Opinião

O problema da "liquidação" por cálculos

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11 de outubro de 2022, 10h04

Imaginemos um caso, simples e recorrente, de uma sentença, transitada em julgado, com uma condenação ilíquida. Neste caso, a lógica processual diz que os patronos desta causa deverão requerer a liquidação da sentença e, posteriormente — i.e., uma vez liquidada a sentença —, o seu cumprimento. Ocorre, porém, que nem sempre é isso que acontece.

Como é cediço no direito processual brasileiro, são 3 as formas de liquidação de sentença possíveis: (1) liquidação por artigos (ou pelo procedimento comum na terminologia do Código de Processo Civil de 2015), quando há a necessidade de provar fato novo relevante na apuração do quantum debeatur[1]; (2) liquidação por arbitramento, quando não há necessidade de prova de fato novo para apuração do quantum debeatur, mas este depende, para a sua apuração, de conhecimentos específicos (o que geralmente — ainda que não sempre e muito menos como regra — demanda a atuação de um perito)[2]; e (3) a liquidação por cálculos, quando a liquidação do julgado depende de simples cálculos.[3]

Ocorre, porém, que, com efeito, não há liquidação (em sentido estrito) por cálculos, pois o CPC/2015 dispõe, em seu artigo 509, § 2º, que, nesta hipótese, é possível a instauração do cumprimento de sentença. Nem sempre foi assim. O vetusto Código de 1939 (Decreto-Lei nº 1.608/1939) dispunha que eram 3 as formas de liquidação. Tal orientação foi seguida pela versão original do Código de 1973 até o ano de 1994 quando a liquidação por cálculos foi eliminada pela Lei nº 8.898/1994 (sistemática que foi seguida pelo CPC/2015), com a seguinte justificativa (pelo Projeto de Lei nº 2.689/1992, apresentado pelo, à época, deputado Nelson Jobim):

"O presente projeto insere-se no conjunto de medidas visando a modernização e a simplificação de nosso processo civil, por todos com insistência reclamadas. Segue em linhas gerais sugestões do anteprojeto elaborado por comissão especial de juristas e publicado no Diário Oficial da União de 17.12.1985, e agora atualizado sob os auspícios do Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil, sob supervisão dos ministros Athos Gusmão Carneiro e Sálvio de Figueiredo Teixeira, do Superior Tribunal de Justiça […]

A duas. é eliminado o processo de liquidação por cálculos do contador, que além da demora e dos custos, enseja sentença, apelação e eventuais recursos extraordinário e/ou especial. A liquidação, quando depende de simples cálculo aritmético (aluguéis, rendimentos, honorários, pensões, correção monetária, juros, etc) será feita pelo exequente, na própria inicial da petição da execução por quantia certa (assim, v.g., está no CPC de Portugal, artigo 805). Se o executado considerar incorreto o cálculo, irá impugná-lo por embargos do devedor por excesso de execução (artigos 741, V). A mesma sistemática é proposta para a hipótese do artigo 570, de adimplemento de sentença por iniciativa do devedor"[4]

A justificativa, evidentemente, era apenas parcialmente correta uma vez que uma decisão interlocutória que homologue cálculos ainda está sujeita a agravo de instrumento e, eventualmente, interposição de recurso perante os tribunais superiores (aliás, a farta jurisprudência dos tribunais superiores a respeito de critérios de cálculo é prova disso). Por outro lado, evidente que, se a liquidação da sentença depende de cálculos simples, não é necessário recorrer aos serviços de um contador — mas isto, per se, não implica que o procedimento de liquidação de sentença como um todo seja dispensável.

