Opinião

'Prova processual penal ilícita' e seus efeitos sobre os lançamentos tributários

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1 de outubro de 2022, 6h04

Um cuidado metodológico preliminar
Pretende-se, apegado apenas aos aspectos jurídicos e técnicos, analisar a viabilidade da medida cautelar fiscal em caso envolvendo grande repercussão política e social em face do uso, em tese, de prova ilegal que embasou lançamentos tributários. Registre-se, desde já, que não são os aspectos políticos e/ou sociais que motivaram essas ponderações, mas, exclusivamente, a preocupação com a correta aplicação dos regimes e institutos de direito tributário, bem como a questão meramente processual, isto é, sem enfrentamento do mérito dos atos administrativos.

O caso concreto
A imprensa noticiou, recentemente, a tramitação de medida cautelar fiscal [1] em face do ex-presidente Lula, tendo em vista fiscalização tributária ocorrida em decorrência de procedimentos de investigação criminal.

O procedimento tramita em face de autos de infração da Receita Federal contra pessoas físicas e institutos. Conforme se infere do pedido cautelar fiscal, os créditos tributários foram impugnados, mas em face das operações da Polícia Federal e da eventual confusão patrimonial entre o Instituto Lula e as pessoas físicas, haveria, em tese, risco de dano à Fazenda Nacional de exigir os respectivos valores. Isso afastaria, ainda, os benefícios fiscais aplicáveis.

Ao ex-presidente, foi aplicada a responsabilidade tributária, cumulando-se os regimes do artigo 124, I, e do artigo 135, III, ambos do CTN, pelo entendimento de "gestão de fato" e "interesse jurídico comum". Assim, pelo eventual risco de lesão ao Fisco, a medida cautelar foi proposta, nos termos da Lei Federal nº 8.397/92, havendo sido deferida pelo Juízo de primeiro grau [2].

Em grau recursal, o TRF da 3ª Região manteve a medida decretada, mas determinou a liberação de valores — até 40 salários mínimos — dos requeridos.

No curso do procedimento cautelar fiscal, entretanto, houve a expedição de decisões, no âmbito dos Habeas Corpus nº 193.726/PR e nº 164.493/PR no STF [3], através dos quais o tribunal declarou a nulidade de atos processuais em face da parcialidade do juiz federal Sergio Moro.

Em face da tramitação da cautelar fiscal em eventual dissonância com a decisão do STF, foi apresentada reclamação constitucional, havendo sido deferido de suspensividade pelo ministro Gilmar Mendes.

Assim, constituem os pontos controversos sob exame: (a) qual o efeito das decisões que declararam a nulidade de atos judiciais dos procedimentos criminais sobre os procedimentos tributários? (b) a eventual prova ilegal que deu base para lançamentos pode ser usada para justificar medidas cautelares fiscais?

Provas nulas podem justificar atos de lançamento tributário?
Ora, sabe-se que o lançamento tributário é atividade privativa [4] e envolve a aplicação da legislação tributária sobre fatos jurídicos previstos na norma que institui as denominadas obrigações tributárias, desde que em consonância com o regime jurídico tributário. No caso, os lançamentos foram expedidos em face de compartilhamento de provas de procedimentos penais, os quais tiveram os respectivos atos julgados nulos pelo STF. O que se tem, portanto, é a nulidade das "provas". Nesse contexto, afasta-se da certeza que caracteriza a prova.

Veja-se que, diferentemente de meras probabilidades [5], a prova deve apresentar objetivamente que determinado fato ocorreu e que sobre ele há efeitos jurídicos. E, no direito brasileiro, o ônus da prova é do Fisco [6]. Nesse sentido, é insustentável qualquer lançamento tributário ou qualquer ato administrativo expedido sem suporte em provas válidas [7]. E isso porque a declaração de nulidade da prova, portanto, afeta o ato administrativo que realizou os lançamentos tributários, porquanto baseados em documentos inidôneos dentro do modelo de legalidade que o Estado brasileiro adota. Em sendo assim, parece ser inquestionável a noção de que qualquer auto de infração baseado em provas nulas acaba maculado, havendo que ser expelido do ordenamento jurídico [8].

