Opinião

Julgamento antecipado nos PARs da Lei Anticorrupção

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9 de outubro de 2022, 6h44

A recente Portaria Normativa n° 19/2022, editada pela Controladoria-Geral da União (CGU), trouxe novo instrumento aos processos administrativos de responsabilização (PARs) decorrentes da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013 ou LAC) ao estabelecer a possibilidade de os acusados apresentarem requerimento de julgamento antecipado do mérito das imputações que lhes são realizadas, obtendo, em troca, a mitigação das sanções previstas na legislação.

Segundo se extrai da portaria, o julgamento antecipado tem por finalidade a rápida resolução das apurações, com as consequentes responsabilização, imposição de sanções e reparação de danos. Além disso, busca evitar a perpetuação de litígios, por meio da vedação à judicialização.

Até então, o único instrumento que concedia benefícios a particulares na seara da responsabilização administrativa pela LAC era o acordo de leniência. Diferentemente da leniência, o requerimento de julgamento antecipado não exige que a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar e os benefícios são distintos, em que a atenuação de sanções é concedida em grau inferior do que as previstas pela leniência. O requerimento de julgamento antecipado, de todo modo, abre outra oportunidade na estratégia de mitigação de sanções pelos acusados, preenchendo uma lacuna para as situações em que não seria cabível o acordo de leniência e em que a apresentação de defesa nos moldes tradicionais não se mostra interessante ao acusado.

Enquanto estratégia voltada à mitigação de sanções, a portaria estabelece um sistema de incentivos em que os prêmios decorrentes (percentuais de atenuantes) são atribuídos de acordo com a etapa processual em que se encontra (artigo 5º, § 1º e incisos) [1]. Se o julgamento antecipado for requerido antes da instauração do processo, haverá a concessão de percentuais de atenuantes muito superiores [2] em relação ao pedido formulado no prazo das alegações finais. Esse sistema de incentivos possui razão de ser, pois, afinal, favorece a economia processual, reduzindo o tempo de tramitação e dispêndios excessivos. Há, ainda, o objetivo de incentivar que a pessoa jurídica não protele a escolha, decidindo rapidamente frente aos indícios e provas já existentes.

Mas a portaria traz certas dúvidas em seus aspectos materiais e procedimentais.

A primeira é saber quais são as provas exigidas (Artigo 2º, I [3]) do proponente. Diferentemente da leniência, esse requerimento é equiparável aos acordos de não persecução, constituindo prova em si, e que produz efeitos apenas para o confitente. Por essa razão, somente serão exigidas provas relacionadas aos atos do confitente ou aos benefícios que obteve. A exigência de outras provas, especialmente sobre a conduta de terceiros, tornaria desinteressante o julgamento antecipado, pois o equipararia à leniência quanto aos requisitos, sem os mesmos benefícios premiais. De mais a mais, a própria portaria dispõe não ser aplicável "quando cabível a celebração de acordo de leniência" (Artigo 8º, II [4]).

A segunda é se o particular terá direito subjetivo ao julgamento antecipado. A portaria parece caminhar no sentido da inexistência desse direito, ao prever a possibilidade de "discricionariamente" "rejeitar a proposta" (artigo 3º). Apesar de a discussão sobre o direito subjetivo aos acordos não ser novidade, a inexistência desse direito deve ser vista com ressalvas. A discricionariedade não é campo ilimitado e exige a demonstração clara de seus motivos e a conformidade com as finalidades legais. A proposta não poderá, portanto, ser rejeitada arbitrariamente, pois violará não só o dever de motivar, mas a impessoalidade e a isonomia. Por outro lado, a motivação vincula o ato discricionário, parecendo mais razoável oportunizar à pessoa jurídica o direito de retificá-la, se ainda considerar conveniente, dadas as finalidades públicas resultantes desse novo instrumento.

A portaria prevê que o requerimento deve ser apresentado perante à CGU — CRG nos PARs instaurados ou avocados pela CGU (artigo 3º [5]). No entanto, os PARs decorrentes da LAC podem ser instaurados pela "autoridade máxima de cada órgão ou entidade dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário" e não apenas pela CGU. Isso poderia deixar os PARs instaurados em outros órgãos ou entidades do Poder Executivo Federal, que não a CGU, de fora da possibilidade do julgamento antecipado. No entanto, considerando que os acordos de leniência, quando decorrentes de PAR, são firmados pela CGU [6], por analogia, os requerimentos de julgamento antecipado devem ser remetidos à CGU/CRG. Entender o contrário poderia levar a situações díspares, em que determinados particulares fariam jus aos benefícios do julgamento antecipado e outros não em razão do órgão em que foi instaurado o PAR.

