Opinião

Da ilegalidade da delação do advogado contra o cliente

Autor

  • Alberto Zacharias Toron

    é advogado mestre e doutor em Direito Penal pela USP professor de Processo Penal na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca conselheiro federal da OAB e ex-presidente do IBCCrim.

4 de outubro de 2022, 18h10

A 5ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça), em acórdão da fina lavra do ministro João Noronha, ao julgar o RHC nº 164.616, de Goiás, decidiu que é ilícita a delação feita por advogado contra cliente cuja causa encontra-se, ou encontrava-se, sob o seu patrocínio (DJe 30/9/2022). Hoje, com a entrada em vigor da Lei nº 14.365/2022, que alterou o Estatuto da OAB, a matéria pode parecer destituída de interesse ante a clareza da nova redação dada ao seu artigo 7º, §6º-I que, expressamente, veda "ao advogado efetuar colaboração premiada contra quem seja ou tenha sido seu cliente, e a inobservância disso importará em processo disciplinar, que poderá culminar com a aplicação do disposto no inciso III do caput do art. 35 desta Lei, sem prejuízo das penas previstas no art. 154 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal)".

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O ponto é que, no caso retratado pelo acórdão do STJ, a delação do advogado contra o cliente se deu muito antes de se cogitar da regra acima transcrita. A ratio essendi do julgado em estudo não está na aplicação retroativa do novo diploma, mas em saber "se é lícito ao advogado, sem justa causa, oferecer delatio criminis contra um cliente com base em fatos de que teve conhecimento no exercício da advocacia; e qual a consequência jurídica da violação do dever de sigilo profissional. Ou seja, é lícito ao advogado firmar acordo de colaboração premiada contra seu cliente?"

Delatar, mais que a quebra de sigilo, envolve uma verdadeira traição ao cliente que se vê acusado por aquele em quem confiou justamente para defendê-lo na justiça ou mesmo fora dela. Uma inversão de valores que abala os alicerces do sistema de justiça e não apenas a relação de confiança pessoal entre cliente e advogado.

Tradicionalmente, ao cuidar do dever do sigilo em relação aos profissionais em geral, isto é, aqueles que em razão do ofício ou ministério — tais como advogados, médicos, psicólogos e sacerdotes — não podem revelar o que souberam, a doutrina aponta como bem jurídico tutelado a liberdade individual e, mais particularmente, a intimidade do indivíduo. No caso específico dos advogados, é de rigor que os assuntos tratados no confessionário de seus escritórios sejam, como regra, de natureza sigilosa. É que os temas ali versados podem ir das mazelas pessoais e familiares a assuntos de segurança nacional, passando, entre outras, por intrincadíssimas questões negociais e societárias. Tudo isso sem falar nas matérias criminais. Assim, é natural que a violação sem justa causa do dever de segredo venha incriminada, como vemos no artigo 154 do Código Penal, em razão de danos, ainda que potenciais, que possa causar ao cliente. A proteção penal, na linha do escólio de Francesco Palazzo [1], é, portanto, corolário da regra constitucional que tutela a intimidade e a vida privada (CF, artigo 5º, inciso X).

O Conselho Federal da OAB, a par do destaque dado à defesa da nobreza e da dignidade da profissão do advogado [2], tem realçado a importância do respeito ao sigilo profissional. Daí, até mesmo em casos singelos, confirmarem-se condenações quando o advogado indica os motivos determinantes de sua renúncia [3], ou mesmo por exibir peças de processo ético-disciplinar em audiência nos autos de uma ação cível de cobrança, sem qualquer liame com os fatos tratados no processo disciplinar [4].