Ao abolir a liquidação por cálculos, a Lei nº 8.898/1994 gestou dois problemas inesperados. O primeiro foi o surgimento de honorários sucumbenciais devidos sobre o excesso de execução na liquidação de sentença por cálculos — o que não ocorre nas demais formas de liquidação. Isto é, via de regra, na liquidação de sentença não há a fixação de novos honorários de sucumbência (malgrado em casos excepcionais)[5], tal como há no processo de execução (ou no cumprimento de sentença) em relação ao excesso de execução. Todavia, que na medida em que não há mais a liquidação de sentença, mas tão somente o processo executivo, os honorários sobre o excesso, quando houver um excesso reconhecido, são devidos (mesmo quando os critérios de cálculo são objeto de discussão), o que acaba impactando o próprio valor que a parte tem a receber — e que, a depender da controvérsia nos autos, pode ter um impacto considerável sobre o montante devido. [6]

O segundo problema diz respeito à possibilidade de intercâmbio entre as formas de liquidação. O Superior Tribunal de Justiça tem o entendimento, fixado na Súmula nº 344[7], do ano de 2007, de que é possível o intercâmbio entre as diferentes formas de liquidação, sem desrespeito à coisa julgada, mesmo na hipótese em que esta tenha disposto em sentido diverso. Ou seja, mesmo se o título judicial exequendo dispuser que a liquidação deve ser por artigos a liquidação por arbitramento é possível. A indagação — sem resposta na jurisprudência do STJ — é se é possível o intercâmbio entre as liquidações por artigos e por arbitramento com a liquidação por cálculos — que, a rigor, não é liquidação, mas sim cumprimento de sentença — ou se, nesta última hipótese, há desrespeito à coisa julgada e, portanto, causa de nulidade processual.

Inobstante, por óbvio que, se a escolha entre as formas de liquidação é possível, é melhor que seja realizada entre três opções distinta do quem entre duas[8] — especialmente se o objetivo for privilegiar o resultado útil do processo e a prestação da tutela jurisdicional em um tempo adequado, tal como preceitua o art. 5º, LXXVIII, da Constituição de 1988[9].

Tal como na hipótese da liquidação por arbitramento é possível que, após recebidas as petições de ambas as partes, o juízo entenda desnecessária a perícia e decida de plano, se entender que há elementos aptos para tanto (cognição do artigo 510 do CPC/2015)[10], seria possível a existência de um procedimento de liquidação por cálculos apenas para que o juízo estabelecesse o montante devido após receber os cálculos de ambas as partes. Com isso, resolver-se-iam dois problemas: (1) a incidência de honorários de sucumbência nos casos de liquidação por cálculos — mas não nos casos de liquidação por artigos ou por arbitramento —, que tem impacto sobre o valor dos créditos a receber; e (2) a intercambialidade entre as três formas de liquidação.


[1] No CPC/2015: “Art. 509. Quando a sentença condenar ao pagamento de quantia ilíquida, proceder-se-á à sua liquidação, a requerimento do credor ou do devedor: […] II – pelo procedimento comum, quando houver necessidade de alegar e provar fato novo”. Ver também: THEODORO JÚNIOR, Humberto, Curso de direito processual civil, 57. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 1486–1488; DIDIER JR., Fredie et al, Curso de direito processual civil: execução, 7. ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 241–244.

[2] No CPC/2015: “Art. 509. Quando a sentença condenar ao pagamento de quantia ilíquida, proceder-se-á à sua liquidação, a requerimento do credor ou do devedor: I – por arbitramento, quando determinado pela sentença, convencionado pelas partes ou exigido pela natureza do objeto da liquidação […] § 2º Quando a apuração do valor depender apenas de cálculo aritmético, o credor poderá promover, desde logo, o cumprimento da sentença”. Ver também: THEODORO JÚNIOR, Curso de direito processual civil, p. 1485–1486; DIDIER JR. et al, Curso de direito processual civil: execução, p. 236–241.

[3] Ver THEODORO JÚNIOR, Curso de direito processual civil, p. 1484–1485.

[4] CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº 2.689-A, de 2 de abril de 1992. Altera dispositivos do Código de Processo Civil, relativos à liquidação de sentença; tendo parecer: da Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, pela constitucionalidade, juridicidade, técnica legislativa e, no mérito, pela aprovação deste e rejeição da emenda apresentada na Comissão. Diário do Congresso Nacional, Brasília, DF, ano XLVIII, n. 8, p. 1215, 22 jan. 1993.

