Opinião

Regulamentação dos criptoativos não avança por falta de conhecimento

Autor

  • Fernando Lopes

    é advogado membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico consultor jurídico do projeto Cyberskies e professor da pós-graduação em Investimentos e Blockchain da EA Banking School.

10 de outubro de 2022, 18h08

Se eu pudesse criaria a seguinte lei: quem nunca criou um token na vida não deveria falar sobre processos de tokenização e, sobretudo, regulamentação jurídica dos criptoativos [1].

Brincadeiras à parte o fato é que se o legislador ou até mesmo alguns juristas que hoje se dedicam a dissertar sobre o mercado de criptoativos separassem algumas horas para aprender como criar essa espécie de smart contract [2], certamente não pretenderiam regular situações que já se encontram regulamentadas, caso da tokenização de valores mobiliários e outros bens, ou então que sequer possuem justificativa lógica e legal para regulamentação, caso do Bitcoin [3].

Com efeito, conforme é sabido por qualquer programador que já tenha criado um token na vida, este nada mais é do que uma quantidade com nome e símbolo que pode ser transferida de forma direta ou indireta [4] mediante o uso de redes distribuídas baseadas em blockchain ou em outras estruturas de dados como os chamados DAGs [5].

Ou seja, tokenizar algo não é nada mais do que utilizar esses smart contracts para representação de bens e direitos.

Logo, juridicamente não há token utility, token security, token de renda fixa, token de precatório, token imobiliário; o que há são valores mobiliários, precatórios, imóveis, prestação de serviço, jogos de videogame, figuras de punks, cervejas, dentre outros bens e direitos que podem ser representados por tokens.

Mutatis mutandis, a relação semiótica entre signo e significado é a mesma que se dá entre o uso de contratos digitais para representação dos mesmos bens e direitos.

Em síntese, o uso de tokens para significar bens e direitos não tem qualquer impacto regulatório capaz de afastar as legislações já existentes, ao menos em regra. Aos meus clientes digo sempre que tudo o que pode ser negociado de forma lícita por um contrato em papel pode ser negociado de forma lícita por meio de tokens.

Questão diversa ocorre, não apenas em relação aos tokens, mas em relação ao uso de qualquer nova tecnologia, quando esta é capaz de eliminar o problema sobre o qual a intervenção regulatória do Estado alicerça sua justificativa [6].

Por exemplo, no chamado mercado das finanças descentralizadas, conhecido como Defi [7], é possível negociar ativos financeiros sem intermediários, graças à estruturação de sistemas baseados em smart contracts, o que faz desaparecer, ao menos, a justificativa para aplicação de normas que pretendam proteger os investidores dos intermediários.

Ainda no mercado Defi há o curioso caso dos flashloans, modalidade de empréstimo onde não há risco de inadimplência [8]

Nesses casos do mercado Defi, certamente se está diante de nova tecnologia com forte impacto regulatório capaz de transformar todo o arcabouço legal relacionado ao conceito de crédito, um dos fundamentos do direito empresarial.

Porém, nos demais casos do chamado "mercado de criptoativos" o problema não parece ser a lei, mas a aparente falta de conhecimento do fato sobre o qual ela incide.


[1] Há duas espécies de criptoativos: tokens e criptomoedas. Em que pese a distinção entre elas seja importante do ponto de vista da ciência da computação, para efeitos jurídicos tanto em um caso quanto em outro o que se tem são quantidades que podem ser transferidas de forma direta por meio de redes distribuídas, baseadas em blockchain ou em outras estruturas de dados, a exemplo dos chamados DAGs.

[2] Smart contract é um programa de computador criado para realização de transações irreversíveis, de modo a "dar à linguagem de máquina o mesmo nível de certeza dado às transações do Bitcoin".  DAMERON Micah. Beigepaper: An Ethereum Technical Specification. Disponível em: https://github.com/chronaeon/beigepaper/blob/master/beigepaper.pdf. Sobre os fundamentos jurídicos e econômicos do conceito: SZABO, Nick. Smart contracts watch. Disponível em: http://unenumerated.blogspot.com/2007/08/smart-contracts-watch.html, 2007.

[3] Sobre a cômica tentativa de regulamentar o Bitcoin tive a oportunidade de me pronunciar no seguinte artigo: LOPES, Fernando. Bitcoin não pode ser regulamentado porque já é regulamentado. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-06/fernando-lopes-regulamentacao-bitcoin

[4] Tais funcionalidades estão definidas no padrão ERC20 por meio dos seguintes métodos:

function name() public view returns (string)

function symbol() public view returns (string)

function decimals() public view returns (uint8)

function totalSupply() public view returns (uint256)

function balanceOf(address _owner) public view returns (uint256 balance)

function transfer(address _to, uint256 _value) public returns (bool success)

function transferFrom(address _from, address _to, uint256 _value) public returns (bool success)

function approve(address _spender, uint256 _value) public returns (bool success)

function allowance(address _owner, address _spender) public view returns (uint256 remaining). BUTERIN, Vitalik; VOGELSTELLER, Fabian. EIP-20: Token Standard. Disponível em: https://eips.ethereum.org/EIPS/eip-20. Acesso em 20/10/2017

[5] Trata-se do acrônimo para directed acyclic graphs, uma estrutura de dados utilizada como alternativa a soluções peer-to-peer baseadas em blockchain. Cf. FIORE, Marcelo, CAMPOS, Marco Devesas. The Algebra of Directed Acyclic Graphs. Disponível em:  https://www.cl.cam.ac.uk/~mpf23/papers/Algebra/dags.pdf .

[6] Especialmente nesse sentido é a  LEI Nº 13.874, DE 20 DE SETEMBRO DE 2019 que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.

[7] Para uma explicação didática sobre o conceito cf. What Is Decentralized Finance (DeFi) and How Does It Work? Disponível em: https://www.investopedia.com/decentralized-finance-defi-5113835

[8] Sobre o conceito de flashloans e outras questões de interesse regulatório que podem surgir no âmbito do mercado defi Cf. Introduction to Flash Loans: Legal and Business Considerations. by Sumeet Chugani, Coinbase, and Robin Nunn, Morgan, Lewis & Bockius LLP, with Practical Law Finance. Disponível em: https://www.morganlewis.com/-/media/files/document/2022/intro-to-flash-loans-legal-and-business-considerations.pdf

Autores

  • é advogado e tecnólogo em Internet das Coisas, especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC, pós-graduando em ciência de dados e inteligência artificial, membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico, professor da pós-graduação em investimentos e blockchain do Centro Universitário Unibta, pesquisador do Icolab na área da ciência da computação e autor de dois livros sobre Direito e blockchain publicados pela editora Tirant Lo Blanch.

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