Opinião

Ilegalidade da Súmula 161 do Carf: a multa por erro de classificação fiscal

Autor

10 de outubro de 2022, 21h28

O artigo publicado recentemente pela ConJur, em 5 de outubro de 2022, de autoria de Diego Diniz Ribeiro ("Multa por erro na classificação fiscal e a Súmula Carf 161") [1], direciona o holofote para o debate da controvertida Súmula Carf nº 161, analisando os três precedentes (Acórdão CSRF nº 9303-006.331, 9303-008.194 e 9303-006.474) que deram origem ao enunciado normativo para demonstrar que não houve o esgotamento da discussão jurídica, sequer unanimidade nas decisões do colegiado.

A súmula Carf foi aprovada pela 3ª Turma da CSRF, em 3/9/2019, no sentido de que deve ser mantida a multa aduaneira de 1%, por erro de classificação fiscal, ainda que órgão julgador conclua que a classificação indicada no lançamento de ofício seria igualmente incorreta.

O primeiro precedente analisado, da 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais nº 9303-006.33, da sessão de 21 de fevereiro de 2018, de relatoria do conselheiro Demes Brito, foi reformado pelo Poder Judiciário, em 11 de junho de 2019, antes, portanto, da publicação da Súmula 161 do Carf.

A sentença foi proferida pela 1ª Vara da Justiça Federal de Pato Branco (PR), na declaratória de nulidade do lançamento de multa administrativa/aduaneira de 1% sobre o valor aduaneiro, aplicada em razão de reclassificação fiscal, 5004242-48.2018.4.04.7012/PR, ajuizada pela empresa Visum S.A em face da União Federal, que foi confirmada pela 1ª. Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em 8 de julho de 2020, na Apelação Cível nº 5004242-48.2018.4.04.7012/PR, de relatoria do desembargador federal Roger Raupp Rios, nestes termos:

"TRIBUTÁRIO. ADUANEIRO. revisão administrativa. atribuição de terceira hipótese de classificação fiscal pelo CARF. multa por classificação incorreta. AUSÊNCIA DE MÁ-FÉ OU CONSEQUÊNCIA FISCAL. ANULAÇÃO.
 

1. Considerando que o art. 112, do CTN estabelece que a lei que define infrações ou comina penalidade deve ser interpretada de maneira mais favorável ao acusado quanto 'à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão de seus efeitos', entendo que a incidência da penalidade deverá ocorrer nas hipóteses em que as empresas buscam intencionalmente furtar-se à atuação do fisco, bem assim quando o equívoco produz consequências fiscais.

2. Caso em que o contribuinte não agiu de má-fé, mas com simples erro, no qual também incorreu a autoridade aduaneira, pois ela mesma atribuiu duas NCMs diversas no decorrer do Processo Administrativo Fiscal de revisão aduaneira. Ademais, o equívoco da autora não causou prejuízo ao erário, eis que as alíquotas da NCM inicialmente indicada e a final, definida pelo CARF, eram idênticas.

3. Não caracterizado o suporte fático concreto que justificaria a aplicação da penalidade do art. 84, inciso I da MP 2158-35/2001 e art. 711, I, do Decreto 6.759/2009, há de ser desconstituída a multa, declarada a inexigibilidade dos valores lançados no PAF.

4. Recurso de apelação desprovido".

O caso foi o seguinte:

Em 2011, em sede de revisão aduaneira, a empresa foi autuada da diferença de tributos de II, IPI e PIS/Cofins, acrescidos de multa de ofício, juros de mora e multa regulamentar, por entender o Fisco que estaria incorreta a classificação fiscal adotada na importação de processadores para computadores (NCM 8542.31.90, com alíquota 0% de II e 2% de IPI), que foram reclassificadas (NCM 8473.30.49, com alíquota 12% de II e 15% de IPI), sem qualquer respaldo técnico.

Em 16 de abril de 2014, a impugnação foi julgada improcedente pela 24ª Turma da DJR/SPO. Em sede recursal, a 3ª Câmara / 2ª Turma Ordinária do Carf, em 9 de dezembro de 2015, por maioria de votos, deu provimento ao recurso voluntário (Acórdão recorrido nº 3302002.930) para exonerar integralmente o crédito tributário e multa administrativa.

