Opinião

TCU decide sobre a aplicação do instituto do disgorgement

Autor

  • Odilon Cavallari

    é advogado assessor de ministro do TCU auditor federal de Controle Externo mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e doutor em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (Ceub).

29 de agosto de 2022, 19h33

Na sessão plenária do último dia 10, o Tribunal de Contas da União, por unanimidade, acolheu o voto do relator ministro Antonio Anastasia, que sustentou a viabilidade jurídica de o tribunal exigir da administração pública a aplicação do instituto do disgorgement [1].

A decisão é relevante dada a importância desse instituto. O disgorgement é a restituição de lucros indevidos auferidos por empresa em virtude de contrato nulo, quando a nulidade foi provocada pela própria empresa. Exemplo emblemático é o contrato decorrente de licitação vencida por determinada empresa mediante fraude, em virtude da apresentação de documento falso ou de formação de cartel.

A jurisprudência do TCU, até então, era controvertida. Havia precedente que aplicara a teoria do disgorgement, por entender que o lucro ilegítimo compõe o valor do dano ao erário a ser ressarcido [2].

Mas também havia precedente que recusara a sua aplicação, sob dois argumentos, principalmente: primeiro, o de que o lucro ilegítimo não faria parte do valor do dano ao erário; segundo, o de que a exigência de restituição do lucro ilegítimo se assemelharia à pena de perdimento de bens, motivo pelo qual somente poderia ser aplicada pelo TCU se sua Lei Orgânica a tivesse previsto [3].

Foi exatamente contra essa última decisão que o Ministério Público junto ao TCU, representado pelo subprocurador-geral Paulo Soares Bugarin, interpôs recurso que permitiu ao tribunal a rediscussão da matéria.

O TCU, ao prolatar o recentíssimo Acórdão 1.842/2022 – Plenário, acolheu as seguintes conclusões do relator sobre o assunto:

Primeira: a restituição de lucros ilegítimos está fundamentada no princípio da vedação do enriquecimento sem causa, assim como no princípio de que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza e ainda nos efeitos retroativos da declaração de nulidade, no sentido de que se deve buscar a restauração do status quo ante.
Segunda: a restituição dos lucros ilegítimos tem amparo legislativo amplo no art. 884 do Código Civil brasileiro e, especificamente, no art. 59 da Lei 8666/1993 e nos artigos 148 e 149 da Lei 14.133/2021.

Terceira: a teoria do deslocamento patrimonial unitário deve ser superada em relação à restituição dos lucros ilegítimos, pois o enriquecimento sem causa de uma pessoa não necessariamente decorre do empobrecimento de outra.
Quarta: nos termos do Enunciado nº 35 da Jornada de Direito Civil em 2002, "A expressão enriquecer à custa de outrem do art. 884 do novo Código Civil não significa, necessariamente, que deverá haver empobrecimento".
Quinta: conforme observado pelo Ministério Público junto ao TCU, em sua peça recursal, a restituição dos lucros ilegítimos não importa qualquer redução do patrimônio das empresas infratoras, mas apenas promove o seu retorno ao estado em que se encontrava antes da prática do ilícito.
Sexta: a restituição de lucros ilegítimos não é, em regra, uma sanção, mas sim uma consequência jurídica de natureza predominantemente civil, ainda que possa ser exigida também na esfera penal, quando o ilícito for tipificado como crime, ou na esfera administrativa, quando decorrente de ilícito dessa mesma natureza.

Portanto, por entender que o disgorgement não tem natureza jurídica de sanção, mas sim de obrigação civil, conforme acima exposto, o TCU reconheceu a sua competência para atuar nesses casos de contratos nulos decorrentes de fraude praticada pela empresa contratada no tocante ao não pagamento dos lucros ilegítimos ou à sua restituição, quando já pagos.

Prevaleceu, no entanto, a compreensão de que o TCU não deve atuar diretamente, ou seja, não deve exigir diretamente da empresa contratada a restituição dos lucros ilegítimos, mas, ao contrário, deve atuar de modo indireto, com fundamento no artigo 71, inciso IX, da Constituição, no sentido de que seja fixado prazo para o administrador público adotar as devidas providências ao exato cumprimento da lei incidente na espécie, seja um dispositivo expresso constante da lei de licitações (artigo 59 da Lei 8.666/1993 ou artigos 148 e 149 da Lei 14.133/2021) ou do Código Civil (artigo 884), seja um princípio jurídico, tal como o do não enriquecimento sem causa.

