Opinião

TCU e os lucros ilegítimos: disgorgement, restitutionary damages e dano ao erário

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14 de outubro de 2022, 11h13

Recente decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) [1] concluiu pela competência da Corte de Contas para atuar nos casos de contratos nulos em virtude de fraude praticada pela empresa contratada, com vistas a impedir a percepção dos lucros decorrentes do ajuste.

Tal como noticiado por Odilon Cavallari [2], a análise deu-se em sede de recurso de reconsideração interposto pelo Ministério Público junto ao Tribunal (MP-TCU) contra acórdão que, sob condução do ministro Benjamin Zymler, havia determinado arquivamento do feito sem julgamento do mérito.

A decisão recorrida fora proferida no âmbito de tomada de contas especial, instaurada para quantificação de dano decorrente de contratos celebrados com as empresas OAS e Odebrecht tendo por objeto a implantação de instalações na Refinaria Abreu e Lima, da Petrobras [3].

No processo em que a matéria foi inicialmente examinada [4], as contratadas e seus representantes legais tiveram suas contas julgadas irregulares e sofreram diversas penalidades, algumas em valores antes nunca vistos, mormente em razão de graves condutas, como fraude à licitação, superfaturamento e outros ilícitos [5].

Não obstante as vultosas condenações já impostas, sobredita tomada de contas objetivou a quantificação de um outro possível dano, não abarcado na referida decisão condenatória, relativo aos lucros auferidos pelas contratadas.

A instrução promovida pelos órgãos técnicos do TCU quantificou aludido débito em R$ 198,4 milhões, ensejando proposta ministerial de restituição e responsabilização das empresas e agentes envolvidos.

No entanto, o então relator entendeu que a supressão do lucro obtido pela empresa contratada teria natureza sancionatória, estando a matéria abrigada em normas de âmbito penal, escapando, portanto, da competência da Corte de Contas, concluindo pelo arquivamento do feito sem julgamento de mérito.

Conforme antes dito, mencionada decisão foi objeto de recurso, agora sob relatoria do ministro Antonio Anastasia, cuja conclusão foi pela aplicação de instituto denominado disgorgement, definindo que, em se tratando de contrato declarado nulo em decorrência de fraude praticada pela própria contratada, não cabe recebimento dos lucros, posto que ilegítimos, devendo haver sua restituição, caso já pagos.

Por outro lado, restou decidido que, nesses casos, a atuação da Corte de Contas dá-se somente de modo indireto, por meio de fixação de prazo para que o administrador público adote as medidas cabíveis para o fim de obter a restituição dos lucros ilegítimos.

Apesar de ares de ineditismo envolverem o tema, cumpre registrar que o disgorgement não se consubstancia em conceito tão recente; ao contrário, é figura jurídica que já há algum tempo encontra-se em desenvolvimento, sobretudo nos países do common law.

Não obstante, ressalva-se, desde já, ainda inexistir uma compreensão pacificada a seu respeito, eis que sua interpretação não se revela uniforme, havendo divergência sobre seu significado e abrangência mesmo entre autores de países em que há maior tendência de sua aplicação [6].

De qualquer modo, fato é que a decisão do TCU encampou referido instituto e, por tal razão, dada sua relevância, merece ser analisada, sobretudo, com espeque na doutrina por ela adotada.

O abalizado voto, após percorrer diferentes autores e teorias estrangeiros, assentou fundamento preponderante na percuciente abordagem de Rosenvald e Kuperman [7], que, por sua vez, remetem, dentre outros, a James Edelman, célebre autor australiano de obra paradigmática acerca do assunto [8].

Conforme consignado pelo relator, referidos autores anotam a existência de teoria denominada gain-based damages, por meio da qual, em apertada síntese, busca-se a supressão de lucros obtidos em virtude do cometimento de um ilícito.

Tal teoria seria gênero a partir do qual surgem duas espécies: disgorgement of profits e restitutionary damages, ambos institutos baseados no quanto auferiu a parte que praticou o ilícito, e não, necessariamente, no quanto perdeu a vítima. Disgorgement, portanto, é somente um dos mecanismos de combate a lucros ilegítimos.