Naquela ocasião, o eminente relator do recurso voluntário, conselheiro José Fernandes do Nascimento, entendeu que estariam incorretas tanto a NCM 8542.31.90 adotada pela recorrente quanto a reclassificação NCM 8473.30.49 apontada pelo Fisco, tendo em vista que a mercadoria deveria ter sido enquadrada em uma terceira classificação fiscal: NCM 8473.30.43, cujas alíquotas são as mesmas da classificação fiscal utilizada pelo contribuinte, o que resultou no cancelamento do crédito tributário, mantendo, contudo, a aplicação de multa por erro de classificação fiscal.

De outro lado, em relação à multa, a conselheira Maria do Socorro Ferreira Aguiar divergiu, lavrando voto vencedor, no sentido de exonerá-la diante da ausência de laudo técnico (que instrua o auto de infração ou que tenha sido elaborado na instrução do processo administrativo) para a perfeita indicação da mercadoria, com fundamento no artigo 112 do CTN:

"No presente caso existindo dúvida razoável quanto à precisa identificação técnica do produto importado com relação a sua característica principal, visto que prejudicada a perfeita identificação desta pela ausência de laudo técnico, dado o grau de especificidade técnica do referido produto importado, impossibilitando inclusive a análise comparativa com o laudo técnico produzido pelo contribuinte, aplica-se a interpretação benigna autorizada pelo art. 112, II do CTN, para exonerar o crédito referente à multa por classificação fiscal incorreta".

Assim, se a classificação fiscal incorreta se deu por erro de direito, não caracteriza infração aduaneira e consequentemente a aplicação da multa, à luz da boa-fé objetiva do contribuinte.

A Fazenda ingressou com Recurso Especial para Câmara Superior de Recursos Fiscais, o qual foi provido em 14 de agosto de 2018, por maioria, desempatado por voto de qualidade [2], conforme Acórdão nº 9303-006.331 da 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais, nos termos do voto do relator conselheiro Demes Brito, que reproduziu o entendimento do voto vencido do julgamento anterior, concordando que a NCM 8473.30.43 é a correta e não a NCM 8473.30.49, apontada pelo fisco no auto de infração, cujas alíquotas são as mesmas da NCM 8542.31.90 utilizada incorretamente pelo contribuinte.

Apesar de existirem também precedentes do Carf no sentido de que a hipótese de terceira classificação enseja a improcedência do lançamento por erro de fundamentação [3][4], foi mantido o cancelamento do crédito tributário, mas reformada a decisão para aplicação da multa de 1% sobre o valor aduaneiro das mercadorias, pela infração prevista no artigo 84, I da Medida Provisória nº 2.158-35/2001 (artigo 711, inciso I do Regulamento Aduaneiro), por ter enquadrado o produto importado (processadores) na NCM incorreta.

Ressalte-se que na hipótese sequer existiu dano ao erário, uma vez que a classificação fiscal entendida como correta pelo julgador não tem diferença de alíquota com a NCM adotada pela contribuinte.

Aqui, vale destacar o voto vencido do recurso especial, do conselheiro Charles Mayer de Castro Souza, que consignou:

"Primeiro, o fato de o erro de classificação fiscal persistir, ou seja, o fato de a classificação fiscal correta não ser a adotada pela contribuinte (classificação 'A'), tampouco ser a indicada pelo Fisco (classificação 'B'), mas, sim, uma terceira classificação (classificação 'C'), não autoriza, só por isso, a manutenção da multa isolada. Se assim fosse, também se deveria manter a exigência do crédito tributário lançado, no caso em que, não obstante o erro de classificação da contribuinte e do Fisco, a terceira classificação fiscal, a classificação 'C', se apresentasse com as mesmas alíquotas de II e de IPI vinculado que aquela indicada pelo Fisco no lançamento, a classificação 'B'. Afinal, neste caso, também continuaria a haver a falta de recolhimento de tributos na importação, assim como, é o que se defende, o erro de classificação ('Onde há a mesma razão, há de se aplicar o mesmo direito')".

Ainda, não se pode ignorar a existência de diversas soluções de consulta/soluções de divergência desde 2010 [5], sobre a classificação adequada do produto reclassificado, o que confirma se tratar de erro de direito [6], decorrente do conflito interpretativo na aplicação das regras gerais para a interpretação do sistema harmonizado pela especificação tecnológica do produto importado.

Ao invés de adotar a "cultura punitiva" [7], a administração pública deve primar pelo princípio da informação e da boa-fé objetiva nas relações com o administrado, orientando-os de forma adequada, para o fim de corrigir erros e mitigar os riscos nas operações aduaneira, especialmente quando não há qualquer indício de fraude ou má-fé.