Embora não se possa descuidar da proteção à intimidade e da própria imagem das pessoas, quando se trata da incriminação da quebra indevida do sigilo profissional do advogado, há algo transcendente na exigência de manutenção do segredo e que atina com o devido processo legal. Sim, porque sem confidencialidade o cliente não tem a possibilidade de se dirigir com toda a liberdade ao seu advogado, o que, convenha-se, é essencial ao pleno exercício do direito de defesa. Bem por isso, o Tribunal de 1ª Instância da União Europeia (1ª secção alargada) afirmou: "o princípio da confidencialidade das comunicações entre advogados e clientes constitui um complemento necessário ao pleno exercício dos direitos de defesa", pois "importa assinalar que a confidencialidade das comunicações entre advogados e clientes responde à exigência de que todo o cidadão deve ter a possibilidade de se dirigir com toda a liberdade ao seu advogado, cuja profissão inclui a tarefa de dar, de forma independente, pareceres jurídicos a todos os que deles necessitem" (acórdão AM&S, nº 18). Esse princípio está assim intimamente ligado à concepção do papel do advogado, considerado um colaborador da justiça (acórdão AM&S, nº 24) [5].

O julgado do Tribunal Europeu, com extrema felicidade, retrata uma realidade do nosso cotidiano: "para que um cidadão possa ter a possibilidade de se dirigir utilmente ao seu advogado com toda a liberdade e para que este possa exercer com eficácia a sua missão de colaborador da justiça e de assistência jurídica com vista ao pleno exercício do direito de defesa, pode revelar-se necessário, em determinadas circunstâncias, que o seu cliente prepare documentos de trabalho ou resumos, designadamente para reunir as informações que serão úteis ou mesmo indispensáveis a este advogado para compreender o contexto, a natureza e o alcance dos factos para os quais a sua assistência é pedida" [6]. Não por outra razão é que o acórdão europeu conclui ser de interesse público "assegurar plenamente que todo o cliente tenha a possibilidade de se dirigir com toda a liberdade ao seu advogado" [7].

Corolário de tal entendimento foi a consideração da ilicitude das provas obtidas com violação a tal sigilo [8]. Portanto, a violação do segredo profissional tem repercussões na própria administração da justiça. De forma similar, a Corte Europeia de Direitos Humanos entendeu que o segredo profissional representa um capítulo dos Direitos Humanos, pois a sua violação normalmente envolve a quebra do direito a um julgamento justo e o direito à privacidade. E estes são direitos inalienáveis numa sociedade democrática.

A propósito, o Código de Conduta para o Advogado Europeu (Code of Conduct for European Lawyer), no item 2.3.1, ao tratar da confidencialidade, sufraga a seguinte ideia: "The lawyer’s obligation of confidentiality serves the interest of the administration of justice as well as the interest of the client. It is therefore entitled to special protection by the state" [9].

Desse modo, podemos dizer que o direito ao sigilo profissional é, a um só tempo, um direito fundamental do cidadão na modalidade do direito à privacidade e, também, um direito ao devido processo legal. Daí a correção do antigo ensinamento de Magalhães Noronha quando, ao se referir à proteção penal ao sigilo profissional, advertia ser inegável existir "um interesse público nessa tutela, pois o Estado é diretamente interessado em que a própria pessoa também busque solução para suas necessidades que condizem com fins que são seus, como a saúde coletiva, a distribuição de justiça, a moralidade dos negócios etc." [10].

Portanto, com absoluta razão o acórdão do STJ ao assinalar que o sistema de justiça fica comprometido com a aceitação da delação do advogado contra seu cliente do presente ou do passado. Nos seus termos: "A conduta do advogado que em má-fé delata seu cliente, sem justa causa, ocasiona a desconfiança sistêmica na própria instituição, cuja indispensabilidade para administração da justiça é reconhecida no art. 133 da Constituição Federal. Diante disso, inafastável a conclusão quanto à ilegalidade da conduta do advogado que trai a confiança nele depositada, utilizando-se de posição privilegiada, para delatar seus clientes e firmar acordo com o Ministério Público".

Por isso é que "o dever de sigilo profissional imposto ao advogado e as prerrogativas profissionais a ele asseguradas não têm em vista assegurar privilégios pessoais, mas sim os direitos dos cidadãos" (RHC nº 164.616).

Numa palavra, a função essencial representada pelo advogado no sistema de justiça "não sobrevive se não for a certeza de que o sigilo profissional representa a base sobre a qual se sustenta seu exercício" [11].

