Opinião

Absurda atribuição de responsabilidade tributária aos marketplaces no RJ

Autor

2 de outubro de 2022, 9h15

Com o avançar da pandemia, a relação dos brasileiros com o consumo evoluiu para as compras efetivadas na internet, em sites onde diversos produtos são oferecidos simultaneamente, sendo possível a efetivação de compras mais diversas sem sair de casa

Assim, os marketplaces ganharam força e mesmo grandes empresas do varejo começaram a abrir espaço para a venda de mercadorias por terceiros em seus sites. Soa estranho gerar uma concorrência dentro da própria plataforma de vendas, mas economicamente, é mais interessante para a empresa ser comissionada pela venda de um produto que não está em seu estoque, do que perder a venda para outro estabelecimento. Assim, ganha espaço a intermediação de vendas realizada em marketplaces, que são somente espaços virtuais para que terceiros efetivem seus atos de comércio.

Percebendo o desenvolvimento do setor, o estado do Rio de Janeiro se antecipou e editou a lei nº 8.795/2020 que atribuiu aos marketplaces e intermediários de negócios online a obrigação de recolher o imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), na condição de responsável tributário, pelas vendas efetuadas por terceiros em sua plataforma.

Tal regra é assustadora, pois além de inconstitucional é imoral. Inconstitucional porque os estados não podem criar hipóteses de responsabilidade tributária não previstas no Código Tributário Nacional, pois o assunto está reservado à lei complementar, conforma artigo 146, III, "b" da CRFB.

Esse entendimento foi consolidado pelo STF no julgamento do RE nº 562.276 [1] e reiterado no julgamento da ADI 6.284, quando foi fixada a tese no sentido de que "É inconstitucional lei estadual que disciplina a responsabilidade de terceiros por infrações de forma diversa das regras gerais estabelecidas pelo CTN" [2]. Dessa forma, como não há previsão na lei geral de aplicação de responsabilidade aos intermediários de negócios, a referida lei estadual fluminense é inconstitucional, pois não cabe à lei ordinária tratar de assunto reservado à lei complementar.

O argumento estatal de que as plataformas de vendas são interessadas pois facilitam a venda, atraindo a solidariedade tributária na forma do artigo 124 do CTN é raso e desesperado. Os marketplaces são prestadores de serviço quando estão disponibilizando o espaço e mantendo o suporte em suas plataformas para as lojas comercializarem seus produtos. Eles não praticam o fato gerador e não participam da venda. O argumento de que tais estabelecimentos são remunerados com percentual do montante das vendas efetuadas e isso seria suficiente para atrair a responsabilidade tributária não deve prosperar. Isso porque somente pode ser considerado responsável aquele tem alguma relação com o fato gerador do tributo, não podendo ser um terceiro aleatório. Não cabe ao intermediador do negócio exigir a emissão de nota fiscal ou mesmo o recolhimento do tributo na respectiva operação, pois sua função é somente aproximar comprador e vendedor.

O interesse na venda e a intermediação não são suficientes para atrair a responsabilidade pois as plataformas de vendas on line não possuem qualquer gerência sobre as lojas que utilizam seus serviços, assim como ocorre com shopping centers. Aliás, o marketplace nada mais é do que um shopping center digital, não havendo qualquer distinção entre eles.

Vejamos o funcionamento de ambos: o shopping center se organiza e distribui as lojas de modo a aproximar as partes, usuário que frequenta suas dependências e lojista. Da mesma forma o marketplace, que investe em inteligência artificial para identificação do consumidor interessado em determinado produto, direcionando a ele publicidade daquilo que lhe interessa, de acordo com seu interesse. A remuneração de ambos é variável de acordo com o faturamento dos lojistas, o que por si, não atrai a responsabilidade tributária pois não praticam o fato gerador e não há poder de gestão sobre as empresas comerciais. Com isso, a relação é exatamente a mesma, não cabendo a aplicação de responsabilidade pois o vínculo com o fato gerador da obrigação tributária não é de interesse comum e não há elemento subjetivo ou mesmo participação na gestão de vendas pelas empresas usuárias da plataforma.

Outrossim, moralmente, a atribuição de responsabilidade também é um absurdo. Trata-se, de forma clara, de uma transferência da atividade fiscalizatória do Estado para o particular, pois com o reconhecimento da constitucionalidade dessa norma, os marketplaces terão que investir altos volumes de dinheiro para garantir um compliance daqueles que estão comercializando produtos em seus sites, cabendo até mesmo o impedimento de emissão de nota fiscal e envio de mercadoria caso a empresa não esteja regular.

