Opinião

Urnas eletrônicas: categorização da proclamação do resultado da eleição

Autor

  • Rogério Reis Devisate

    é advogado membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias da Academia Internacional de Direito e Ética da Academia Fluminense de Letras do Instituto Federalista e da União Brasileira de Escritores presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da União Brasileira dos Agraristas Universitários (Ubau) membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ e do Ibap autor de vários artigos e do livro Grilos e Gafanhotos Grilagem e coordenador da obra Regularização Fundiária: Experiências Regionais.

7 de outubro de 2022, 15h07

Temos assistido a discussões em torno da urna eletrônica. Acima dos apaixonados debates, a eleição por votação eletrônica decorre da Lei nº 13.165/2015, votada pelo Congresso e sancionada por Dilma Rousseff, em 29 de setembro daquele ano.

Houve veto parcial (mensagem nº 358, da mesma data), posteriormente derrubado pelo Congresso, ensejando nova sanção presidencial, em 25 de novembro de 2015, com previsão de impressão do comprovante de votação.

Isso mesmo: a lei que introduziu a votação eletrônica modificou a Lei nº 9.504/97 e, dentre outras disposições, no artigo 59-A, caput e parágrafo, previa que, "no processo de votação eletrônica, a urna imprimirá o registro de cada voto".

Além disso, fixava que "o processo de votação não será concluído até que o eleitor confirme a correspondência entre o teor de seu voto e o registro impresso e exibido pela urna eletrônica".

Posteriormente, aquele dispositivo legal foi julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.889.

Foi, então, modificada a intenção do Congresso, cujo consenso, na forma da mencionada lei, vinha sendo formado a partir do Projeto de Lei 5.735/2013, de autoria do deputado Ilário Marques (PT-CE), depois emendado e alterado pelo parlamento, em rica tramitação, até a sua redação final.

No futebol temos o VAR, para permitir a conferência de certas situações. No processo judicial eletrônico (PJE), temos os recibos da protocolização das petições. Na declaração do Imposto de Renda, temos o comprovante de entrega e, assim é, no cotidiano, mesmo nas mais simples relações jurídicas. Ao pagarmos uma conta, recebemos recibo de pagamento, sob a modalidade de nota fiscal e, antes de efetuar o pagamento, decerto conferimos as contas que nos são apresentadas nos bares e restaurantes.

Categorização: qual a natureza do ato de proclamação do resultado?
Qual é a natureza jurídica do ato de proclamação do resultado?

Proclamar é verbo, com o sentido de declarar, anunciar.

Como verbo, indica ação, movimento e ato comissivo. Quem proclama, anuncia algo.

A proclamação do resultado da eleição se dá por ato não judicial. Portanto, seria ato administrativo.

De toda sorte, tanto o ato judicial quanto o ato administrativo sujeitam-se ao contraditório e à ampla defesa, por inteligência de inspirador e expresso comando constitucional: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" (CF, artigo 5º, LV).

Além disso, se não for ato administrativo discricionário, então será ato regrado. Nesse caso, decorre da força da lei, que prévia e expressamente o regule e preveja, pois os atos administrativos submetem-se aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência, expressos no artigo 37, da Carta Política de 1988, além de sofrer incidência de outras diretrizes principiológicas, como a proporcionalidade, a autotutela, etc.

Ainda no subsistema de atos administrativos, é crível que a proclamação se submete à Teoria dos Motivos Determinantes, pois é diretamente vinculada e dependente de providência precedente (prius), relativa à apuração dos votos, para alcance do resultado.

Tais atos complementam-se de tal modo que o segundo (posterius), ou seja, a proclamação, não subsiste sem a sua integração ao primeiro.

Ora, como foi subtraída a possibilidade de conferência dos votos, por modificação substancial da vontade dos congressistas, em decorrência da decisão da Suprema Corte, proferida na antes mencionada ADC 5.889, temos a circunstância especialíssima de um ato administrativo (de proclamação) sem a possibilidade de ser submetido a recurso administrativo ou judicial.

A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito
O expurgo daquele dispositivo legal produziu situação irrecorrível e hipoteticamente lesiva a direito subjetivo dos partidos políticos que se sintam preteridos, algo que, por sua natureza, só se consolida após a revisão e controle administrativo e judicial, em instância própria.