Daí a conclusão pela inadmissibilidade da conduta do advogado que, "sponte propria, independentemente de provocação e na vigência de mandato de procuração que lhe foi outorgado, grava clandestinamente suas comunicações com seus clientes com objetivo delatados, e entrega às autoridades investigativas documentos de que dispõe em razão da profissão, violando o dever de sigilo profissional (art. 34, VII, da Lei n. 8.906/1994)".

Tal como salientou o ministro Gilmar Mendes no julgamento da Reclamação nº 37.235/RO, o sigilo profissional do advogado é "premissa fundamental para exercício efetivo do direito de defesa e para a relação de confiança entre defensor técnico e cliente" (DJe de 27/5/2020). Não é por outra razão que, desde muito tempo, se estabelece a proibição de testemunho e inadmissibilidade da prova. Como se sabe: "Pode e deve o advogado recusar-se a comparecer e a depor como testemunha, em investigação relacionada com a alegada falsidade de documentos" (RHC 56.563, rel. min. Cordeiro Guerra, 2ª Turma, j. 20/10/1978, DJ 28/12/1978); "A proibição de depor diz respeito ao conteúdo da confidência de que o advogado teve conhecimento para exercer o múnus para o qual foi contratado" (AP 470 QO-QO, rel. min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, DJe 30/4/2009).

Em resumo, o reconhecimento pela Lei 14.365/2022 e, agora, pelo importante julgado relatado pelo ministro Noronha (RHC nº 164.616) da ilicitude da delação feita pelo advogado contra seu cliente não apenas reforça os laços de confiança que deve repousar na relação entre cliente e advogado, mas no bom funcionamento do sistema de justiça. Afinal, soa estranho, para não dizer odioso, que para salvar sua própria pele, permita-se ao advogado trair o cliente em um dever essencial à existência da própria profissão: o sigilo.


[1] Valores constitucionais e direito penal, trad. Gerson Pereira dos Santos, Porto Alegre, ed. Fabris, 1989, p.22 e seguintes. Para o autor, os "princípios constitucionais influentes em matéria penal", traçam para o direito penal, frequentemente, os grandes rumos disciplinadores.

[2] Recurso nº 0054/2002/SCA-SP – 2ª Câmara, rel. cons. fed. Henrique Augusto Vieira, v.u., DJ 27/8/2002

[3] Recurso nº 0249/2005/SCA – 2ª Turma, rel. cons. fed. Paulo Roberto de Gouvêa Medina, v.u. DJ, 23/5/2007.

[4] Proc. 2.015/99/SCA-MS, rel. cons. fed. José Alvino Santos Filho, v.u., DJ 26/11/99.

[5] Processos T- 125/03 e T- 253/03; caso Akzo Nobel Chemicals Ltd., itens 120 121.

[6] Idem, item nº 122.

[7] Idem, item nº 122.

[8] Processos T- 125/03 e T- 253/03; caso Akzo Nobel Chemicals Ltd.

[9] Tradução livre: "A obrigação do advogado quanto ao sigilo serve ao interesse da administração da justiça e também ao do cliente. Portanto, dá direito a uma especial proteção pelo Estado". O Código de Deontologia dos Advogados Europeus foi originalmente adotado na Sessão Plenária do CCBE realizada a 28 de outubro de 1988, e foi subsequentemente alterado nas Sessões Plenárias do CCBE realizadas a 28 de novembro de 1998, 6 de dezembro de 2002 e 19 de maio de 2006. O Código contém um Memorando Explicativo, que foi actualizado na Sessão Plenária do CCBE de 19 de Maio 2006.

[10] "Direito Penal". 26ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, II/192. Em sentido assemelhado, aludindo a que o sigilo é uma instituição que atina com a "ordem pública", cf. Júlio Fabbrini Mirabete, Manual de direito penal. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, II/196.

[11] RMS nº 67.105/SP, rel. ministro Luis Felipe Salomão (STJ), citando Walter Ceneviva; apud: RHC 164.616, rel. min. João Noronha.

Autores

  • é advogado criminalista em São Paulo, mestre e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, conselheiro federal da OAB, professor de Processo Penal da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e da Comissão de Prerrogativas Profissionais do Conselho Federal da OAB.

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