A diferença marcante entre eles, contudo, estaria no fato de que:

"Enquanto em restitutionary damages há reversão da transferência patrimonial entre as partes, no disgorgement há supressão da vantagem adquirida pelo réu com independência de qualquer translação de bens pelo autor. Pela primeira, beneficia-se o autor de uma quantia correspondente ao bem transferido ou subtraído do seu patrimônio. Pela segunda, suprime-se a vantagem que, sem correspondência com a utilização do patrimônio do autor, o réu obteve com a prática do ilícito" [9]. (g.n.)

A partir do trecho acima transcrito, depreende-se que na hipótese de restitutionary damages a ilegítima vantagem auferida advém diretamente dos cofres da vítima, ao passo que, no disgorgement, o lucro indevido que se busca expurgar sobrevém a partir de outras fontes, sem correspondente diminuição do patrimônio daquele que foi alvo do ilícito.

Outra não é a compreensão que se extrai do próprio voto do eminente ministro Anastasia, que, ao transcrever trecho da obra de Rosenvald e Kuperman, bem evidencia a distinção entre referidos institutos:

"Destarte, a distinção entre as duas espécies de pretensões fundadas nos ganhos indevidos — sendo que ambas são restituitórias — consiste em que o restituionary damages corresponde a um 'give back' (devolução), ou seja, uma medida de aplicação do princípio de justiça corretiva pela qual será restituído ao autor da demanda o ganho do réu correspondente àquilo que ele perdeu como consequência do ilícito. Isso se insere perfeitamente no direito restitutório; já o disgorgement se refere ao 'give up' (desistência), isto é, o agente renunciará aos ganhos, mesmo que eles não tenham sido diretamente obtidos da vítima." (g.n.)

Transpondo tais conceitos para o caso concreto, tem-se que os lucros ilegítimos auferidos pelas empreiteiras que deram causa à nulidade contratual deveriam, em verdade, ser restituídos aos cofres da Petrobras à luz dos restitutionary damages, e não do disgorgement, afinal, houve transferência direta de recursos financeiros da estatal em favor das empresas por ela contratadas.

Ao analisar a obra de Edelman, Magalhães Beck [10] traz relevante abordagem a partir da ótica do autor, cujo teor reforça a conclusão acima:

"No que concerne a quais seriam os lucros abrangidos pelo disgorgement of profits, EDELMAN classificou o instituto como uma espécie do gênero gain-based damages, sendo também espécie desse gênero os restitutionary damages. Gain-based damages seriam os remédios indenizatórios cuja medição se dá pelo benefício obtido por meio de um ilícito. A espécie restitutionary damages operaria para reverter transferências ilícitas de valores realizadas da parte que sofreu o ilícito para a parte que o cometeu; o remédio pretende reverter o enriquecimento de uma parte às expensas da outra. A espécie disgorgement of profits operaria para retirar da parte que cometeu o ilícito os lucros obtidos por meio desse. EDELMAN esclarece, assim, que a diferença entre as espécies é que, enquanto os restitutionary damages tratam de um lucro objetivo, recebido por quem cometeu o ilícito e transferido por quem o sofreu, o disgorgement of profits trata do lucro acumulado como resultado do ilícito, independente de e não limitado a eventuais transferências." (g.n.)

Essa talvez sutil, porém, determinante diferença conceitual acarreta sensíveis consequências de ordem prática.

Primeiro, com relação ao quantum a ser ressarcido.

Verificando-se tratar-se de hipótese de restitutionary damages, os lucros ilegítimos a serem restituídos aos cofres da estatal são aqueles valores que a esse título (portanto, abatidas as despesas com insumos, mão-de-obra, custos operacionais etc.) ela própria desembolsou em favor das empresas causadoras da nulidade contratual.

Caso se tratasse de disgorgement, os lucros ilegítimos, obtidos de fontes diversas que não o patrimônio da Petrobras — porém, em virtude da fraude contra ela cometida — demandariam para sua apuração considerável dilação probatória, a reclamar demonstração de nexo entre causa (o contrato nulo firmado com a Petrobras) e efeito (os lucros auferidos a partir de outras fontes que não os cofres da estatal).