Na prática, temos lei que vige sem tal previsão, excluindo da apreciação do Poder Judiciário situações de lesão ou de ameaça de lesão a direito subjetivo de eleitores, candidatos e partidos políticos.

Como fica tal situação jurídica, quando cotejada com a força da Constituição, expressada no seu artigo 5º, inciso XXXV ("a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito")?

Além disso, na prática, é curioso pensar que as decisões judiciais e administrativas sejam (todas) passíveis de recurso e de apreciação judicial (CF, artigo 5º, incisos XXXV c/c LV) e que os internos procedimentos de informática e afins não o sejam.

De algum modo, é como se a máquina, ou melhor, o programa de computador, com sua linguagem binária, apenas afeta ao mundo dos experts, decida algo que passa a ser inquestionável.

Isso forma um paradoxo muito interessante: as decisões judicias e administrativas são recorríveis, embora não seja o que constitui o fundamento do ato de proclamação, ou seja, o antecedente ato que é fruto da programação dos sistemas de informática e o do funcionamento dos programas de totalização dos votos.

E mais: há o fundamental detalhe de que o mencionado ato de proclamação é absolutamente dependente do resultado das votações, momento que, por si só, no que seria a consolidação dos votos, também não enseja recursos, em decorrência da ausência da cédula de conferência, como visto, por força daquela decisão proferida na mencionada ADI.

Ora, toda norma precisa ser compreendida a partir do sistema jurídico, sendo importante a observação feita por Cristiano Carrilho Silveira de Medeiros [1], para quem, "no Brasil, o estudo dos sistemas jurídicos continua limitado a poucos pesquisadores".

A primeira tentação do intérprete é analisar a lei, isoladamente, contrariando o pensamento de Hans Kelsen, que (em livre tradução) já fixara a ideia de que é "impossível se compreender a natureza do direito se limitarmos a nossa atenção à norma isolada" [2].

Joseph Raz [3] parte para algo mais contundente e desdobra aqueles pensamentos, dizendo-nos que "a teoria do sistema jurídico é pré-requisito para qualquer definição adequada de 'lei'".

Marcelo Neves [4] nos orienta, ao dizer que "na sociedade complexa de hoje, os princípios estimulam a expressão do dissenso em torno de questões jurídicas e, ao mesmo tempo, servem à legitimação procedimental mediante a absorção do dissenso".

Considerações finais
As eleições deste ano novamente não sujeitas à conferência e meio autônomo de impugnação, contra a decisão que proclamar o vencedor (qualquer um!), por ser crível que dependeriam de meio cotejo entre os votos eletrônicos e a impressão do correspondente comprovante, em papel — como previa o legislador, como vimos.

Isso não tem correlação com o fato de serem auditáveis as urnas ou sobre aspectos técnicos dos programas e equipamentos.

Estes procedimentos existem e existiriam pela própria natureza do processo eletrônico, estando presentes mesmo que estivesse vigendo aquele artigo da lei votada pelo Congresso e sancionada pela Presidência da República.

Por fim, convém relembrar que a recontagem ou conferência de votos definiu as eleições nos Estados Unidos, em 2020 (vencida por Joe Biden, após o ocorrido na Geórgia) e em 2000 (quando George Bush foi declarado vencedor, após batalha judicial e decisão da Suprema Corte dos EUA).


[1] MEDEIROS, Cristiano Carrilho Silveira de. Manual de História dos Sistemas Jurídicos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. XI.

[3] RAZ, Joseph. O conceito de sistema jurídico: uma introdução à teoria dos sistemas jurídicos. Título original: The Concept of a legal system: na introduction to the theory of legal system; tradução de Maria Cecília Almeida; revisão de tradução de Marcelo Brandão Cipolla — São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012 (Biblioteca Jurídica WMF).

[4] NEVES, Marcelo. Entre e Hidra a e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. XXXVIII.

Autores

  • é advogado, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas Agrárias, da União Brasileira de Escritores, do Instituto Federalista e da Comissão de Direito Agrário da OAB-RJ, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da Ubau, autor dos livros Grilos e Gafanhotos Grilagem e Poder, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilagem das Terras e da Soberania.

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