Ora, se o enquadramento correto da mercadoria importada pela autora é uma terceira classificação fiscal (NCM 8473.30.43), que não foi apontada nem pelo contribuinte (NCM 8542.31.90) e nem pelo fisco (NCM 8473.30.49) classificaram corretamente a mercadoria, indaga-se: como pode ser mantida a multa aduaneira isolada?

É certo, pois, que se o julgador entende como correta uma terceira classificação fiscal, incorreta está a reclassificação fiscal adotada pelo fisco no auto de infração. Como consequência, resta caracterizada grave deficiência na motivação do ato de lançamento, que é vinculado, formal e privativo da autoridade da Receita Federal, razão pela qual a Súmula 161 é ilegal!

 


[1] RIBEIRO, Diego Diniz, artigo publicado em 5 de outubro 2002 na ConJur: https://www.conjur.com.br/2022-out-05/direto-carf-multa-erro-classificacao-fiscal-sumula-carf-161#_ftn13.

[2] Inclusive, como bem observou Leonardo Branco: "(…) os três precedentes utilizados teriam resultado invertido a partir de abril de 2020 com a mitigação do voto de qualidade decorrente do artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002, o que apenas reforça que a edição da súmula abortou prematuramente debate que distava de terminar." , BRANCO, Leonardo, em artigo publicado em dia 30 de agosto de 2022, no ConJur – Perder-se no labirinto: o erro na classificação de mercadorias.

[3] "Processo nº 10831.724290/2014-65. Recurso Voluntário. Acórdão nº 3301-003.147 – 3ª Câmara / 1ª Turma Ordinária. Sessão de 24 de janeiro de 2017. Matéria Classificação Fiscal. Recorrente PADTEC S/A. Recorrida FAZENDA NACIONAL.

[4] Processo nº 11020.724274/201307. Recurso Voluntário. Acórdão nº 3301003.646 – 3ª Câmara / 1ª Turma Ordinária. Sessão de 24 de maio de 2017. Matéria PIS/PASEP E COFINS INSUFICIÊNCIA DE DECLARAÇÃO E RECOLHIMENTO. Recorrente JADI INDÚSTRIA ELETRÔNICA LTDA. (INCORPORADA POR MOBITEC BRASIL LTDA., CNPJ N 03.393.064/000198). Recorrida FAZENDA NACIONAL.

[5] A adequação da classificação fiscal adotada pela Visum se confirma na Solução de Divergência Coana nº 27, de 09 de novembro de 2015[5], que reformou de ofício a Solução de Consulta SRRF/8ªRF/Diana nº 31, de 15 de maio de 2013[5], alterando o Código TEC 8473.30.43 para NCM 8542.31.90. E também Solução de Consulta Coana nº 312 de 10 de novembro de 2015, que orienta que o microprocessador deve ser enquadrado na NCM 8542.31.90.

[6] THÁLIS ANDRADE, esclarece que o erro de direito sequer permite a revisão aduaneira: "Este é tido como uma modificação deliberada do critério jurídico ou de sua interpretação pelo Fisco."(ANDRADE, Thális, Curso de Direito Aduaneiro- Jurisdição e Tributos em espécie. Belo Horizonte : Editora Dialética 2021, p. 143)

[7] Como muito bem colocado no artigo publicado, em 27 de setembro de 2022, pelo Conjur "Amanhã vai ser outro dia: o Direito Aduaneiro Sancionador" (BRANCO, Leonardo e ANDRADE, Thális, em artigo publicado em 27 de setembro de 2022, na ConJur — "Amanhã vai ser outro dia" — o Direito Aduaneiro Sancionador)
"A cultura punitiva no âmbito aduaneiro se contrapõe à busca por políticas de autocorreção, estímulo ao cumprimento voluntário de obrigações, reconhecimento do erro escusável, do arrependimento, e do escalonamento progressivo e individualizado na dosimetria das penas. (…)
O abandono do Direito Aduaneiro do Inimigo é a promessa de que, por cada lágrima rolada, amanhã há de ser outro dia. Os últimos cinco anos andaram reinventando a Lei Aduaneira de 1966, tendo o Brasil aderido a acordos e convenções internacionais que explicitaram a não mais poder a culpabilidade [33], o duplo grau recursal administrativo independente [34], ou, ainda, a individualização da pena e o direito de arrependimento [35], pois quem inventa o pecado não pode se esquecer de inventar o perdão. Esse arcabouço normativo externo oxigena, como água nova brotando, o Direito Aduaneiro Sancionador."

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!