Opinião

O necessário controle de legalidade da recusa de oferta pelo Ministério Público

Autor

  • Mathaus Agacci

    é advogado criminalista graduado em Direito pela Faculdade Cesusc doutorando em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires (UBA) sócio fundador do escritório Mathaus Agacci Advocacia Criminal e membro da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina (Aacrimesc) e da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

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7 de outubro de 2022, 7h04

Em melhor e madura reflexão acerca de temática que rendeu artigo de minha autoria aqui na ConJur [1], em maio de 2020, no qual sustentei ser o acordo de não persecução penal (ANPP) um direito subjetivo do imputado que cumprisse os requisitos objetivos do artigo 28-A do CPP, notadamente em virtude do profundo estudo das bases epistêmicas do aludido instrumento de justiça penal negociada, rendi-me à posição exegética majoritária no sentido de que "a possibilidade de oferecimento do acordo de não persecução penal é conferida exclusivamente ao Ministério Público, não constituindo direito subjetivo do investigado" [2].

Com efeito, mesmo considerando que a missão constitucional do magistrado é garantir a eficácia do sistema de direitos e garantias do acusado e que poderia haver postulação do Imputado invocando o órgão jurisdicional para oferecer-lhe o acordo diante de negativa infundada do Ministério Público — o que, apenas em tese, não ensejaria violação ao sistema acusatório e à separação rígida das funções dos atores processuais —, o fato é que estaria o magistrado imiscuindo-se em ato privativo do MP e, assim, violando a sistemática que rege o ANPP.

Mas isso quer dizer que diante de uma negativa inidônea/não fundamentada, estaria o Imputado adstrito aos subjetivismos e arbítrios do órgão ministerial ou órgão superior do Ministério Público no caso de revisão (artigo 28-A, §14 do CPP)?

Penso que não, e daí o presente artigo, pelo qual se pretende demonstrar a possibilidade de controle judicial de legalidade da recusa à oferta de acordo deduzida pelo MP e quais os caminhos que devem ser trilhados pelo magistrado diante de uma recusa infundada, sem que, contudo, haja qualquer violação ao sistema acusatório, ao ne procedat iudex ex officio e à própria sistemática que rege o instituto despenalizador.

Pois bem.

Inicialmente é preciso compreender que é absolutamente possível ao magistrado realizar o controle judicial de legalidade acerca dos motivos da recusa de oferta do ANPP ao imputado.

Isto porque, em primeiro lugar, em qualquer Estado que se pretenda verdadeiramente democrático, os poderes das autoridades são essencialmente limitados e questionáveis, não havendo poderes absolutos, de forma que ao lado do importante dogma da separação dos poderes e funções, é imperiosa a necessidade de controle externo (externa corporis) dos poderes e das instituições do Estado.

Em segundo lugar, verifica-se a partir de interpretação sistemática da legislação de regência que é absolutamente possível ao magistrado, no controle da legalidade processual e em estrita observância de sua missão constitucional, decidir acerca da (in)viabilidade da recusa formulada pelo órgão ministerial em oferecer o ANPP.

No ponto, é indispensável atentar-se para o fato incontroverso de que o próprio legislador outorgou ao magistrado poderes de controle da legalidade acerca do acordo de não persecução penal, na medida em que lhe autorizou a "verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade" (artigo 28-A, §4º do CPP), bem como lhe autorizou a devolver os autos ao r. membro do MP para que "seja reformulada a proposta de acordo", caso considere "inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal" (artigo 28-A, §5º do CPP).

De fato, pensar de modo contrário seria insanidade, pois se o legislador outorgou ao magistrado o poder de julgar insuficientes as condições estabelecidas na minuta de acordo, podendo obstar a sua perfectibilização (deixando de homologar) e determinando (e determinar aqui tem sentido de ordem) ao Ministério Público que faça uma reformulação, com muito mais razão é que pode — amparado nos mais comezinhos princípios constitucionais — analisar a recusa de proposta ao acordo e decidir acerca de sua idoneidade. Afinal, vale relembrar aqui a expressão latina a maiori, ad minus [3].

Assim, da mesma forma que pode o magistrado verificar a legalidade do acordo (artigo 28-A, §4º do CPP), bem como pode decidir se as condições entabuladas pelas partes (MP e Imputado) são suficientes para reprovação e prevenção do crime, determinando, inclusive, que sejam reformuladas as cláusulas (artigo 28-A, §5º do CPP), certamente pode o menos que, no caso, é analisar se os motivos elencados pelo Ministério Público para se recusar a ofertar o acordo são suficientes (exercício do controle da legalidade).

Assentadas essas breves premissas chega-se ao tema central do presente artigo: diante de uma recusa infundada de oferta de acordo, mantida pelo órgão superior do Ministério Público (artigo 28-A, §14 do CPP), o que pode o magistrado fazer e como deve ser exercido o controle judicial de legalidade da recusa?

Penso que duas são as hipóteses de controle da legalidade e que conduzem a decisões judiciais distintas.