Trata-se de uma transferência clara do poder de fiscalizar, gerando mais ônus para o particular que já suporta uma alta carga de tributos e despesas acessórias, podendo até mesmo inviabilizar o negócio, pois para se resguardar, a plataforma de intermediação terá que exercer a fiscalização tributária e reforçar o compliance sobre as empresas usuárias de seu site.

Entretanto, apesar dos argumentos apresentados acima, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro declarou constitucional a referida lei estadual no julgamento da ADI n° 0040214-33.2020.8.19.0000.

Agora, para que não seja inviabilizada a atividade de marketplace no Brasil, pois certamente outros estados seguirão a norma fluminense, cabe ao Supremo Tribunal Federal interpretar a responsabilidade e a possibilidade de inovação pelos entes federados, pois a arrecadação, por mais sedutora e necessária que seja, não tem o condão de inviabilizar a atividade econômica e o empreendedorismo, devendo ser seguidas e respeitadas as regras mínimas de atribuição de responsabilidade previstas na lei geral tributária.


[1] DIREITO TRIBUTÁRIO. RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA. NORMAS GERAIS DE DIREITO TRIBUTÁRIO. ART 146, III, DA CF. ART. 135, III, DO CTN. SÓCIOS DE SOCIEDADE LIMITADA. ART. 13 DA LEI 8.620/93. INCONSTITUCIONALIDADES FORMAL E MATERIAL. REPERCUSSÃO GERAL. APLICAÇÃO DA DECISÃO PELOS DEMAIS TRIBUNAIS. 1. Todas as espécies tributárias, entre as quais as contribuições de seguridade social, estão sujeitas às normas gerais de direito tributário. 2. O Código Tributário Nacional estabelece algumas regras matrizes de responsabilidade tributária, como a do art. 135, III, bem como diretrizes para que o legislador de cada ente político estabeleça outras regras específicas de responsabilidade tributária relativamente aos tributos da sua competência, conforme seu art. 128. 3. O preceito do art. 124, II, no sentido de que são solidariamente obrigadas “as pessoas expressamente designadas por lei”, não autoriza o legislador a criar novos casos de responsabilidade tributária sem a observância dos requisitos exigidos pelo art. 128 do CTN, tampouco a desconsiderar as regras matrizes de responsabilidade de terceiros estabelecidas em caráter geral pelos arts. 134 e 135 do mesmo diploma. A previsão legal de solidariedade entre devedores — de modo que o pagamento efetuado por um aproveite aos demais, que a interrupção da prescrição, em favor ou contra um dos obrigados, também lhes tenha efeitos comuns e que a isenção ou remissão de crédito exonere a todos os obrigados quando não seja pessoal (art. 125 do CTN) — pressupõe que a própria condição de devedor tenha sido estabelecida validamente. 4. A responsabilidade tributária pressupõe duas normas autônomas: a regra matriz de incidência tributária e a regra matriz de responsabilidade tributária, cada uma com seu pressuposto de fato e seus sujeitos próprios. A referência ao responsável enquanto terceiro (dritter Persone, terzo ou tercero) evidencia que não participa da relação contributiva, mas de uma relação específica de responsabilidade tributária, inconfundível com aquela. O “terceiro” só pode ser chamado responsabilizado na hipótese de descumprimento de deveres próprios de colaboração para com a Administração Tributária, estabelecidos, ainda que a contrario sensu, na regra matriz de responsabilidade tributária, e desde que tenha contribuído para a situação de inadimplemento pelo contribuinte. 5. O art. 135, III, do CTN responsabiliza apenas aqueles que estejam na direção, gerência ou representação da pessoa jurídica e tão-somente quando pratiquem atos com excesso de poder ou infração à lei, contrato social ou estatutos. Desse modo, apenas o sócio com poderes de gestão ou representação da sociedade é que pode ser responsabilizado, o que resguarda a pessoalidade entre o ilícito (mal gestão ou representação) e a conseqüência de ter de responder pelo tributo devido pela sociedade. 6. O art. 13 da Lei 8.620/93 não se limitou a repetir ou detalhar a regra de responsabilidade constante do art. 135 do CTN, tampouco cuidou de uma nova hipótese específica e distinta. Ao vincular à simples condição de sócio a obrigação de responder solidariamente pelos débitos da sociedade limitada perante a Seguridade Social, tratou a mesma situação genérica regulada pelo art. 135, III, do CTN, mas de modo diverso, incorrendo em inconstitucionalidade por violação ao art. 146, III, da CF. 7. O art. 13 da Lei 8.620/93 também se reveste de inconstitucionalidade material, porquanto não é dado ao legislador estabelecer confusão entre os patrimônios das pessoas física e jurídica, o que, além de impor desconsideração ex lege e objetiva da personalidade jurídica, descaracterizando as sociedades limitadas, implica irrazoabilidade e inibe a iniciativa privada, afrontando os arts. 5º, XIII, e 170, parágrafo único, da Constituição. 8. Reconhecida a inconstitucionalidade do art. 13 da Lei 8.620/93 na parte em que determinou que os sócios das empresas por cotas de responsabilidade limitada responderiam solidariamente, com seus bens pessoais, pelos débitos junto à Seguridade Social. 9. Recurso extraordinário da União desprovido. 10. Aos recursos sobrestados, que aguardavam a análise da matéria por este STF, aplica-se o art. 543-B, § 3º, do CPC.