[5] Vide, e.g., o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: “COBRANÇA E INDENIZAÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA. NÍTIDO CUNHO LITIGIOSO. POSSIBILIDADE EXCEPCIONAL. AUSÊNCIA DE CONDENAÇÃO OU DE PROVEITO ECONÔMICO IMEDIATO. FIXAÇÃO POR EQUIDADE. Insurgência em face de decisão que deixou de arbitrar honorários sucumbenciais em liquidação de sentença. Acolhimento me parte. 1. CABIMENTO. Arbitramento de honorários sucumbenciais em liquidação de sentença é exceção possível quando, nessa fase, se evidenciar litigiosidade entre as partes que prolonga a atuação contenciosa de seus patronos. Exaurimento da fase de conhecimento que se estende por muitos anos. Precedente do STJ. 2. FIXAÇÃO. Ausência de condenação ou de proveito econômico imediato, para fins do art. 85, §2º, CPC. Estabelecimento de valor ínfimo como da causa. Fixação por equidade (art. 85, § 8º, CPC). Honorários sucumbenciais, da liquidação fixados em R$ 100.000,00 (cem mil reais). RECURSO PROVIDO”. Referência: TJSP; Agravo de Instrumento 2277108-58.2021.8.26.0000; Relator (a): Carlos Alberto de Salles; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santa Isabel – 2ª Vara; Data do Julgamento: 08/03/2022; Data de Registro: 10/03/2022.

[6] Por exemplo, é possível discutir a incidência do art. 413 do Código Civil de 2002 (“Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio”) em uma liquidação por cálculos, mas, como não se trata de liquidação — mas sim cumprimento —, a incidência do art. 413 (requerida, provavelmente, em uma impugnação) geraria um excesso de execução e uma verba sucumbencial devida sobre este excesso.

[7] “A liquidação por forma diversa da estabelecida na sentença não ofende a coisa julgada”.

[8] Humberto Theodoro Junior argumenta que o processo de escolha do rito de liquidação é feito por exclusão, da seguinte forma:

“O ponto de partida para a escolha entre os diversos ritos está na análise do grau de imprecisão da sentença liquidanda, já que será esse o dado que irá permitir a adoção de um dos caminhos autorizados pela lei, ou seja, o cálculo do próprio credor, o arbitramento ou o procedimento comum.

Se o julgado se aproximar bastante do quantum debeatur, deixandoo Apenas a depender de simples operações aritméticas, bastará ao credor fazer ditas operações no próprio requerimento do cumprimento da sentença. Se o grau de imprecisão é muito grande, a ponto de não se encontrarem nos autos todos os dados e fatos indispensáveis à liquidação e, ao contrário, só se alcançará o quantum debeatur recorrendo-se a fatos estranhos àqueles até então apurados e comprovados, será a liquidação pelo procedimento comum a única capaz de permitir a declaração válida do objeto da condenação genérica.

Se, por fim, não é a sentença suficientemente precisa para que o quantum seja alcançado por operações aritméticas, nem é tão imprecisa a ponto de exigir apuração de fatos novos, podendo, por isso, a operação liquidatória realizar-se com fundamento em dados já disponíveis, o caso será de liquidação por arbitramento. Age-se, na verdade, por exclusão, isto é, procede-se por arbitramento, quando não é o caso nem de cálculo nem de artigos”

Vide: THEODORO JÚNIOR, Curso de direito processual civil, p. 1488.

[9] “Art. 5º […] LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”

[10] “Art. 510. Na liquidação por arbitramento, o juiz intimará as partes para a apresentação de pareceres ou documentos elucidativos, no prazo que fixar, e, caso não possa decidir de plano, nomeará perito, observando-se, no que couber, o procedimento da prova pericial”.

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