Opinião

A teoria do direito pode ajudar a reconstruir democracias divididas?

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14 de outubro de 2022, 10h03

1) O problema dos desacordos
A chamada "guerra cultural" tomou conta do debate público, mudando significativamente o modo como articulamos nossas divergências em sociedade. Diante desse novo cenário, algumas pessoas são tomadas por um senso de urgência, uma necessidade de se engajar cada vez mais nas discussões em defesa de suas posições. Outros preferem a via da fuga, recusando os desgastes emocionais dos debates – até em nome da própria saúde mental. Tanto uns como outros costumam se fazer o questionamento: adianta mesmo discutir? Será que é possível mudar as ideias de outra pessoa, que já está profundamente comprometida com a defesa de uma visão contrária à nossa?

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Frequentemente, temos a sensação de que a cada novo argumento ou informação que oferecemos, motivamos ainda mais nosso interlocutor a intensificar sua divergência. Nessa perspectiva mais pessimista, o debate não seria simplesmente inútil, mas algo pior: seria contraproducente!

Todos esses relatos e preocupações não são meras anedotas individuais. O problema dos desacordos vem assumindo o centro das agendas de pesquisa na filosofia e nas ciências sociais. A academia se pergunta como explicar e como resolver os desacordos que surgem entre as pessoas, especialmente os desacordos profundos e sobre questões de "dever ser" (sobre ética, moral, política e direito, por exemplo)? Nosso objetivo nesse momento não será fornecer uma resposta conclusiva, mas servir como uma provocação e uma convocação a esse debate, ao fornecer ao leitor um breve panorama dele.

2) Explicar os desacordos jurídicos
No âmbito jurídico, os desacordos foram colocados inicialmente como um problema para a descrição do que é direito. Digamos que você quer evitar fazer juízos avaliativos para identificar as normas jurídicas. Você quer desligar o direito da moral, tratando-o apenas como um fato social posto pela mão humana. Uma boa saída para isso seria tratar a norma jurídica como uma convenção socialmente compartilhada. Obviamente, há momentos nos quais não nos entendemos, em que os casos não estão cobertos claramente pelas convenções. Você poderia manter a dignidade de seu modelo convencional, aceitando pontualmente uma certa discricionariedade do juiz para preencher tais lacunas. A explicação é simples, elegante e "desencantada".

Contudo, um fenômeno social não explicado parece perturbar essa teoria: por que, quando as regras claras acabam, os juízes continuam agindo como se houvesse direito a aplicar? E por que passam a defender diferentes maneiras de decidir o caso, não como se estivessem exercendo um poder discricionário de "legisladores intersticiais", e sim como se cada uma delas fosse a melhor interpretação do que o direito exige? Você pode argumentar que se trata de uma ilusão coletiva de debate, um jogo de poder disfarçado. Mas a saída não seria tão boa, já que se trata de um fenômeno com vigência concreta — e não soa muito bem para uma teoria tentar se salvar descartando um fenômeno relevante.

Um crítico ousado do convencionalismo iria até mais longe: mesmo quando as regras supostamente deveriam ser claras, não é raro surgir alguém desafiando a convenção com algum argumento substantivo, que seria capaz de colocar o direito sob sua melhor luz, e realizar assim os seus propósitos.

Uma outra hipótese seria então elaborada: o direito é uma prática intrinsecamente controversa, que não pode ser explicada de modo convencional. Ele seria marcado por uma disputa de interpretações construtivas. Admitida essa hipótese, o desafio da teoria seria entender como a racionalidade jurídica opera com esses desacordos, que não seriam acidentes, mas o próprio centro do conceito de direito.

3) Resolver os desacordos jurídicos
Se admitirmos que o conceito de direito é, por assim dizer, intrinsecamente controverso, a próxima pergunta naturalmente passa a ser: existem critérios para resolver esses desacordos? Afinal, como os juristas podem saber qual interpretação em disputa é a melhor?

Várias correntes surgiram aqui: 1) houve quem defendesse que a melhor interpretação seria aquela com maior capacidade de articular a norma individual ao todo coerente do direito, aquela capaz de atrair mais leis, precedentes e doutrina a seu favor e de promover os princípios que lhes são subjacentes; 2) outros defenderam que tal busca por uma coerência global teria o efeito indesejável de acirrar os desacordos, preferindo buscar a melhor interpretação na solução nos princípios (de baixa densidade) minimamente necessários para gerar convergência entre os juristas; 3) houve ainda quem desacreditasse da capacidade de o Judiciário funcionar como melhor instância para resolver tais desacordos principiológicos, defendendo que este agisse tanto quanto possível de modo textualista e reconduzisse os desacordos para os canais de maior participação democrática, como o Legislativo.