A justificativa para esse entendimento foi no sentido de que o "pagamento de lucros ilegítimos não é, a rigor, um dano ao erário, porquanto o Poder Público terá recebido, em contrapartida, o bem ou serviço que lhe foi prestado, não se podendo, a meu ver, falar em diminuição patrimonial a ser recomposta".

Desse modo, o TCU decidiu que, com fundamento no artigo 71, inciso IX, da Constituição Federal, é competente para "assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade", a fim de que a administração pública, ao efetuar a indenização decorrente de contrato nulo para o qual concorreu a empresa contratada, o faça pelo custo do serviço prestado, excluída a parcela relativa ao lucro.

Mas, caso a administração pública já tenha efetuado o pagamento da indenização, o TCU, com fundamento no citado artigo 71, inciso IX, da Constituição, tem competência para exigir da administração pública que busque a restituição dos lucros ilegítimos.

Trata-se de decisão que, entendemos, estar alinhada com o direito positivo brasileiro, pois, conforme bem lembrou o relator, tanto no já longínquo Decreto-Lei 2.330/1986, artigo 49, quanto na Lei 8.666/1993, artigo 59, que o revogou e, mais recentemente, na Lei 14.133/2021, artigos 148 e 149, duas regras têm sido reafirmadas:

– primeira: a declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente, impedindo os efeitos jurídicos que o contrato deveria produzir ordinariamente e desconstituindo os já produzidos;
– segunda: a nulidade não exonerará a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que houver executado até a data em que for declarada ou tornada eficaz

Portanto, em se tratando de nulidade contratual provocada pela empresa contratada, o retorno à situação jurídica que vigia antes da declaração de nulidade (status quo ante) deve ser realizado sem o pagamento dos lucros, mas apenas dos custos incorridos no período.

Essa tem sido a compreensão do Superior Tribunal de Justiça, cuja jurisprudência, reconhecida no voto do relator, tem sido desde 2012 no sentido de admitir a exigência de restituição de lucros ilegítimos com fundamento no princípio do não enriquecimento sem causa e nos efeitos da declaração de nulidade no tocante à reconstituição, sempre que possível, do status quo ante.

Tanto o direito espanhol quanto o norte-americano também têm apontado o princípio do não enriquecimento sem causa como principal fundamento para a restituição dos lucros ilegítimos.

Na Espanha, a restituição dos lucros ilegítimos é contemplada pela "Teoria do Produto Bruto Mitigado", consoante demonstra trabalho de referência elaborado pelo advogado da União e hoje ministro do Supremo Tribunal Federal André Luiz de Almeida Mendonça, no âmbito do Programa de Doutorado em Estado de Direito e Governança Global da Universidade de Salamanca, na Espanha, e citado em todos os precedentes do TCU que enfrentaram o tema.

O autor observa que tanto a expressão "enriquecimento ilícito" quanto "produto do ilícito" se referem ao mesmo instituto jurídico, qual seja, o que veda o enriquecimento sem causa, motivo pelo qual na Convenção de Mérida assim como na legislação norte-americana as citadas expressões são usadas indistintamente tanto para ilícitos civis quanto penais.

Conforme explorado pelo autor, o direito espanhol distingue o contrato cujo próprio objeto é ilícito, como, por exemplo, a compra e venda de drogas ilícitas, daquele cujo objeto é lícito, mas realizado de modo ilícito, como é o caso de um contrato de obra pública decorrente de licitação vencida por determinada empresa mediante fraude.

Na primeira hipótese, aplica-se a teoria do produto bruto, segundo a qual o contratado perde não apenas o lucro, mas toda a receita auferida com o negócio ilícito. Na segunda hipótese, cabe a teoria do produto bruto mitigado, também denominada de teoria do produto líquido, em que o contratado perde apenas o lucro, mas tem direito a receber o valor corresponde ao custo dos serviços que, de fato, prestou durante a execução contratual.

A conclusão que se extrai do referido estudo é a de que a restituição dos lucros ilegítimos não é uma providência exclusiva de determinado ramo do direito, mas sim uma consequência jurídica de um ilícito que pode ser tanto penal quanto civil ou até mesmo administrativo.

