Opinião

Aplicação da Lei nº 14.195/2021 às execuções em curso

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1 de outubro de 2022, 7h03

Este artigo aborda a aplicação da nova redação dada ao artigo 921, §4º, do Código de Processo Civil, às execuções e cumprimentos de sentença em curso, permitindo que a contagem do prazo da prescrição intercorrente possa ser feita na forma prevista pela Lei nº 14.195/2021, ou seja, a partir da primeira intimação do credor sobre o resultado infrutífero de diligências de localização do devedor ou de bens penhoráveis, ainda que a intimação seja anterior a 27 de agosto de 2021.

À nossa sociedade, não interessa o abarrotamento do Poder Judiciário com processos nos quais, apesar das medidas adotadas, não foi possível alcançar a efetividade por circunstâncias fáticas próprias da realidade extra-autos, ex. vi a inexistência de patrimônio do devedor para fazer frente ao débito cobrado em execuções de títulos extrajudiciais e cumprimentos de sentença.

De acordo com o relatório Justiça em Números 2022, elaborado pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça, em todos os segmentos de justiça, a taxa de congestionamento da fase de execução supera a da fase de conhecimento, com uma diferença que chega a 17 pontos percentuais no total e que varia bastante por tribunal.

Ao se debruçar sobre este cenário, o egrégio Superior Tribunal de Justiça decidiu que o procedimento previsto no artigo 40 da Lei de Execução Fiscal (LEF), que culmina com o reconhecimento da prescrição intercorrente nas execuções fiscais, inicia-se com a intimação do credor acerca da diligência que não localizou o devedor ou bens penhoráveis.

E ponderou que o espírito do dispositivo legal interpretado é o de que nenhuma execução fiscal já ajuizada poderá permanecer eternamente nos escaninhos do Poder Judiciário ou da Procuradoria Fazendária encarregada da execução das respectivas dívidas fiscais.

A partir desse referência, infere-se que institutos como o da prescrição intercorrente refletem política pública no interesse da sociedade para que processos sem efetividade não permaneçam eternamente nos escaninhos do Poder Judiciário, consumindo recursos, e, pior, concorrendo com processos capazes de alcançar a efetividade, cuja celeridade é comprometida pelo acervo de execuções onde não é possível aplicar o princípio da responsabilidade patrimonial do devedor e satisfazer a pretensão do credor por uma impossibilidade fática, não jurídica. É preciso tratar a taxa de congestionamento do Poder Judiciário.

Inspirada na interpretação dada pelo e-STJ ao procedimento do artigo 40 da LEF, tese fixada sob o rito dos recursos repetitivos que atingiu enorme passivo de execuções fiscais, a Lei 14.195, de 27 de agosto de 2021, deu nova redação ao artigo 921, §4º, do CPC, segundo a qual

"§ 4º. O termo inicial da prescrição no curso do processo será a ciência da primeira tentativa infrutífera de localização do devedor ou de bens penhoráveis, e será suspensa, por uma única vez, pelo prazo máximo previsto no § 1º deste artigo." (Redação dada pela Lei nº 14.195, de 2021)

Em comentários à inovação legislativa, o autor Daniel Assumpção manifesta-se contrariamente à aplicação da Lei nº 14.195/2021 às execuções e cumprimentos de sentença em trâmite, afirmando que não vê sentido na extinção de tais execuções com fundamento na nova redação do dispositivo legal transcrito acima.

"Finalmente, quanto ao direito intertemporal, não parece possível, por questões de segurança jurídica, se defender que as novas regras sejam aplicadas retroativamente em processo em trâmite. Terão eficácia imediata, como toda norma processual, mas devem ser aplicadas somente na vigência normativa em diante. Numa execução atualmente em trâmite, com o exequente ativo, em busca de bens a serem penhorados, não há sentido aplicar-se as novas regras e imediatamente extinguir o processo." (NEVES, 2022, p. 1.607)

Com a deferência que é devida ao autor, discordo de seu posicionamento sobre a inviabilidade de aplicação da Lei nº 14.195/2021 aos processos em trâmite. Entendo que este é justamente o objetivo da lei.

