Opinião

O mito de Prometeu e a advocacia criminal como vanguarda dos direitos humanos

Autor

  • Natan do Prado Zabotto

    é especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas campus de Poços de Caldas) advogado criminalista e professor de Direito nas disciplinas de Processo Penal e Ética e Estatuto da OAB.

21 de outubro de 2022, 21h26

Nascido em Elêusis, na Grécia, em 525 ou 524 a. C., e morto em 456 a. C. [1], Ésquilo foi um grande dramaturgo da tragédia clássica.

Prometeu figura entre suas principais peças, cujo título representa o nome da divindade mítica que, de acordo com a mitologia grega, teria criado o ser humano a partir do limo [2].

Por nutrir profundo amor pela humanidade, Prometeu entregou à espécie humana, sem nenhuma exceção e ausente qualquer preconceito, o fogo reservado privativamente aos deuses, permitindo-lhe que passasse, então, a ter acesso ao conhecimento, com o qual conceberia a dignidade, a liberdade e tantos outros valores.

Ocorre que tal comportamento ousado despertou a ira de Zeus, que não gostou de saber que alguém distribuiu aos mortais um privilégio que ele queria somente para si e para os seus. Por isso, como castigo, o rei dos deuses, do alto de sua arrogância, determinou que Hefesto acorrentasse Prometeu a uma rocha situada num lugar remoto do mundo (região deserta correspondente à atual Rússia [3]). Como Prometeu não se intimidasse e não se curvasse aos severos caprichos de Zeus, este proferiu nova sentença: todos os dias a mais hedionda ave de rapina deveria consumir-lhe o fígado, que se regeneraria durante a noite, para que o doloroso ataque se repetisse "todos os dias e para todo o sempre" [4].

Mas nem assim nosso herói — considerado pelo deus Hermes como "grande ilusionista da palavra, inimigo dos deuses e aficionado aos mortais" [5] — nem assim nosso herói cedeu. Tampouco os conselhos do titã Oceano para que segurasse "sua língua rebelde" [6] o detiveram. Ao contrário, ciente dos tormentos que enfrentaria por defender o gênero humano, preferiu manter-se ao lado dos mortais e seguir vigorosamente com o seu intento de salvaguardar a dignidade humana, até, enfim, ser libertado por Hércules, vencendo o autoritarismo de Zeus [7].

A figura de Prometeu, narrada na peça, pode ser vista, alegoricamente, como a representação eloquente do advogado criminalista que, conhecedor do seu papel de zelador dos direitos humanos e da justiça social (artigo 44, I, da Lei 8.906/1994 [8]; artigos  2º [9] e 23 [10] do Código de Ética e disciplina da OAB e artigo 20 [11] do Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB combinados com o artigo 1º, III, da Constituição Federal [12]), age, "como defensor, no sentido de que a todos seja concedido tratamento condizente com a dignidade da pessoa humana, sob a égide das garantias constitucionais".

Está ciente, ademais, que "Ao advogado é vedado amedrontar-se, seja subjugando-se à autoridade pública, seja atuando com receio de incorrer em impopularidade" [13] (Lei 8.906/1994, artigos 6º [14] e 31, §2º [15]), e por isso resiste na defesa desses direitos inegociáveis, que a todos, sem distinção, devem ser assegurados.  

Acontece que essa incansável resistência, essa "ousadia" de defender o Estado de direito e a legalidade democrática, por vezes, muito embora legítima, faz com que o criminalista seja acorrentado aos preconceitos e incompreensões que acometem algumas incautas autoridades e parcela desavisada (ou mal intencionada) da imprensa e (consequentemente) da própria sociedade civil, que confundem a figura do advogado com a pessoa do defendido, que, aliás, a despeito da acusação imputada, não é objeto do estado, mas sujeito de direitos.

Mesquinhamente encasteladas em seu Olimpo e com as vistas turvadas por sua "miopia social" (Darcy Ribeiro [16]), essas pessoas parecem pretender somente para si e para os seus o fogo das liberdades constitucionais, negando-o aos desconhecidos, aos seres que julgam "inferiores", aos quais deve ser reservado somente o braço duro do sistema penal.   

Esquecem-se, todavia, que, em relação ao crime, em face do qual professam uma "fé quase que religiosa na pena" (Nilo Batista) [17] — que "constitui na verdade uma cortina de fumaça que esconde os verdadeiros objetivos sociais e políticos das opressões punitivas" [18] —, as variáveis "essenciais do problema são sociais e somente transformações importantes na organização geral da sociedade resultarão em transformações na criminalidade por ela produzida" [19].

