Opinião

Diferença jurídica entre criptomoedas, tokens e NFTs de acordo com a UE

Autor

  • Fernando Lopes

    é advogado membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico consultor jurídico do projeto Cyberskies e professor da pós-graduação em Investimentos e Blockchain da EA Banking School.

15 de outubro de 2022, 6h32

Proposta de regulamentação produzida pela União Europeia conhecida pela sigla MiCA, Markets in Crypto-assets, cuja versão final deverá ser votada em breve é pioneira no sentido de prover uma distinção entre algumas das principais espécies de criptoativos.

A técnica utilizada pelo legislador europeu é iniciar por meio de uma definição geral, capaz de abranger todas as categorias, para posteriormente enunciar três subcategorias principais, passando-se, enfim, a descrever outras espécies, a exemplo das criptomoedas e dos NFTs, conforme exigido pelo contexto do documento.  

Portanto, no artigo 3º da proposta, apresenta-se o conceito geral de criptoativos, isto é: uma representação de valor ou direito passível de ser transferida eletronicamente mediante uso de DLTs (distributed ledger technologies) ou tecnologias similares[1].

Após o estabelecimento desse conceito geral, enuncia-se a existência de três espécies, ou "três subcategorias de criptoativos que devem ser distinguidas e sujeitas a diferentes exigências regulatórias a depender do risco que ofereçam" [2]

Essas três subcategories são as seguintes: asset-referenced token, e-money token e utility token.

Asset-referenced token são smart contracts [3] usados com a finalidade de representar o valor de outro bem ou direito, tal como ocorre, por exemplo, nos casos em que o emissor do token afirma que o valor deste equivale a uma grama de ouro ou de outra commodity.

Porém, quando o bem representado for a moeda oficial de algum país, esses tokens [4] são chamados de e-money tokens. Enfim, utility token é um meio para um fim, ou seja, a posse dessa espécie de token garante ao possuidor acesso a determinados bens ou serviços.

Já os NFTs foram definidos como criptoativos "únicos e não fungíveis com outros criptoativos, incluindo artes digitais e colecionáveis, cujo valor é atribuído em virtude de características únicas da utilidade atribuída ao possuidor" [5].

Esses criptoativos embora definidos não foram regulamentados, visto que dado suas características possuem uso financeiro limitado, e não apresentam riscos substanciais ao sistema ao aos usuários [6].  

Porém, demonstrando conhecimento técnico sobre o mercado, o legislador europeu não excluiu do escopo regulatório os chamados fractional nfts [7], ou seja, partes de um NFT, comercializadas no mercado, ainda que cada parte possua um identificador único, chamado tecnicamente de tokenId.

Nesse sentido, as frações de um único e não fungível crypto-asset não deve ser considerada única e infungível [8], não estando excluída da proposta de regulamentação.

Os chamados tokens imobiliários (real state), independentemente de serem representados por NFTs ou por tokens [9], desde que usados para representar um bem infungível, tal como uma casa, também estão excluídos, justificadamente, da regulamentação [10].

Enfim, as criptomoedas, a exemplo do Bitcoin, também foram definidas e logicamente excluídas da regulamentação[11], devendo ser consideradas como "automaticamente criadas como recompensa, seja pela manutenção do sistema DLT, seja pela validação das transações no contexto do uso dos mecanismos de consenso"[12]

Importante que sempre se tenha bem clara a diferença entre aspectos técnicos e jurídicos, pois um mesmo token, concebido tecnicamente como um smart contract criado de acordo com o padrão ERC20 ou qualquer outro, pode ser utilizado para representar as três espécies jurídicas de tokens, isto é: asset-referenced token, e-money token e utility token.

