Opinião

Bitcoin não pode ser regulamentado porque já é regulamentado

Autor

  • Fernando Lopes

    é advogado membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico consultor jurídico do projeto Cyberskies e professor da pós-graduação em Investimentos e Blockchain da EA Banking School.

6 de agosto de 2020, 15h14

Aqueles que defendem a possibilidade ou necessidade de regulamentação do bitcoin manifestam profundo desconhecimento sobre a ontologia dessa espécie de criptoativo. Parte do caráter revolucionário do bitcoin se deve ao fato de se tratar de ativo regulado by design, tendência essa que deverá nortear tanto a criptoeconomia quanto o mercado de tecnologias disruptivas [1].

A propósito, a regulação by design é uma característica da disrupção, visto que, do contrário, estar-se-ia diante de um pouco mais do mesmo, ou seja, tecnologias que em nada acrescentam quanto à diminuição dos custos de transação oriundos da intermediação.

Sem regulamentação by design e ausência de intermediação não se trata de criptoeconomia, mas da economia tradicional, o que está bem claro logo nos primeiros parágrafos do artigo escrito por Satoshi Nakamoto.

Ora, mas se o bitcoin não pode ser regulamentado, a não ser by design, isto é, por meio do seu próprio protocolo, responsável pela determinação de regras de validação das transações, então por que há até mesmo projeto de lei buscando regulamentar o bitcoin?

A primeira resposta é que há projeto de ei porque o legislador é ignorante em relação a ontologia do criptoativo que pretende regular. Em outras palavras, pretende-se impor normas sobre realidade desconhecida, que destoa do padrão tradicional.

Fazendo uma analogia: do mesmo modo que não se pode explicar a física quântica com os pressupostos epistemológicos da física clássica, também não se pode explicar a regulamentação by design dos criptoativos, por meio de características jurídicas tradicionais, em um aforismo: muda-se a natureza do fato, então muda também a natureza da regra.

A segunda resposta é que aquilo que se pretende regulamentar não é o bitcoin, mesmo que muitos, até alguns "juristas" de conveniência, não raro na defesa de grupos de interesse oligopolístico, digam o contrário. Com efeito, o que se pretende regulamentar, ou melhor, a única coisa que é possível regulamentar é a intermediação da venda de bitcoin.

Mas regulamentar a intermediação, seja do objeto que for, é uma prática comum desde a civilização mesopotâmica, não havendo nada de disruptivo ou especial nesse processo.

Em tese, qualquer atividade de intermediação pode ser regulada, pois as regras impõem condutas que podem ou não ser seguidas pelos intermediários. Pouco importa aqui se o sujeito é intermediário de um criptoativo, da venda de uma cerveja IPA, ou de um terreno na Lua.

Portanto, a questão é saber se a intermediação da compra e venda de bitcoin praticada pelas exchanges deve ser objeto de regulamentação. Ocorre que do ponto de vista lógico, partindo-se da ontologia do objeto negociado, in casu, o bitcoin, a própria existência de intermediação é um nonsense, visto que esse criptoativo foi inventado para acabar com a intermediação!

Em reductio ad absurdum, como é possível que existam intermediários intermediando a venda de uma ativo que foi criado para acabar com a intermediação? Como explicar tal fenômeno que certamente provocará risos nas gerações futuras? Juristas e políticos pretendendo regulamentar a intermediação de um criptoativo que foi criado para acabar com a intermediação?

Enfim, uma vez explicada a diferença entre o bitcoin, sua regulamentação by design, e a intermediação de compra e venda de bitcoin, cumpre mencionar os seguintes pontos:

1) É até possível regulamentar a intermediação de compra e venda de bitcoin, visto que todo aquele que recebe recursos em depósito, deve prestar contas ao depositante, caso das corretoras de criptomoedas;

2) Muito embora seja possível regulamentar tal atividade, certamente esse tipo de intermediação tende a desaparecer tão logo a razão impere na criptoeconomia, passando-se a negociação de criptoativos ser realizada de forma automatizada, diretamente entre comprador e vendedor, mediante o uso de ferramentas de decentralização (smartcontracts), como já ocorre em algumas das chamadas corretoras descentralizadas.

Nesse último caso, cumprirá observar apenas se a regulamentação by design está ou não presente, de modo a colocar as partes em posição horizontal, podendo-se perquirir ainda acerca da existência ou não de regulamentação by design.

Portanto, do ponto de vista racional, a única coisa que o legislador pode ou deve fazer é discutir os critérios para produção de tecnologia de modo a se verificar a presença de regulamentação by design, muito embora acredita-se que a própria necessidade de interoperabilidade entre as tecnologias cuidará desse processo, sem necessidade de atividade legislativa.

A ideia, inclusive, defendida por alguns filósofos do Direito como Jürgen Habermas [2], é que o Direito legítimo deve ser aquele cujas normas são feitas de forma direta por todos aqueles afetados por seus efeitos. Em outros termos, cabe ao mercado, consumidores e vendedores, regulamentar aquilo que concerne apenas ao mercado. Ao Estado o melhor seria se dedicar melhor à administração dos recursos públicos, ao invés de se transformar em balcão de negócios para empresários que pretendem transformar o mercado de criptoativos em um novo oligopólio

 


[1] Cf. Department for Digital, Culture, Media & SportCollection (UK): Secure by design: Resources and information relating to the government’s Secure by Design agenda for securing consumer smart devices. Disponível em: https://www.gov.uk/government/collections/secure-by-design. Acesso em 2/8/2020.

[2] Cf. HABERMAS, Jürgen, Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt a.M. 1992.

Autores

  • é advogado, associado fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico e co-autor do livro "Bitcoin, Blockchain e Smart Contracts: a revolução dos ativos digitais".

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