Essas correntes são apresentadas aqui de modo arquetípico, buscando ilustrar brevemente as posições de maior destaque nessa disputa [1]. Mas elas não encerram o debate. Existem inúmeras outras posições dentro de um gradiente que vai desde o extremo otimismo a um extremo pessimismo na resolução racional dos desacordos. Cada uma leva a uma teoria própria do direito (com sérias implicações práticas), que se enfrentam num desacordo metateórico.

É importante contextualizar que isso é apenas a versão jurídica de um debate de fundo sobre os limites da racionalidade humana, travado atualmente pelos filósofos na epistemologia dos desacordos.

4) Os desacordos e a crise da democracia
A versão jurídica dos desacordos se conecta com sua versão política, trabalhada nos modelos de democracia. Nessa perspectiva macro, houve correntes que acreditavam em: 1) negar desacordos, identificando a vontade do povo com a de uma suposta elite; 2) resolver desacordos por decisões da maioria; e 3) resolver desacordos através de processos de deliberação racional que protegessem as minorias e buscassem favorecer a vitória do argumento mais qualificado, para além de uma mera contagem de cabeças. Essa última corrente funcionou como ideal regulativo para o desenho das instituições democráticas contemporâneas. Por sinal, costuma ser o quadro em que as atuais teorias do direito (que faz parte desse arranjo deliberativo) costumam tentar se situar. Contudo, o deliberativismo enfrentou muitos desafios desde o início. Sempre houve céticos a lhe atacar, alegando que o debate político não é racional, mas fundamentalmente uma disputa de paixões.

Para além dos modelos teóricos, pesquisas empíricas passaram a apontar que a dimensão afetiva da política realmente tem ultrapassado a contraposição de ideias, baseadas em argumentos, no debate público [2]. Nesse cenário preocupante, há situações em que o debate poderia aumentar reativamente a divergência, ao invés de conduzi-la no sentido dos melhores argumentos. Com efeito, boa parte das estratégias políticas em todo o mundo vem sendo tentar hackear essas brechas emocionais, para contornar a deliberação racional do eleitor.

Há, contudo, vários exemplos históricos do papel positivo que pode ser desempenhado pelos desacordos. A própria institucionalização das democracias contemporâneas e todo o progresso social que adveio delas é um grande argumento nesse sentido. Esse arranjo institucional, que já foi chamado de o grande experimento, agora atravessa sua fase digital. Por isso, as pesquisas recentes têm se voltado à redução do impacto desses elementos emotivos no debate público, seja comparando diferentes procedimentos eleitorais, formato de debates jornalísticos, modos de votação no parlamento e de decisão judicial, regulação de redes sociais, etc. As evidências produzidas por essas pesquisas seguem realimentando a elaboração de teorias. O experimento segue seu curso. E a hipótese da resolução racional segue ameaçada, mas não inteiramente desacreditada.

Vale a pena destacar o local privilegiado em que a resolução de desacordos jurídicos se encontra posicionada, nessa contenda democrática. Vários best-sellers sobre a crise das democracias dedicam capítulos ao papel dos sistemas de justiça no processo de accountability que evitaria uma deterioração das instituições. Com efeito, vários juristas construíram seus modelos decisórios pensando em como o Judiciário poderia atuar fomentando uma troca de razões públicas, ao invés de inflamar suas piores paixões [3]. Essa é a questão que se apresenta, e que merece uma mobilização coletiva de nossa comunidade jurídica.

Serviço
O leitor interessado poderá encontrar um estado da arte mais aprofundado sobre esse debate no evento: "Desacordos jurídicos: a teoria do direito pode ajudar a reconstruir democracias divididas?", que contará com a participação dos principais pesquisadores do tema. O evento será realizado por videoconferência na próxima segunda-feira (17/10), com a parceria entre ESA-GO, Unisinos (Dasein) e Unifan (Nupex) [4]. Clique aqui para se inscrever.

 


[1] Sem abarcar toda a sua complexidade, remetem respectivamente a: 1) o integracionismo de Ronald Dworkin; 2) o miminalismo de Cass Sunstein e; 3) o positivismo normativo de Jeremy Waldron.

[2] IYENGAR, S.; SOOD, G.; LELKES, Y. Affect, Not Ideology: A Social Identity Perspective on Polarization. Public Opinion Quarterly, vol. 76 n. 3, p. 405–431, set. 2012. Para um panorama nacional: FUKS, Mario; MARQUES, Pedro. Afeto ou ideologia: medindo polarização política no Brasil. In: ENCONTRO DA ABCP, 12., 2020, João Pessoa. Anais eletrônicos […], João Pessoa, Universidade Federal da Paraíba, 2020. p.1-15.

[3] Para uma amostra da visão particular sobre os desacordos de cada um dos autores desta coluna, veja-se: de Lenio (aqui, em parceria com Gilberto Morbach) e de Ziel (aqui).

[4] Agradecemos aos professores Dyellber Araújo (vice-presidente da ESA-GO) e Fernando Turchetto (coordenador do Nupex da Unifan), com quem dividimos a organização do evento.

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