Nesse contexto, mesmo no caso dos NFTs, não é a denominação ou tecnologia que será decisiva para atribuição dos efeitos jurídicos, valendo a regra jurídica da substância sobre a forma:

"Esta regulamentação também deve ser aplicada para criptoativos que parecem únicos e não fungíveis, mas cujas caraterísticas de facto ou características relacionadas aos usos de facto possam torna-los ou fungíveis ou não únicos. Nesse sentido, quando forem avaliá-los ou classificá-los, as autoridades competentes devem adotar a técnica da substância sobre a forma, de modo a que as características do ativo em questão determinem sua qualificação, não a designação atribuída pelo emissor [13]" (tradução livre).

Ademais, as exclusões de determinados criptoativos ocorre por vontade do legislador que não é obrigado a criar lei para tudo, devendo se ater sempre aos objetivos da legislação, em especial: proteção dos consumidores, segurança jurídica, fomento da inovação e estabilidade financeira.


[1] "'crypto-asset' means a digital representation of a value or a right which may be transferred and stored electronically, using distributed ledger technology or similar technology;".

Council of the European Union. Proposal for a Regulation of the European Parliament and of the Council on Markets in Crypto-assets, and amending Directive (EU) 2019/1937 (MiCA). Disponível em: https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-13198-2022-INIT/en/pdf. Acesso em 06/10/2022.  p.56.

[2] "three sub-categories of crypto-assets that should be distinguished and subject to different requirements depending on the risks they entail". Ibid., p.13

[3] Smart contract é um programa de computador criado para realização de transações irreversíveis, de modo a "dar à linguagem de máquina o mesmo nível de certeza dado às transações do Bitcoin".  DAMERON Micah. Beigepaper: An Ethereum Technical Specification. Disponível em: https://github.com/chronaeon/beigepaper/blob/master/beigepaper.pdf. Sobre os fundamentos jurídicos e econômicos do conceito: SZABO, Nick. Smart contracts watch. Disponível em: http://unenumerated.blogspot.com/2007/08/smart-contracts-watch.html, 2007.

[4] Todo token é um smart contract construído segundo padrões criados pela comunidade de modo a atribuir interoperabilidade ao processo de transferência. Nesse sentido, o padrão ERC20, por exemplo, que serve de base para os demais padrões, basicamente especifica que todo token deve ter um nome, um símbolo, uma quantidade de decimais e métodos capazes de permitir sua transferência de forma direta ou indireta. Cf. BUTERIN, Vitalik; VOGELSTELLER, Fabian. EIP-20: Token Standard. Disponível em: https://eips.ethereum.org/EIPS/eip-20. Acesso em 20/10/2017

[5] "crypto-assets that are unique and not fungible with other crypto-assets, including digital art and collectibles, whose value is attributable to each cryptoasset's unique characteristics and the utility it gives to the token holder". Ibid.,p. 10

[6] Loc.cit.

[7] Loc.cit.

[8] "The fractional parts of a unique and non-fungible crypto-asset should not be considered unique and not fungible". Loc.cit.

[9] Embora todo NFT seja um token, nem todo token é um NFT, dado que estes possuem um elemento adicional chamado de metadado, onde podem constar informações adicionais acerca do bem ou direito tokenizado.

[10] Loc.cit.

[11] Nesse sentido. Cf. LOPES, Fernando. Bitcoin não pode ser regulamentado porque já é regulamentado. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-06/fernando-lopes-regulamentacao-bitcoin

[12] "automatically created as a reward for the maintenance of the DLT or the validation of transactions in the context of a consensus mechanism". Ibid., p.17

[13] "This Regulation should also apply to crypto-assets that appear unique and not fungible, but whose de facto features or features linked to de facto uses would make them either fungible or not unique. In this regard, when assessing and classifying crypto-assets, competent authorities should adopt a substance over form approach, under which the features of the asset in question should determine the qualification, not its designation by the issuer". Ibid., p.11.

Autores

  • é advogado e tecnólogo em Internet das Coisas, especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC, pós-graduando em ciência de dados e inteligência artificial, membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico, professor da pós-graduação em investimentos e blockchain do Centro Universitário Unibta, pesquisador do Icolab na área da ciência da computação e autor de dois livros sobre Direito e blockchain publicados pela editora Tirant Lo Blanch.

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