A primeira hipótese pressupõe que haja postulação, em simples petição, por parte do Imputado, para que seja realizado o controle de legalidade da negativa ministerial. Neste caso, poderia o magistrado, diante da invocação, analisar se os motivos elencados pelo MP para se recusar a ofertar o acordo são suficientes. Caso entenda pela inidoneidade/insuficiência dos fundamentos ou arbítrio na recusa de oferta, deverá declarar imprestável a fundamentação e remeter os autos novamente ao Ministério Público para que, em nova manifestação, avalie a possibilidade de ofertar o ANPP, sem a possibilidade de utilizar como forma de recusa a motivação já declarada inidônea.

Mas o que restaria ao magistrado, em segunda hipótese, caso os autos retornem do órgão superior do MP com a manutenção da negativa e seja oferecida a denúncia sem que o Imputado postule pela realização do controle jurisdicional de legalidade acerca da recusa? Poderia o magistrado declarar inidônea ex officio a fundamentação e remeter novamente os autos do Ministério Público para nova avaliação de oferecimento do ANPP?

Penso que não, pois aí haveria violação ao ne procedat iudex ex officio, e até mesmo, de certa forma, à própria sistemática que rege o instituto despenalizador, pois estaria o magistrado, sem qualquer postulação das partes, avaliando ato de autoridade pertencente a organismo público (MP) levado à cabo em negócio jurídico pré-processual.

Mas então qual a solução, uma vez que, conforme antes sustentado, a missão constitucional do magistrado é garantir a eficácia do sistema de direitos e garantias do acusado?

Para que a solução seja compreendida em toda sua amplitude, é necessário destacar, brevemente (em deferência às limitações de um artigo de revista eletrônica), que a ampliação dos espaços de consenso no processo penal brasileiro, com a consequente mitigação do princípio da obrigatoriedade, objetiva a construção de caminhos alternativos de solução de litígios penais. No caso da transação penal, da suspensão condicional do processo e do acordo de não persecução penal (que ao contrário da colaboração premiada são acordos de solução do conflito penal sem a afirmação de culpa) tem-se a possibilidade da despenalização evitando-se a estigmatização social que decorre do processo (processo como pena).

É preciso compreender, ainda, que "o processo não é apenas um locus construído para o embate de posições antagônicas sob o olhar passivo do julgador. É, também, campo de realização das políticas criminais. Nesse cenário, o uso do modo de justiça consensual não é opção fundada no absoluto poder dispositivo das partes. Em realidade, é antecedente lógico e necessário do uso do modo disputado de justiça. É por isso que os requisitos são indicados em lei. Em casos que tais, a observância da etapa consensual é obrigatória. Mais do que isto, a recusa injustificada ao uso dos meios consensuais — despenalizadores e não estigmatizantes — deve ser alvo de controle judicial" [4].

Com base nessas premissas, penso que a recusa infundada ou desarrazoada do Ministério Público em ofertar o acordo de não persecução penal ao Imputado — opção deliberada pela via disputada ao invés da via consensual — ensejaria a ausência da condição de exercício da ação penal interesse de agir, que vincula-se, no caso, ao esgotamento do interesse primário do Estado no uso da justiça consensual.

Dessarte, carecendo condição para o exercício da ação penal estaria o magistrado autorizado a: (i) rejeitar a denúncia com base no artigo 395, inciso II, do CPP [o que, penso, não seria o caminho mais adequado, diante da inexistência de coisa julgada material da decisão]; ou (ii) conceder habeas corpus ex officio com base no artigo 654, §2º, do CPP para trancar a ação penal, diante da opção deliberada do Ministério Público pela via disputada em detrimento da consensual, ancorando-se em recusa infundada ou desarrazoada de oferta do ANPP ao Imputado [o que, penso, seria o caminho ideal a consecução da missão constitucional do magistrado].

Registre-se, por fim, que não haveria no caso qualquer violação ao ne procedat iudex ex officio, na medida em que o magistrado, além de arrimado em comando normativo (artigo 654, §2º, do CPP), o faria no juízo de admissibilidade da acusação, quando é chamado para decidir (mediante postulação).

Dessa forma e pela tese sustentada, havia exata conformação entre a competência exclusiva do Ministério Público em ofertar o ANPP e a missão constitucional do magistrado, que pelo exercício do controle da legalidade da recusa infundada, estaria garantindo a eficácia do sistema de direitos e garantias ao imputado.


[1] AGACCI, Mathaus. Acordo de não persecução penal é direito público subjetivo do acusado. CONJUR, maio de 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-22/mathaus-agacci-acordo-nao-persecucao-penal

[2] STJ – RHC: 161.251 PR 2022/0055409-2, data de julgamento: 10/5/2022, T5 – 5ª TURMA, data de publicação: DJe 16/5/2022.

[3] OLIVEIRA, J. Bacelar e; a maiori (ad minus), in "Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira da Cultura, Edição Século XXI", Volume I, Editorial Verbo, Braga, Janeiro de 1998.

[4] TJ-SP; Recurso em Sentido Estrito 0000781-42.2021.8.26.0695; relator (a): Marcos Alexandre Coelho Zilli; órgão julgador: 16ª Câmara de Direito Criminal. Data do julgamento: 26/11/2021.

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  • é advogado criminalista, graduado em Direito pela Faculdade Cesusc, doutorando em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires (UBA), sócio fundador do escritório Agacci & Almeida Advocacia Criminal e membro da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina (Aacrimesc) e da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

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