Opinião

O confisco alargado, referebilidade e seu comparativo europeu

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5 de outubro de 2022, 20h33

O confisco alargado (artigo 91-A, CP) introduzido pelo pacote anticrime (Lei 13.964/2019) acrescentou uma nova modalidade de perda patrimonial no âmbito do direito e processo penal. Se outrora a perda comum (artigo 91, II, "b" c.c §1.º, do Código Penal Brasileiro) estava diretamente ligada com o crime investigado e no qual havia uma condenação, e então se dava por perdido os produtos da infração, o confisco alargado têm relação com o patrimônio incongruente do investigado. Trata-se de evolução legislativa, em vista à maior imposição de medidas contra a delinquência organizada.

A Europa já conta com esse instituto há relativo tempo. No Reino Unido, berço do instituto, para o confisco alargado há a necessidade de se demonstrar uma vida dedicada a criminalidade "criminal lifestyle", e traz indicações precisas sobre hipóteses de enquadramento [1]. O valor de uma ordem de confisco alargado no Reino Unido dependerá de duas variáveis: o valor do benefício auferido com o comportamento criminoso e o valor dos ativos disponíveis para confisco. O menor dos dois valores é usado para calcular a ordem. O valor do benefício criminal é calculado usando as receitas totais do infrator, não seus lucros líquidos [2].

Portugal, seguindo as diretrizes europeias, instituiu o confisco alargado pela Lei 5/2002, e a legislação exige uma investigação por crime previsto naquele rol taxativo da lei. Assim como o regime inglês, prevê um limite temporal de cinco anos anteriores a constituição do investigado como arguido, ou seja, apenas o patrimônio adquirido nesse período é que será abarcado pela perda. A perda alargada, ainda que instituída em 2005, somente passou a ser utilizada de forma efetiva, superando-se a crítica doutrinária, em 2011, com a criação do Gabinete de Recuperação de Ativos (GRA), pela Lei 45/2011.

Na linha acima, quase todos os países da União Europeia adotaram nativamente o sistema do confisco alargado de bens, com exceção da Irlanda e Grécia [3]. E alguns dos países prevêem o confisco de forma independente a uma condenação ou mesmo do início de um processo criminal [4]. Alguns casos são aqueles tratados no artigo 54.1.c da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, que os Estados Membros deverão criar mecanismos para permitir o confisco independente de uma condenação criminal.

Após dura evolução doutrinária e jurisprudencial, nos comparativos europeus algumas situações foram estabelecidas, principalmente no tocante a inversão do ônus da prova em matéria penal e da presunção de inocência, o que passou a ser chamado de non conviction based confiscation, porque pressupõe apenas a existência de um patrimônio incongruente [5]. A constitucionalidade dessa modalidade de confisco foi amplamente discutida em Portugal. Pode se citar os Acórdãos 392/2015, 476/2015 e 101/2015, todos do Tribunal Constitucional. A questão definida pelo Tribunal foi de que nesse procedimento de perda alargada o que está em causa não seria mais a responsabilidade penal do arguido, mas sim verificar a existência de ganhos patrimoniais resultantes de uma atividade criminosa.

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos concluiu ser legítima a perda alargada — inclusive com a inversão do ônus da prova e mitigação da presunção de inocência — porque seria uma sanção de natureza civil, e não penal, portanto, não se sujeitando aos princípios da presunção de inocência, vide Phillips vs Reino Unido de 5 de julho de 2001.

Decidiu a corte que não se tratava de uma perseguição sobre a culpabilidade ou não do arguido no crime investigado e por essa razão não haveria que se falar em presunção de inocência. Assim, não se exigira uma condenação do investigado com o crime ao qual deu início a investigação, podendo inclusive ser decretada quando reconhecida a prescrição [6]. Ressalta-se, todavia, que há que se fazer uma diferenciação entre non convicted bases confiscation (NBC) em matéria penal e em matéria civil. Enquanto um exigiria um standard de prova mais acentuado, o outro se regularia pela convicção típica do processo civil [7]. Os esclarecimentos sobre cada uma das modalidades é extensa e ficará para uma próxima apresentação.