Mesmo, porém, quando o preconceito se agrava através de arroubos punitivistas, e mesmo quando o advogado criminal é diretamente atacado com agressivas ofensas, habituais violações de prerrogativas e abusos de autoridade, revelando-se verdadeiras bicadas no fígado que se renovam diariamente, ele resiste, tal como Prometeu. E o faz porque tem consciência do seu papel e sabe que a maré montante do autoritarismo — com seu oportunismo político sempre mirando a supressão das garantias fundamentais dos "mortais" — não prevalecerá.  

Não enquanto houver a voz serenamente "rebelde" da Advocacia Criminal; não enquanto existir no advogado aquilo que nosso necessário penalista Nilo Batista chamou de "uma saudável irresignação, uma capacidade de indignar-se e de lutar que é um pouco a seiva das transformações históricas" [20].

De fato, na história contemporânea ocidental, desde a Revolução Francesa, passando pelas não tão distantes ditaduras militares latino-americanas (inclusive a que assolou nosso país), até os mais recentes episódios nada republicanos protagonizados no âmbito das assim chamadas "operações" persecutórias ocorridas no Brasil, o que se pôde notar é que os autoritarismos, muito embora avancem pelo sistema penal [21], nunca conseguiram calar a Advocacia, que sempre se manteve sólida na vanguarda da defesa da dignidade humana.

Como proclamou o grande advogado Sobral Pinto, incansável defensor dos direitos humanos, em carta encaminhada ao estão presidente Castello Branco, em 09 de abril de 1984: "[…] Só tenho uma arma, senhor presidente: a minha palavra franca, leal e indomável" [22].

E, munidos dessa arma, consoante advertiu Heleno Claudio Fragoso, "Os advogados têm de estar na linha de frente da defesa dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. É essa a autêntica responsabilidade histórica que nos cumpre assumir" [23]. Sigamos firmes nesse propósito.

 


[1] AGUIAR, Luiz Antônio. Prometeu/Ésquilo; Alceste/Eurípedes; adaptação: Luiz Antônio Aguar; ilustrações: Marcelo Pimentel; 2ª ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010 (o mais atual do teatro clássico, v. 2), p. 58.

[2] AGUIAR, Luiz Antônio, op. cit., p. 15.

[3] AGUIAR, Luiz Antônio, op. cit., p. 16.

[4] AGUIAR, Luiz Antônio, op. cit., p. 54.

[5] AGUIAR, Luiz Antônio, op. cit., p. 51.

[6] AGUIAR, Luiz Antônio, op. cit., p. 31.

[7] AGUIAR, Luiz Antônio, op. cit., p. 57.

[8] Artigo 44. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tem por finalidade:

I – Defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas;

[9] Artigo 2º. O advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do Estado Democrático de Direito, dos direitos humanos e garantias fundamentais, da cidadania, da moralidade, da Justiça e da paz social, cumprindo-lhe exercer o seu ministério em consonância com a sua elevada função pública e com os valores que lhe são inerentes.

[10] Artigo 23. É direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado. Parágrafo único. Não há causa criminal indigna de defesa, cumprindo ao advogado agir, como defensor, no sentido de que a todos seja concedido tratamento condizente com a dignidade da pessoa humana, sob a égide das garantias constitucionais.

[11] Art. 20. O requerente à inscrição principal no quadro de advogados presta o seguinte compromisso perante o Conselho Seccional, a Diretoria ou o Conselho da Subseção: "Prometo exercer a advocacia com dignidade e independência, observar a ética, os deveres e prerrogativas profissionais e defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas".

[12] Artigo 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III – a dignidade da pessoa humana.

[13] FELDENS, Luciano. O direito de defesa: a tutela jurídica da liberdade na perspectiva da defesa penal efetiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021, p. 135.

[14] Artigo 6º Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos.

[15] Nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão

[16] RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, 3ª ed.  São Paulo: Global, 2015, p. 21.  

[17] BATISTA, Nilo, Capítulos de política criminal, 1ª ed.  Rio de Janeiro: Revan, 2022, p. 234.

[18] BATISTA, Nilo, op. cit., p. 266-267.

[19] BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje, Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 178.

[20] BATISTA, Nilo. op. cit., p. 178.

[21] BATISTA, Nilo. op. cit., p. 266.

[23] BATISTA, Nilo. op. cit., p. 97.

Autores

  • é advogado criminalista, professor de Direito e especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), Campus de Poços de Caldas - MG.

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