(STF – RE: 562.276 PR, relator: ELLEN GRACIE, data de julgamento: 3/11/2010, Tribunal Pleno, data de publicação: 10/2/2011)

[2] Direito constitucional e tributário. Ação direta de inconstitucionalidade. Responsabilidade tributária solidária do contabilista. Ausência de ofensa reflexa à Constituição. Competência concorrente. Legislação estadual que conflita com as regras gerais do CTN. Inconstitucionalidade. 1. Ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Partido Progressista, com pedido de medida cautelar, em que pleiteia a declaração de inconstitucionalidade dos arts. 45, XII-A, XIII e § 2º, da Lei nº 11.651/1991, do estado de Goiás, e 36, XII-A e XIII, do Decreto nº 4.852/1997, do mesmo Estado. Em consonância com tais regras, atribui-se ao contabilista a responsabilidade solidária com o contribuinte ou com o substituto tributário, quanto ao pagamento de impostos e de penalidades pecuniárias, no caso de suas ações ou omissões concorrerem para a prática de infração à legislação tributária. 2. A presente controvérsia consiste em definir se os atos normativos estaduais foram editados em contrariedade com as regras constitucionais de competência tributária, notadamente o art. 146, III, b, da CF/1988. Eventual inobservância de tais regras de competência implica ofensa direta à Constituição. Precedentes. 3. Legislação estadual que amplia as hipóteses de responsabilidade de terceiros por infrações, invade a competência do legislador complementar federal para estabelecer as normas gerais sobre a matéria (art. 146, III, b, da CF/1988). Isso porque as linhas básicas da responsabilidade tributária devem estar contidas em lei complementar editada pela União, não sendo possível que uma lei estadual estabeleça regras conflitantes com as normas gerais ( ADI 4.845, sob a minha relatoria). 4. Inconstitucionalidade formal. Legislação do estado de Goiás aborda matéria reservada à lei complementar e dispõe diversamente sobre (i) quem pode ser responsável tributário, ao incluir hipóteses não contempladas pelos arts. 134 e 135 do CTN, (ii) em quais circunstâncias pode ser responsável tributário (“infração à legislação tributária”), sendo que, conforme as regras gerais, para haver a responsabilidade tributária pessoal do terceiro, ele deve ter praticado atos com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos, não havendo a responsabilização pelo mero inadimplemento de obrigação tributária. 5. Ante todo o exposto, voto pelo conhecimento da presente ação direta de inconstitucionalidade e julgo procedente o pedido, para declarar a inconstitucionalidade dos arts. 45, XII-A, XIII e § 2º, da Lei nº 11.651/1991, do Estado de Goiás, e 36, XII-A e XIII, do Decreto nº 4.852/1997, do mesmo Estado. 6. Fixação da seguinte tese: "É inconstitucional lei estadual que verse sobre a responsabilidade de terceiros por infrações de forma diversa das regras gerais estabelecidas pelo Código Tributário Nacional".

(STF – ADI: 6.284 GO, relator: ROBERTO BARROSO, data de julgamento: 15/9/2021, Tribunal Pleno, data de publicação: 24/9/2021)

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!