No direito norte-americano, a seu turno, a restituição dos lucros ilegítimos é tratada pela teoria do disgorgement, desenvolvida no âmbito do direito civil-contratual na perspectiva do enriquecimento injusto e de sua restituição, consoante se depreende do seguinte trecho do voto do ministro Anastasia:

"Sobre o assunto, Mathias Siems observou que o disgorgement reforça o entendimento de que uma pessoa não pode lucrar com seu próprio erro às custas de outrem. Caprice L. Roberts, em artigo escrito no âmbito da Universidade George Washington, observou que a aplicação da restituição dos lucros ilegítimos implica passar a considerar aspectos morais no âmbito das relações contratuais, tendo em vista que requer a formulação de juízos sobre dolo ou culpa.
A afirmação de Roberts se justifica pela longa tradição norte-americana de não fazer considerações morais na seara das relações contratuais, a fim de prestigiar a liberdade de contratar, que inclui a de não cumprir o contrato, desde que a parte inadimplente suporte as consequências econômicas da sua escolha, o que, tradicionalmente, não incluía os lucros ilegítimos, mas apenas a multa contratual e as devidas reparações de danos.
Trata-se de entendimento que até então vinha sendo aplicado, sem contestações, seguindo a linha da teoria sem culpa do direito contratual elaborada pelo Juiz Oliver Holmes da Suprema Corte norte-americana e, de certo modo, encampada por Richard Posner, em artigo cujo título, em tradução livre e necessariamente ajustada para melhor compreensão, poderia ser entendido como 'Nunca culpemos um contratante inadimplente'.
É importante observar que esse pensamento liberal no tocante ao direito dos contratos guarda coerência com o denominado 'inadimplemento eficiente', segundo o qual, no dizer de Richard Posner, em outro trabalho doutrinário, um dos contratantes deixa de cumprir as suas obrigações contratuais por avaliar que ganhará mais com o inadimplemento contratual, já considerados os valores que terá de pagar à outra parte a título de compensação pelos danos decorrentes do inadimplemento, do que se cumprir o contrato.
O disgorgement, a seu turno, rompe com essa tradição, pois, de certo modo, decorre de juízos morais sobre a relação contratual na medida em que a exigência de devolução dos lucros ilegítimos é consequência do convencimento que se forma acerca da injustiça do lucro auferido pela parte sem que, para tanto, tenha havido causa lícita.
Cito como exemplo do que ora trato a observação de Einer Elhauge, professor de direito da Universidade de Harvard, que enfatiza a importância da restituição dos lucros ilegítimos como instrumento de desestímulo a condutas ilícitas no âmbito de medidas antitruste."

Nelson Rosenvald e Bernard Korman Kuperman, citados pelo relator, ao comentarem o direito norte-americano, enfatizam que o disgorgement não tem relação direta e proporcional com o dano sofrido pela vítima, mas sim com o acréscimo patrimonial experimentado pelo autor do ilícito. Por isso, afirmam que, no âmbito da responsabilidade civil, o disgorgement supera a visão estreita de que a restitutio in integro apenas se opera quando a vítima obtém aquilo que ela perdeu em termos patrimoniais e extrapatrimoniais.

Por essa razão, referidos autores sustentam a necessidade de superação da teoria do deslocamento patrimonial unitário, pois o enriquecimento sem causa de uma pessoa não necessariamente decorre do empobrecimento de outra.

Por fim, é importante registrar que Celso Antonio Bandeira de Mello e Marçal Justen Filho, em trabalhos doutrinários prestigiados pelo STJ e, desta feita, também pelo TCU, sustentam, de longa data, o expurgo dos lucros ilegítimos ou, se já pagos, a sua restituição.

Desse modo, a recente decisão do TCU formada no Acórdão 1.842/2022 — Plenário cumpre duas relevantes funções: primeira, uniformiza a sua jurisprudência, em respeito ao artigo 926 do Código de Processo Civil e ao artigo 30, primeira parte, da Lindb; segunda: consolida a aplicação de justo instituto jurídico que busca evitar o enriquecimento sem causa de quem, ao dar causa a nulidade contratual, lucra com a própria torpeza.


[1] Acórdão 1.842/2022 – Plenário, rel. min. Antonio Anastasia.

[2] Acórdão 1.306/2017 – Plenário, rel. min. José Múcio Monteiro.

[3] Acórdão 129/2020 – Plenário, rel. min. Benjamin Zymler.

Autores

  • é advogado, assessor de ministro do TCU, auditor federal de Controle Externo, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e doutorando em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (Ceub).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!