Opinião

Uso de dados de geolocalização do celular pessoal para prova de jornada

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6 de outubro de 2022, 15h09

Demandas trabalhistas contendo pedidos de pagamento de horas extras supostamente não remuneradas são bastante frequentes no âmbito da Justiça do Trabalho. Mas uma situação relativamente recente vem chamando a atenção dos operadores do direito e, por que não, de empresas e trabalhadores que discutem estes temas perante o Judiciário.

Como regra geral, compete ao autor da demanda — no caso, o trabalhador — comprovar os fatos alegados em seu pedido, cabendo ao réu apenas apresentar contraprova ou construir prova sobre fatos modificativos, impeditivos ou extintivos do direto vindicado.

Contudo, levando em consideração o chamado princípio da aptidão para a prova, há situações em que a regra de atribuição do ônus probatório é alterada. É o que ocorre na discussão sobre horas extras para os empregadores que ostentem mais de 20 empregados. Nessa hipótese, nos moldes do que prevê a súmula 338 do TST, a não-apresentação injustificada dos controles de frequência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho alegada pelo trabalhador em sua petição inicial.

Essa presunção de veracidade é relativa porque pode, no entanto, ser afastada caso o empregador consiga demonstrar, por outros meios de prova, que não há horas extras a serem remuneradas.

Contudo, há vezes em que o processo versa justamente sobre empresas com menos de 20 empregados ou discute os casos de exceção à obrigatoriedade de controle de jornada — por exemplo, cargos de confiança com encargos de gestão, jornada externa incompatível com o controle e fiscalização e, mais recentemente, teletrabalho. Para estes últimos, não é raro constatar que, quando a Justiça do Trabalho entende que o trabalhador deveria ter sido submetido a controle de jornada, por não se enquadrar tecnicamente em nenhuma das exceções, aplica automaticamente a presunção da súmula 338, assumindo como verdadeiras as alegações autorais.

Em razão de situações como essas, tendo sempre em mente que o processo é um instrumento de busca pela efetivação da justiça e, sobretudo, da verdade real, começam a aparecer na Justiça do Trabalho decisões que adotam métodos pouco tradicionais de averiguação sobre as reais condições da prestação do trabalho.

Em um plano de evolução dos meios de comunicação e de relações interpessoais, nota-se um expressivo aumento nos pedidos das partes em requerer a disponibilização de dados de geolocalização como meio de comprovar a jornada de trabalho discutida nos autos, tanto para pleitear quanto para se defender.

O Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (Santa Catarina), por exemplo, já dispõe de uma ferramenta para que a parte interessada exporte dados de geolocalização a fim de utilizá-los como meio de prova antes mesmo da distribuição da demanda.

Meios tecnológicos alternativos não são novidade para a Justiça do Trabalho, que já validava, por exemplo, o uso de relatórios de tacógrafo para delimitar período de trabalho dos motoristas.

A diferença no uso da geolocalização está no fato de que não mais estaria a empresa se valendo de instrumento por ela cedido ao empregado, mas sim de dados gerados pelo aparelho celular pessoal do próprio empregado. Intuitivamente, é de se questionar a invasão de privacidade que isto possivelmente geraria. Quanto a este tema, ainda não há um voto uníssono entre os julgadores.

A 7ª Seção Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP), por exemplo, entendeu que juízes podem e devem ter certa liberdade para conduzir o processo, utilizando-se de diligências que vierem a ser necessárias para a busca da verdade dos fatos. Ademais, ponderou que no pedido de horas extras, o empregado deve informar o quanto entende devido: quantas horas laborou em caráter extraordinário e não recebeu. Ao fazê-lo, o empregado torna pública a referida informação, de modo que a privacidade sobre tais fatos já não estaria sendo violada.

A Seção Especializada 2, do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, em tom mais cauteloso, registrou que, conferido sigilo aos dados coletados, reservando sua análise apenas às partes envolvidas no processo, "a medida não representa ofensa à garantia constitucional de inviolabilidade das comunicações ou à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018), favorecendo a segurança da prestação jurisdicional".

O tema, por certo, causa certa polêmica. Por um lado, as empresas são obrigadas por lei a promover o controle da jornada de seus empregados, mas, por outro, a autorização indistinta de uso dos dados de geolocalização pode trazer a sensação de uma certa tolerância quanto ao descumprimento dessa obrigação, já que sempre sobrará, ao Judiciário, a possibilidade de fazer uso de tais dados.

A Constituição tornou inviolável o sigilo de dados e das comunicações telefônicas, exceto se por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. A Constituição também tornou inviolável a intimidade e a vida privada das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Isso sem contar a proteção adicional trazida pela Lei Geral de Proteção de Dados.

Elevada ao patamar constitucional, a inviolabilidade de dados e das comunicações telefônicas não aparenta estar atrelada aos dados de geolocalização do aparelho em si. O constituinte tratou do assunto em norma constitucional de eficácia limitada, ou seja, que depende de uma norma posterior (lei complementar ou ordinária) para ser aplicada. Por sua vez, a lei complementar que versa sobre a matéria fala apenas da interceptação e gravação de comunicações telefônicas para fins investigação ou instrução criminal.

No entanto, embora essa interpretação possa sugerir que a inviolabilidade de dados de geolocalização não está protegida constitucionalmente, não se pode esquecer que a intimidade e a vida privada estão. Em outras palavras, devem ser consideradas as especificidades de cada caso, de modo que a relativização de direitos protegidos constitucionalmente não seja feita de forma desproporcional.

Assim, por envolver a discussão sobre a exposição e potencial afronta a outros direitos, a tendência é a de que o uso de dados de geolocalização seja empregado apenas quando os fatos não puderem ser esclarecidos ou comprovados por outro meio.

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