É dizer, o disgorgement é mais amplo, "vai além" dos restitutionary damages, pois extrapola a esfera de relação jurídica entre contratante e contratado, acarretando a supressão dos lucros amealhados pela parte causadora da nulidade contratual decorrentes de vínculos outros, distintos daquele mantido com a vítima do ilícito.

Uma segunda implicação diz respeito à forma de atuação da Corte de Contas.

Ao adotar a figura do disgorgement, a decisão em comento concluiu pela atuação meramente indireta da Corte de Contas, e o fez, notadamente, porque, embora reconhecendo ocorrência de lucro ilegítimo, entendeu não haver dano ao erário:

"Com as devidas vênias, entendo que o pagamento de lucros ilegítimos não é, a rigor, um dano ao erário, porquanto o Poder Público terá recebido, em contrapartida, o bem ou serviço que lhe foi prestado, não se podendo, a meu ver, falar em diminuição patrimonial a ser recomposta. Trata-se de assunto que penso ter explorado de modo suficiente nas referências que fiz à doutrina, especialmente ao trabalho escrito por Rosenvald e Kuperman."

Ocorre, entretanto, que, uma vez tendo onerado diretamente os cofres da Petrobras, os lucros pagos às contratadas — expressamente reconhecidos pelo v. acórdão como ilegítimos — importaram diminuição do patrimônio da estatal para além dos custos inerentes ao bem ou serviço que lhe foi prestado.

Essa conclusão deflui da consagrada teoria da retroatividade dos atos administrativos nulos, segundo a qual a declaração de nulidade opera efeitos ex tunc, reclamando, no que for possível, que as partes retornem ao status quo ante. Dessa forma, uma vez já executado o objeto contratual e já efetuados os pagamentos, o mais próximo que se pode chegar da condição inicial em que se encontravam as partes antes do ajuste é a contratante indenizar a contratada tão somente pelos custos do contrato, devendo os lucros indevidamente auferidos retornar aos cofres de quem sofreu o ato ilícito.

Por absoluta pertinência, pois endossa essa compreensão, transcreve-se trecho do próprio r. decisório em comento:

"Contudo, embora o pagamento de lucros ilegítimos não configure dano ao erário é, a meu ver, uma despesa pública absolutamente ilegal e ilegítima como, aliás, o próprio nome diz, pois decorrente de um ato ilícito praticado pela própria empresa beneficiária do aludido pagamento, o que ofende o princípio do não enriquecimento sem causa e o de que a ninguém é dado se beneficiar da própria torpeza.

Ora, contratos decorrentes de fraude são nulos. E a declaração de nulidade opera efeitos retroativos, a fim de se reconstituir, na medida do possível, o status quo ante que, no presente caso, significa a indenização da empresa pelos custos, expurgados os lucros ilegítimos, exatamente para evitar o enriquecimento sem causa e o benefício da própria torpeza."

Uma vez reconhecida a necessidade de expurgar lucros tidos como ilegítimos, eis que decorrentes de deliberada prática de ato ilícito causador de nulidade contratual, a ocorrência de dano ao erário restará configurada quando referidos lucros tiverem sido obtidos diretamente a partir dos cofres públicos.

A esse respeito, vale rememorar que, quando o próprio contratado dá causa à nulidade, há muito a norma legal é expressa no sentido de lhe retirar o direito à indenização [11], conforme se vê na redação do artigo 59 da Lei 8.666/1993 (cujo teor foi reproduzido no artigo 149 da Lei 14.133/2021):

"Art. 59. A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos.

Parágrafo único. A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa." (g.n.)

Portanto, mesmo que o órgão público contratante venha a receber, em contrapartida aos pagamentos efetuados, o bem, obra ou serviço contratado, a parcela referente aos lucros representa, no contexto de um contrato nulo, desembolso ilegítimo de recursos públicos, acarretando, portanto, repercussão patrimonial negativa que não comporta outra forma de ser que compreendida que não dano ao erário.

Ainda que se opte por admitir o disgorgement em decorrência de contratos administrativos nulos, com vistas à supressão de lucros ilegítimos obtidos a partir de outros cofres que não os do órgão público contratante, há de se reconhecer que tal solução não ilide a ocorrência de dano ao erário com relação à parcela de lucro ilegítimo que provém diretamente do patrimônio estatal.

