corte Constitucional[9]. Consequentemente, há a se destacar que o princípio constitucional é algo mais importante da simples norma que "ajuda" na interpretação de outra norma, enquanto é verdadeiro critério ato a definir a validade das leis, não unicamente no sentido de apurar a validade das leis, mas, no sentido que — a partir deles — é feita e construída a própria interpretação sistemática de todo o Ordenamento Jurídico[10].

A modificação representa a base para nova relação entre poder publico e mercado, com possível re-expansão da própria economia em linha com o novo plano de politica econômica criado em âmbito da União Europeia para promover relevantes investimentos públicos, no especifico, no campo da energia, da politica industrial e da mobilidade, dentro de uma ótica de pura transição energética: o assim chamado Green Deal[11].

 Assim como com o plano de reconstrução econômica chamado de New Deal[12], o Green Deal da União Europeia se propõe de promover um (novo) desenvolvimento econômico mais "verde", mais "digital" e mais "resiliente".

Em linha com esta nova impostação da politica econômica Europeia, as alterações inseridas à Carta Constitucional da Itália refletem a exigência e vontade de "modificar" o próprio escopo e função da empresa: no sentido de privilegiar não mais unicamente a pura maximização do lucro, mas [esta alteração] irá a incluir a sustentabilidade e(ou) responsabilidade social da empresa, comportando de facto a internacionalização das exigências globais a tutela do Meio Ambiente no contesto da própria finalidade da empresa. Em outras palavras, a nova disciplina não somente estabelece que a tutela do meio ambiente é [hoje] a se considerar um interesse publico prevalente que se impõe [abstratamente] aos privados, regulamentando (e até limitando) a liberdade de iniciativa econômica, mas permite ao legislador de intervir normativamente no que é o próprio interesse da empresa e do tipo de atividade é exercitada por essa[13].

Sempre em âmbito da União Europeia, na mesma linha do Green Deal, a proposta de Diretiva em matéria de Due Diligence foca na sustentabilidade e regulamenta como "as grandes empresas" poderão ter acesso ao mercado europeu e [em relação a isso] a proposta de diretiva exige que as empresas implementem sistemas e procedimentos idôneos a prevenir o impacto negativo verso os Direitos Humanos e o Meio Ambiente causado pelas suas atividades. Desta forma, a atual modifica da Carta Constitucional italiana, em linha com as atuais e similares experiências na Alemanha e na França, cria as bases para que a intervenção publica possa intervir diretamente na atividade econômica privada.

No especifico, em relação à Alemanha, a Lei de 27 outubro de 1994 integrou a Carta Constitucional com o artigo 20A, o qual estabelece que o Estado e os Poderes Públicos possuem a responsabilidade de tutelar os "fundamentos naturais" da vida (que incluem clima e meio ambiente) e dos animais, também no interesse das gerações futuras[14]. O próprio Tribunal Constitucional Alemão (Bundes-Klimaschutzgesetz), em recente sentença de 2019, estabeleceu a importância do balanceamento dos interesses envolvidos e as consequências irreversíveis do aumento da poluição no meio ambiente[15]. Em relação à França, há a se destacar que a emenda constitucional de 1º de março de 2005 modificou o preambulo da Carta Constitucional inserindo a referencia à Charte de l’environnement de 2004, atribuindo plena legitimação e eficácia constitucional de jure aos “novos” Direitos indicados pela Charte de forma a estender a eficácia jurídica constitucional também para a tutela do Meio Ambiente, de forma que a França «préserve l’environnement ainsi que la diversité biologique et agit contre le dérèglement climatique, dans les conditions prévues par la Charte de l’environnement de 2004»[16].

Dentro das outras experiencias comparatistas, há a se destacar também o exemplo da Carta Constitucional do Brasil, que já em 1988 — no seu artigo 225 — inseriu uma disposição normativa que estabelece que todos possuem o direito de viver em um ambiente "ecologicamente equilibrado", e que os Poderes Públicos possuem detalhadas series de obrigações para garantir a efetividade da disposição Constitucional[17]. Também em linha com as tanto expressas quanto implícitas normativas acima citadas, frisa-se a especifica: "o art. 225, § 1º, V, da CF (a) legitima medidas de controle da produção, da comercialização e do emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportam risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente, sempre que necessárias, adequadas e suficientes para assegurar a efetividade do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado; (b) deslegitima, por insuficientes, medidas incapazes de aliviar satisfatoriamente o risco gerado para a vida, para a qualidade de vida e para o meio ambiente; e (c) ampara eventual vedação, banimento ou proibição dirigida a técnicas, métodos e substâncias, quando nenhuma outra medida de controle se mostrar efetiva. (…)"[18].

As Cartas Constitucionais, assim como a legislação europeia, demonstram o fundamento da interpretação legislativa evolutiva que permitiu de considerar a tutela do meio ambiente entre os princípios e os objetivos primários dos Estados, no que concretiza o próprio valor constitucional da tutela do meio ambiente e a individualização dos instrumentos necessários para sua atuação.


[1] Veja-se o art. 138, 1º comma, Constituição Italiana.

[2] Cf. MARIGHETTO, A. O "federalismo" na Constituição italiana. In: Cezar Saldanha Souza Junior; Marta Marques Avila. (Org.). Coleção Direito do Estado – Estudos sobre o Federalismo. Porto Alegre, Doravante, 2007.

[8] PERLINGIERI Pietro.  Applicazione e controllo nell'interpretazione giuridica, em Rivista di diritto civile, 2010, n. 3, p. 317.

[9] PALADIN. Livio. Diritto Costituzionale. Cedam, 1996.

[10]PERLINGIERI, Pietro. Giustizia secondo Costituzione ed ermeneutica. L’interpretazione c.d. adeguatrice, in AA.VV., Interpretazione a fini applicativi e legittimità costituzionale, Napoli, 2006.

[12] Programa de politica econômica promovido pelo Presidente dos Estado Unidos de América Roosevelt nos anos 30 do XX Sec.

[13] MONTALDO, R. Il valore costituzionale dell’ambiente, tra doveri di solidarietà e prospettive di riforma, in Forum di Quaderni Costituzionali n. 2 de 2021.   

[14] Literalmente «Der Staat schützt auch in Verantwortung für die künftigen Generationen die natürlichen Lebensgrundlagen und die Tiere im Rahmen der verfassungsmäßigen Ordnung durch die Gesetzgebung und nach Maßgabe von Gesetz und Recht durch die vollziehende Gewalt und die Rechtsprechung» (art. 20A GG).  A referencia aos animais foi introduzido através da Lei de revisão de 26 Julho de 2002.

[15] Bundesverfassungsgericht, Beschluss vom 24. März 2021 – 1 BvR 2656/18, Leitsätze, 4

[16] CAPITANI, A.  La Charte de l’environnement, un leurre constitutionnel ?, RFDC, 2005, n° 63, p. 493.

[17] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Saraiva, 2017.

[18] Cf. ADI 4.066, rel. min. Rosa Weber, j. 24-8-2017, P, DJE de 7-3-2018.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito, summa cum laude, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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