Embargos culturais

As cartas trocadas entre Celso Furtado e Roberto Campos

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  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

23 de outubro de 2022, 8h00

Em 2021 a Companhia das Letras publicou a "Correspondência Intelectual" do economista Celso Furtado. Ler cartas dos outros, escritas para os outros, é uma bisbilhotice deliciosa. Adoro, por exemplo, as cartas do Rubens Gomes de Sousa para o Aliomar Baleeiro, nas quais se tem a história da construção do Código Tributário Nacional. Ainda publicarei essas cartas, se tiver editor e autorizações necessárias. Os comentários já estão prontos, exatamente o que disse Rubens Gomes de Souza, na expectativa (longa) de aprovação do Código. Adoro também cartas imaginárias, como as "Cartas Persas", de Montesquieu, que acho que já comentei aqui na ConJur. Montesquieu ria do Rei, cuja amante tinha 70 anos e o conselheiro 20.

Spacca
Em “Correspondência Intelectual” lemos cartas que revelam personagens de primeira grandeza intelectual. Com primorosa apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar, jornalista, que foi correspondente da Manchete e da IstoÉ em Paris, e que já havia editado os “Diários Intermintentes”, viúva de Celso Furtado, o livro é um passeio pela história das ideias. Há interlocutores brasileiros (Antonio Callado, Antonio Cândido, Darcy Ribeiro, FHC, Francisco Iglesias, Francisco Weffort, Helio Jaguaribe, Márcio Moreira Alves, Maria da Conceição Tavares, e tantos outros), estrangeiros (Raúl Prebisch não poderia faltar). Um posfácio de Luiz Felipe de Alencastro fecha o livro.

Comento hoje a sessão das cartas trocadas entre Celso Furtado e os liberais, mais objetivamente, com Eugenio Gudin e Roberto Campos. Essas cartas mostram relações cordiais, respeitosas e prospectivas entre protagonistas de pensamentos distintos. Essas cartas são datadas de 1952 a 1958. Celso Furtado vivia em Santiago do Chile, onde trabalhava na Comissão Econômica para a América Latina, a CEPAL.

No Brasil havia sido criado o Banco de Desenvolvimento Econômico, dirigido por Roberto Campos, que convidara Celso Furtado para trabalhar nesse importante marco do desenvolvimentismo brasileiro. Furtado mostrava-se interessado, ainda que comprometido com as tarefas e projetos que tocava na CEPAL. Campos tinha carta branca para montar sua equipe.

Porém, havia a exigência de concursos de provas e títulos, que acreditava ser necessário apenas a seleção de um economista júnior. Um sênior, no caso do convidado, era uma ave tão rara, que havia necessidade de adulá-lo e seduzi-lo, a peso de ouro, ao invés de examiná-los. Contornaria a rigidez da lei, prevendo apenas a apresentação de títulos e trabalhos feitos, suplementando-os (a linguagem é do missivista) com um exame oral que se limitaria a “uma agradável tertúlia econômica”. Campos acabou se desentendo com demais gestores do Banco, deixando a empreitada, para a qual volto mais tarde. Furtado não pode aceitar o convite, do modo como proposto, no sentido de ficar definitivamente no Brasil, dado seu envolvimento com o projeto cepaliano.

Em outra carta Furtado avisava a ampos que o economista Nicolas Kaldor poderia vir até o Brasil dar algumas conferências e estudar o sistema fiscal brasileiro. Lembremo-nos que estávamos numa época anterior ao CTN e à emenda constitucional dos anos 60 que fixou um modelo tributário cujas linhas gerais até hoje são mantidas. A CEPAL resistia em liberar Furtado para o Brasil, segundo Campos, porque havia uma tradição contrária à designação de nativos (Furtado era brasileiro e havia resistência para que trabalhasse no Brasil), a par de um êxodo de economistas de Santiago, o que tornava necessário o reforço do pessoal que trabalhava no Chile.

Campos insistia. Lamentava os economistas que liderava, que confundiam sociologia com economia, e que interpretavam o mundo “não mais em termos de alocação de recursos, mas em termos de categorias ideológicas, e sobretudo possuída de uma frenética hostilidade à exportação e de um fervor passional pela inflação”. Campos dizia-se cansado de pregar o evangelho da produtividade. Ninguém ouvia, ou praticava, ou defendia essas pregações. Furtado insistia que o Brasil precisávamos de uma profunda reforma fiscal.

Mais tarde, Campos convidou Furtado para presidir a Superintendência da Moeda e do Crédito-SUMOC, entidade antecessora do Banco Central. Furtado respondeu que Campos era um sádico, e que, com o convite, tinha a prova. Um desencontro entre os missivistas resultou na indicação de outro nome, que Campos temia ser um “paulista rico e analfabeto”.

A correspondência entre Furtado e Campos mostra-nos que pessoas inteligentes, e divergentes nas ideias, ainda assim se completam e se elevam. Certa vez ouvi o filho de Campos dizer que o pai lia compulsivamente as pessoas em relações às quais pensava diferentemente. Esperava ser convencido, buscava argumentos e contra-argumentos. Refratário à tradição marxista, Campos conhecia o materialismo histórico como poucos. De igual modo, desenvolvimentista, e distante da tradição liberal, Furtado conhecia os pensadores do livre-mercado como poucos. Essa disponibilidade para ouvir o outro, o contrário, o opositor, para melhor compreender e argumentar, é o que marca o intelectual autêntico, cuja autenticidade o faz também uma pessoa de ação.

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