Opinião

Relação consentida com pessoa com deficiência mental: estupro ou direito?

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1 de outubro de 2022, 9h13

Não são raras as ações penais ajuizadas para a apuração da prática do crime previsto no artigo 217-A, §1º, do Código Penal, contra pessoas que mantiveram relação sexual consentida com pessoa com deficiência mental ou intelectual.

Tais hipóteses envolvem celeumas e discussões dos mais variados ângulos, tanto no campo fático, quanto no jurídico. Isso porque, nem sempre é possível ou facilmente identificável a deficiência intelectual de uma pessoa, que pode passar despercebida. E, já na seara jurídica, o Estatuto da Pessoa com Deficiência é claro em assegurar diversos direitos às pessoas com deficiência (incluindo-se a intelectual e mental) como os direitos sexuais, reprodutivos e adjacentes.

Veja-se de como o legislador descreveu o tipo penal do artigo 217-A, §1º, do Código Penal:

"Artigo 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena – reclusão, de oito a 15 anos.
§1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência."

Essas hipóteses, em que a "vítima"  assim denominada na ação penal  é pessoa com deficiência mental e se apura um delito de estupro de vulnerável com fundamento na falta de discernimento para o consentimento com a prática de atos libidinosos, certamente se enquadram no que a jurisprudência dos Tribunais Superiores tem intitulado de "hard cases", ou seja, casos dotados de elevada complexidade, que não encontram solução simples ou pacífica no ordenamento jurídico.

À luz do novo paradigma trazido pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, cujo ingresso no ordenamento jurídico interno adveio de tratados internacionais de direitos humanos internalizados pela República Federativa do Brasil, passou a ser claro e inequívoco que, como regra, a plena capacidade não é afetada pelo fato de se tratar de pessoa com deficiência (artigo 6º, caput, da Lei 13.146/2015).

A Lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) é expresso em garantir às pessoas com deficiência  incluindo-se a mental e a intelectual — os direitos à constituição de família, de contrair matrimônio, aos direitos sexuais e reprodutivos (artigo 6º, II, da Lei n.º 13.146/2015), dentre outros.

Confira-se de sua redação:

"Artigo 6º A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:
I – casar-se e constituir união estável;
II – exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;
IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;
V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas."

E não só. O artigo 7º dispõe ser um dever de todos comunicar à autoridade competente eventual violação de algum de tais direitos, a respeito da qual se tenha ciência. Não obstante, aos juízes e tribunais, impõe, ainda, a incumbência de remeter as peças ao Ministério Público.

É de se concluir, então, que impedir que uma pessoa com deficiência mental ou intelectual exerça seus direitos sexuais, para além de não encontrar amparo na lei, pode configurar ato até mesmo passível de repressão jurídica.

De um cotejo entre as normativas, e, a partir de uma interpretação sistemática, visando equalizá-las e separar uma conduta criminosa de uma conduta pautada no exercício dos direitos sexuais de uma pessoa com deficiência, dessume-se ser inviável e impertinente amoldar um ato sexual consentido nesse tipo de relação, de forma automática, a um delito de estupro de vulnerável, o que violaria os próprios preceitos do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que, a propósito, tem status de emenda constitucional por ter sido aprovado pelo quórum qualificado previsto na Constituição (artigo 5º, §§1º e 2º, do Estatuto).

Os operadores do direito que atuam diante de tais casos devem ter o acautelamento e aprofundamento necessário nos detalhes, mediante uma análise casuística, isso com o objetivo de que a norma que protege a pessoa com deficiência não0 venha ter sua finalidade desvirtuada e passe a lhe impor restrições não albergadas  até proibidas  pelo ordenamento jurídico pátrio.

Se à pessoa com deficiência  física, mental, intelectual ou sensorial –— é salvaguardado o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos, não é lícito ao Estado apresentar barreiras ao seu direito de manter relação sexual consentida (direitos sexuais e reprodutivos). E, consequência lógica, punir toda e qualquer relação consentida entre uma pessoa com deficiência e outra, com ou sem deficiência.

Há casos em que se verificará a efetiva ocorrência do delito de estupro de vulnerável e há hipóteses em que não se vislumbrará nada além de uma relação sexual consentida, pautada em voluntariedade, desejo, anuência da pessoa com deficiência, e não em sua vulnerabilidade ou incapacidade para consentir. Vale dizer, situações e que a pessoa com deficiência, regularmente, exerceu o direito ao próprio corpo, direitos reprodutivos e sexuais, sem qualquer dolo de aproveitamento da vulnerabilidade pela outra parte.

Embora aparentemente exista uma linha tênue, em cada caso concreto podem ser aferidos esses vetores, e, possivelmente permitir uma conclusão adequada, distinguindo-se o exercício regular de um direito de um crime contra a dignidade sexual.

À Defesa e à Acusação, incumbem a difícil missão de colher elementos de prova que possam esclarecer tais fatores, sem descurar dos princípios basilares que regem todo o processo penal, in dúbio pro réu e favor rei.

Conclusão
Os casos de relação sexual consentida com uma pessoa com deficiência mental, sobretudo no âmbito do processo penal, quando se apura o crime de estupro de vulnerável com base na falta de discernimento para consentir com a prática de atos libidinosos, são complexos e não raras vezes de difícil elucidação.

À luz do Estatuto da Pessoa com Deficiência, a plena capacidade não é afetada em razão de ser uma pessoa com deficiência, ainda que mental ou intelectual. O Estatuto prevê a salvaguarda a tais pessoas, aos direitos à constituição de família, de contrair matrimônio, direitos sexuais e reprodutivos, dentre outros.

A proteção normativa à pessoa com deficiência não pode, de modo até "esquizofrênico", trazer-lhe restrições não mais permitidas pelo ordenamento jurídico brasileiro. Se à pessoa com deficiência (física, mental, intelectual ou sensorial) é garantido o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos, o Estado ou a Lei não podem impedi-la manter uma relação sexual consentida (direitos sexuais e reprodutivos) caso assim deseje.

Conclui-se, desse modo, que não é possível, de forma automática, amoldar toda relação sexual consentida entre uma pessoa com deficiência e outra (com ou sem deficiência) ao crime de estupro de vulnerável. As soluções das controvérsias, ficarão, então, a cargo de uma análise cuidadosa aos detalhes de cada caso concreto.

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