Por último, há dúvida também se o PAR deve ser suspenso quando pendente a análise da proposta. Embora a portaria não tenha tratado especificamente sobre o tema, a leitura de seus dispositivos indica que a suspensão não só é possível como é um dever do órgão. O artigo 3º, inciso I, da portaria dispõe que, apenas em caso de rejeição da proposta é que será determinada a continuidade da apuração. Ou seja, as apurações não podem continuar na pendência da análise da proposta. Mesmo porque, se o requerimento pode ser apresentado no curso de prazos processuais, como da defesa ou das alegações finais, não é razoável que a pessoa jurídica seja atingida pela preclusão quando teve a intenção de colaborar com a administração pública.

Como se observa, o requerimento de julgamento antecipado, apesar de trazer novo e importante instrumento aos PARs decorrentes da Lei Anticorrupção, ainda é instrumento novo e que merece aperfeiçoamento. De todo modo, sua instrumentalização é mais um capítulo da crescente consensualidade no Direito Administrativo Sancionador, abrindo janelas de oportunidades tanto à administração pública, que poderá obter resultados mais rápidos na responsabilização e evitará a judicialização, quanto aos particulares, como opção racional para mitigação de sanções.


[1] Art. 5º. No caso de concordância com o pedido, o relatório final a que se refere o inciso II do art. 3º conterá:
(…)
§ 1º. No cálculo da multa será concedido o benefício das seguintes atenuantes, de acordo com o momento processual de oferta da proposta:
I – antes da instauração do processo administrativo de responsabilização, concessão do percentual máximo dos fatores estabelecidos pelos incisos II, III e IV do art. 23 do Decreto nº 11.129, de 11 de julho de 2022;
II – até o prazo para apresentação da defesa escrita, concessão do percentual máximo do fator estabelecido pelo inciso II, de 1% (um por cento) do fator estabelecido pelo inciso III e de 1,5% (um e meio por cento) do inciso IV do art. 23 do Decreto nº 11.129, de 2022;
III – até o prazo para apresentação de alegações finais, concessão do percentual máximo do fator estabelecido pelo inciso II, de 0,5% (meio por cento) do fator estabelecido pelo inciso III e de 1% (um por cento) do inciso IV do art. 23 do Decreto nº 11.129, de 2022; e
IV – após o prazo para apresentação de alegações finais, concessão do percentual máximo do fator estabelecido pelo inciso II e de 0,5% (meio por cento) do inciso IV do art. 23 do Decreto nº 11.129, de 2022.

[2] Art. 23. Do resultado da soma dos fatores previstos no art. 22 serão subtraídos os valores correspondentes aos seguintes percentuais da base de cálculo:
(…)
II – até um por cento no caso de:
a) comprovação da devolução espontânea pela pessoa jurídica da vantagem auferida e do ressarcimento dos danos resultantes do ato lesivo; ou
b) inexistência ou falta de comprovação de vantagem auferida e de danos resultantes do ato lesivo;
III – até um e meio por cento para o grau de colaboração da pessoa jurídica com a investigação ou a apuração do ato lesivo, independentemente do acordo de leniência;
IV – até dois por cento no caso de admissão voluntária pela pessoa jurídica da responsabilidade objetiva pelo ato lesivo; e

[3] Art. 2º. Deverão constar do pedido de julgamento antecipado apresentado pela pessoa jurídica:
I – a admissão de sua responsabilidade objetiva pela prática dos atos lesivos investigados, acompanhada de provas e relato detalhados do que for de seu conhecimento;

[4] Art. 8º. Esta Portaria Normativa não se aplica:
(…)
II – quando cabível a celebração de acordo de leniência, nos termos do art. 16 da Lei nº 12.846, de 2013.

[5] Art. 3º. O pedido a que se refere o art. 2º será apresentado perante a Corregedoria-Geral da União – CRG, que poderá, discricionariamente:
I – rejeitar a proposta, determinando a continuidade da apuração; ou
II – concordar com o pedido e proceder à elaboração de relatório final, recomendando o julgamento antecipado do processo.

[6] Sem mencionar os acordos de leniência firmados pelo Ministério Público.

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