A Lei 14.195/2021 resultou da conversão da Medida Provisória nº 1.040, de 2021, cuja exposição de motivos trata de dois objetivos centrais: reduzir a alta taxa de congestionamento dos processos de execução e elevar a segurança jurídica, tratada como baliza transversal para melhoria dos indicadores do ambiente de negócios.

"No indicador 'Execução de Contratos', temos propostas que visam facilitar a recuperação do crédito, reduzindo o tempo de tramitação das ações de cobrança, dando-lhes maior eficiência e reduzindo a alta taxa de congestionamento dos processos de execução, através da autorização para o Poder Executivo instituir o Sistema Integrado de Recuperação de Ativos – SIRA, capaz de reunir dados cadastrais, relacionamentos e bases patrimoniais de pessoas físicas e jurídicas para subsidiar a tomada de decisão no âmbito de processo judicial em que se demanda a recuperação de créditos públicos ou privados.
(…)
Com objetivo de elevar a segurança jurídica, baliza transversal para melhoria dos indicadores do ambiente de negócios, promove-se a alteração pontual no Código Civil para cristalizar o instituto da prescrição intercorrente já consagrado pelo Supremo Tribunal Federal na Súmula nº 150." (Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 1.040/2021)

Tais objetivos devem servir de norte para os operadores do Direito na interpretação dos dispositivos legais, pois se trata da mens legislatoris da hermenêutica clássica.

A quem interessa, diante desses objetivos, que as novas regras somente possam ser aplicadas para situações processuais que se consolidem a partir da data da entrada em vigor da lei? Fazer isso significa que teremos de esperar por seis anos a concretização de prazos de prescrição intercorrente, na maioria dos casos, quando não tiver ocorrido determinação de suspensão do processo pelo prazo de um ano.

Por que retardar o uso da política pública insculpida legalmente? Não faz sentido.

Adotar entendimento no sentido de que, para definição do dies a quo do prazo prescricional, a atual redação do artigo 921, §4º, do CPC somente poderá ser aplicada para as intimações que ocorrerem após sua vigência será responsável por impedir que inúmeros feitos executivos paralisados no Poder Judiciário cheguem a seu termo, diminuindo a taxa de congestionamento das execuções nos tribunais pátrios, objetivo perseguido pelos Poderes Executivo e Legislativo na edição dos atos normativos em análise.

Com efeito, foi inserida expressão no texto legal que remete à retroatividade do dispositivo, no sentido de que é a primeira intimação o marco inicial da prescrição. Dessa forma, afirmar a necessidade de esperar novas intimações para determinar o início da contagem do prazo de prescrição intercorrente é desconsiderar a redação do dispositivo, que aduz expressamente que o prazo se inicia a partir da ciência da primeira tentativa infrutífera de localizar o devedor ou bens penhoráveis.

E para Mário Luiz Delgado, é possível "permitir que se criem novas situações com base em fatos acontecidos anteriormente, sem macular o valor Segurança ou infringir o Princípio da Segurança Jurídica'" (2014). E no caso da Lei nº 14.195/21 o próprio texto legal já autoriza a produção de novos efeitos com base em fatos acontecidos no passado.

Invocar a regra de direito intertemporal tempus regit actum e o isolamento dos atos processuais para justificar a exigência de que a lei somente poderá ser aplicada para intimações que acontecerem após sua vigência é desconhecer que a prescrição é instituto de direito material e não processual.

A prescrição intercorrente, nascida a partir da prática forense, incorporada em nossa legislação no Código de Processo Civil de 2015, não é instituto de direito processual.

Tanto é assim que a Lei 14.195/2021 veio a cristalizar o instituto inserindo-o no Código Civil, onde deveria ter sido tratado.