No caso brasileiro isso ainda deverá ser objeto de análise pelos Tribunais Superiores até porque o tema é novo e a confusão se agravou após a promulgação da Lei nº 13.886/2019 — que introduziu o artigo 63-F na Lei de Drogas —, causando maior preocupação no panorama doutrinário, uma vez que as disciplinas adotadas em cada um dos normativos são distintas [8].

A perda alargada então vem instituída no artigo 91-A.º do Código Penal como um efeito da condenação penal. Para ser válida a perda alargada, o crime pelo qual o réu foi condenado deve ter pena máxima superior a 06 anos de reclusão, e a perda se dará aos bens correspondentes a "à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja compatível com o seu rendimento lícito". A lei brasileira não dispõe de um máximo temporal de aquisição do patrimônio, como faz a lei portuguesa (cinco anos anteriores a constituição como arguido) e a lei inglesa (seis anos anteriores ao início das investigações), o que denota uma falta de razoabilidade e desproporcionalidade.

Para que o juiz possa decretar a perda alargada, o Ministério Público deverá fazer esse pedido no ato de oferecimento da denúncia, e indicará a diferença do patrimônio incongruente, o que leva inexoravelmente a uma investigação e constatação prévia.

O pacote anticrime, porém, não conferiu qualquer medida assecuratória para apreensão cautelar da diferença do patrimônio do acusado com seus rendimentos lícitos, o que pode resultar em uma ineficácia da lei ou agravamento da dificuldade na apreensão. É que as cautelares patrimoniais também devem ser lidas à luz do princípio da legalidade [9], e portanto seguem cada qual seu regramento específico, ou seja, apenas aos crimes investigados e, no caso do arresto, se destina apenas a reparação do dano criado com o crime investigado. Dessa forma, a princípio, não poderiam ser utilizadas para bloquear bens incongruentes aos rendimentos lícitos do réu, mas sem referebilidade ao crime investigado.

Por fim, o confisco alargado não se confunde com o confisco por equivalência (§§1º e 2º do artigo 91, CP), pois este instituto diz respeito às situações em que o produto ou o proveito direto do crime que está sob escrutínio não é encontrado ou se localiza no exterior, e disso decorre uma perda de bens do condenado em valor equivalente àqueles, mesmo que de proveniência lícita.

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[1] CARDOSO, Luiz Eduardo Dias. A Perda Alargada No "Pacote Anticrime": Críticas E Propostas De Adequação. 2019. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/7157/.

[2] Yulia Chistyakova, et al. "The Back-Door Governance of Crime: Confiscating Criminal Assets in the UK", in European Journal on Criminal Policy and Research. vol. 27, 2021, pp. 495–515. Disponível em: https://doi.org/10.1007/s10610-019-09423-5. p. 503.

[3] Commission Staff Working Document: Analysis of non-conviction based confiscation measures in the European Union. 2019, p. 6. Disponível em https://db.eurocrim.org/db/en/doc/3205.pdf.

[4] Ibid, p. 2.

[5] CORREIA, João Conde. "Apreensão ou arresto preventivo dos proventos do crime?"in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, vol. 25, n.º 1, 2015, p. 528.

[6] vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 30/09/2015 (processo no 736/03.4TOPRT.P2, disponível em http://www.trp.pt/jurispitij.html)

[7] JUNQUEIRA, Gabriel Marson. A recuperação de ativos, o regime do reconhecimento mútuo e os pedidos de cooperação judiciária relacionados a confisco non-conviction based em Portugal, in Rev. Bras. de Direito Processual Penal, vol. 6, n.º 2, mai-ago 2020, pp. 765-798. Disponível em http://orcid.org/0000-0001-6626-6758.

[8] CARDOSO, Luiz Eduardo Dias. "A inversão do ônus da prova na decretação da perda alargada: entre o Código Penal e a Lei n1º 1.343/06", in Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 6, n.º 2, 2020, pp 799-832. Disponível em http://orcid.org/0000-0002-9432-1379.

[9] LUCCHESI, Guilherme Brenner; ZONTA, Ivan Navarro. "Sequestro dos pro-
ventos do crime: limites à solidariedade na decretação de medidas assecuratórias"
, in Revista Brasileira de Direito Processual Penal. Porto Alegre. vol. 6. n.º 2. maio/ago 2020, pp. 735-764.

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