E uma vez configurado dano ao erário, o modo de exercer o controle externo ganha outros contornos.

É que, nos termos do artigo 70, parágrafo único, da Constituição da República, "Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária".

Desse modo, constatando-se que os lucros ilegítimos amealhados pela contratada causadora de nulidade contratual advieram dos cofres públicos, exsurge para a Corte de Contas o poder-dever de determinar a imediata recomposição do erário lesado, competindo-lhe, para tanto, adotar diretamente as medidas cabíveis para fins de ressarcimento e responsabilização daqueles que deram causa ao dano.

Cumpre assinalar, por derradeiro, que, não obstante o enriquecedor debate em torno dos remédios restituitórios desenvolvidos no bojo do common law, fato é que situações da espécie já restaram desveladas pelos tribunais judiciais brasileiros, que, acerca do tema, entendem que "em havendo nulidade, as partes deverão ter seu patrimônio restituído em nível equivalente ao momento anterior, no caso, pelo custo básico do que foi produzido, sem qualquer margem de lucro"  (g.n.) [12].

Ao transladar para o direito público brasileiro institutos concebidos no direito estrangeiro, possivelmente com predominância nas relações regidas pelo direito contratual privado, ganha especiais contornos a observância de princípios pátrios regedores da administração pública, daí porque, por mais relevantes que sejam, teorias forasteiras devem ser adotadas com parcimônia, absoluta observância ao direito positivo nacional e de forma consentânea com a jurisprudência dos tribunais superiores locais.

De todo o exposto, conclui-se que a decisão sob enfoque deu um importante passo em direção à preservação do erário, já que reverteu entendimentos anteriores que sequer admitiam os lucros derivados de contrato nulo como ilegítimos; noutro norte, porém, ainda há espaço para reflexão e aprimoramentos, para o fim de que locupletamentos da espécie, independente do nomen juris adotado, sejam reconhecidos não só como indevidos, mas também como lesivos aos cofres públicos e, por conseguinte, ensejadores de atuação direta do controle externo.

 


[1] Sessão de 10/8/2022, disponível aqui.

[2] "TCU decide sobre a aplicação do instituto do disgorgement", disponível em https://www.conjur.com.br/2022-ago-29/odilon-cavallari-tcu-decide-disgorgement.

[3] Juntos, os dois contratos somaram, em valores finais, após 47 aditivos, mais de R$ 5,5 bilhões.

[5] Decretou-se indisponibilidade de bens, débito, multa, inabilitação para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança no âmbito da Administração Pública, bem assim solicitação de arresto de bens à Advocacia-Geral da União. Sem embargo de tais medidas, alguns responsáveis ainda foram condenados a multas individuais de R$ 10 milhões, enquanto a construtora OAS, sozinha, foi apenada em R$ 1 bilhão.

[6] A esse respeito, veja-se MAGALHÃES BECK, Rafaela, in "A possibilidade de indenizar danos por meio de disgorgement of profits na Convenção de Viena", UFRGS, 2016, disponível em https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/183765/001013449.pdf?sequence=1&isAllowed=y

[7] ROSENVALD, Nelson; KUPERMAN, Bernard Korman. Restituição de ganhos ilícitos: há espaço no Brasil para o disgorgement? Revista Fórum de Direito Civil. Belo Horizonte, ano 6, nº 14, p. 11-31, jan./abr. 2017. Disponível em https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/viewFile/5283/3367

[8] EDELMAN, James. Gain-Based Damages (Contract, Tort, Equity and Intelectual Property). Oxford and Portland: Hart Publishing, 2002.

[9] Nelson Rosenvald, ao citar Edelman, in "O disgorgement nas relações contratuais pelas lentes do common law", disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/334280/o-disgorgement-nas-relacoes-contratuais-pelas-lentes-do-common-law

[10] Ob. Cit.

[11] Assim já prescrevia o vetusto Decreto-Lei 2.300/1986, em seu artigo 49.

[12] REsp 1.153.337/AC, relator o ministro Castro Meira, Superior Tribunal de Justiça (STJ), 15/5/2012.

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