O termo a quo do prazo prescricional é regra de direito material e não se confunde com regra processual, muito menos de contagem de prazo processual, para os quais se aplica o tempus regit actum e o isolamento dos atos processuais.

De acordo com o artigo 58 da Lei 14.195/2021, a lei entra em vigor na data de sua publicação e produzirá efeitos:

"I – em 3 (três) anos, contados da data de sua publicação, quanto ao inciso I do caput do art. 36, podendo a Aneel determinar a antecipação da produção de efeitos em cada área de concessão ou permissão;
II – em 360 (trezentos e sessenta) dias, contados da data de sua publicação, quanto à parte do art. 5º que altera o § 3º do art. 138 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976;

III – em 180 (cento e oitenta) dias, contados da data de sua publicação, quanto ao § 3º do art. 8º;
IV – no primeiro dia útil do primeiro mês subsequente ao da data de sua publicação, quanto aos arts. 8º, 9º, 10, 11 e 12 e aos incisos III a XV, XVIII, XXIII e XXXI do caput do art. 57; e
V – na data de sua publicação, quanto aos demais dispositivos."

Entre os demais dispositivos referidos no inciso V acima transcrito, está o artigo 44 que alterou o artigo 921 do Código de Processo Civil e, portanto, produz efeitos a partir da data da publicação da Lei nº 14.195/2021, isto é, 27/8/2021.

Ressalte-se que o legislador pátrio precisou estipular expressamente regras de direito intertemporal quando quis impedir situações pendentes de serem atingidas por alteração de prazos prescricionais, hipótese do artigo 2.028 do Código Civil.

Quando não existir regra de direito intertemporal expressa, aplicam-se as regras da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, de acordo com a qual a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

E o fato de não ter sido estipulado prazo de vacatio legis ou regra de direito intertemporal, sinaliza que o legislador pretende a aplicação imediata, e a aplicação imediata significa que a norma está apta a resolver situações pendentes, como o caso de execuções e cumprimentos de sentença em curso, que podem ser extintas pela nova regra, a partir do reconhecimento da prescrição intercorrente, cujo prazo se inicia a partir da primeira intimação ocorrida no processo.

Nesse sentido, Roubier, após distinguir situações jurídicas que se constituem instantaneamente daquelas que requerem certo período de duração ou um estado de fato contínuo (categoria em que se insere a prescrição), aponta

"Nessas, há de se considerar a lei em vigor em cada um dos momentos constitutivos. Ou seja, enquanto a situação jurídica não estiver definitivamente constituída, a lei nova poderá, sem retroatividade, modificar os pressupostos ou condições de constituição, não lhe sendo permitido, porém, atingir elementos de constituição cujos efeitos já tenham sido produzidos." (Apud DELGADO, 2014)

Outro argumento favorável aproveita a distinção trazida pela corrente objetivista do direito intertemporal entre normas nas quais predomina a autonomia da vontade privada e o interesse dos particulares e as que veiculam matérias em que predomina o interesse do Estado e da ordem pública (caso da prescrição), permitindo-se para as últimas exceções à não retroatividade (DELGADO, 2014).

Por tais fundamentos, discordo do posicionamento sobre a inviabilidade de aplicação da Lei nº 14.195/2021 aos processos em trâmite, por vislumbrar, como explicitado anteriormente, que o espírito da lei é reduzir a taxa de congestionamento na fase de execução nos tribunais pátrios, porque está ínsito ao texto legal que o marco da prescrição é o da primeira intimação no processo, regra essa de direito material que regula o instituto da prescrição não se submetendo ao tempus regit actum e, por fim, pela inexistência de regra de direito intertemporal que a impeça de produzir efeitos sobre situações pendentes.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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REGIS, Mário Luiz Delgado. NOVO DIREITO INTERTEMPORAL BRASILEIRO: DA RETROATIVIDADE DAS LEIS CIVIS. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

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