Esse é o posicionamento do Carf em diferentes casos envolvendo provas inexistentes ou inválidas [9]. Veja-se, nesse contexto, que a decretação de nulidade da prova equivale, no método jurídico, à sua inexistência, especialmente em matéria tributária, pois afasta o ato administrativo da legalidade e da segurança jurídica. É oportuna, nesse sentido, a lição de Maria Rita Ferragut a respeito da qualificação de "enunciados como 'prova'", pois sujeita "ao cumprimento de métodos de produção reconhecidos pelo sistema" [10]. Ademais, "Para ingressar no ordenamento jurídico, o direito positivo seleciona as propriedades que entram e as que ficam fora do sistema: é a dualidade do ser e do dever-ser, do sistema social e do jurídico. É a segurança jurídica e a legalidade impondo limites ao conhecimento humano juridicamente relevante. Por conta disso, muitos fatos sociais não assumem o status de fato jurídico" [11].

Conclusão
Assim, tem-se que a prova que motivou os lançamentos tributários não pode gerar efeitos em face da decretação de sua nulidade, o que acarretará, tecnicamente, na extinção dos créditos tributários. Com isso, tendo em vista a probabilidade de os créditos tributários não poderem ser mantidos em grau de controle de legalidade, afasta-se da probabilidade de êxito da medida cautelar fiscal, tornando prejudicial o seu próprio objeto.

Isto posto, sem qualquer influência ideológica para o exame do tema técnico, razão não assiste, no caso, ao Fisco, seja porque a prova nula não permite a permanência do ato administrativo na ordem jurídica, seja porque a medida cautelar fiscal acaba perdendo seu objeto diante da ilegalidade dos lançamentos tributários.


[1] Processo nº 5002649-76.2018.4.03.6182 – TRF da 3ª Região.

[2] Consta da decisão: "Assim, no caso, a liminar pretendida deve ser deferida, pois o fato do crédito estar com exigibilidade suspensa (recurso administrativo) não afasta o risco fiscal, dada a amplitude das atividades e a insuficiência patrimonial. E de qualquer forma, ante a natureza reversível da medida, ainda que o crédito lançado venha a ser reduzido ou mesmo cancelado (hipótese possível, embora improvável), a indisponibilidade pode sempre ser readequada ou revogada. Pelo exposto, DEFIRO a liminar, com fundamento no art. 2º, VI e IX, e 3o, da Lei 8.397/92, para determinar a indisponibilidade de bens dos requeridos, na forma como requerida, bem como a expedição de ofício ao Juízo da 13a Vara Federal Criminal de Curitiba/PR, noticiando a indisponibilidade decretada nos presentes autos, a fim de restar obstada eventual liberação de valores a qualquer título em favor dos réus, bem como para que se informe previamente acerca do levantamento de qualquer constrição de bens decretada nos processos em curso naquele Juízo, especialmente os autos de processo no 5046512-94.2016.4.04.7000."

[3] No primeiro dos casos, o STF decretou: "HABEAS CORPUS. COMPETÊNCIA. CONEXÃO NÃO VERIFICADA. AUSÊNCIA DE PRECLUSÃO. OFENSA AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL CONFIGURADA. NULIDADE DOS ATOS DECISÓRIOS. ORDEM CONCEDIDA. EXTENSÃO ÀS DEMAIS AÇÕES PENAIS."

[4] Dispõe o CTN: "Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível. Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional".

[5] Cf. Roque Antonio Carrazza. Reflexões sobre a Obrigação Tributária. São Paulo: Noeses, 2010, p. 319.

[6] Cf. Paulo de Barros Carvalho. Notas sobre a Prova no Processo Administrativo Tributário. In: Direito Tributário – Homenagem a Alcides Jorge Costa, pp. 859-860.

[7] Cf. Fabiana Del Padro Tomé, A Prova no Direito Tributário, p. 623.

[8] "Tratando-se de lançamento realizado pela autoridade administrativa, esta precisa motivar seu ato mediante emprego de linguagem das provas. Sendo a norma individual e concreta emitida pelo particular, a ele incumbe demonstrar a veracidade dos fatos alegados (Essa comprovação pode consistir em deixar à disposição da fiscalização os documentos relativos ao fato relatado no antecedente da norma individual e concreta). Caso o ato de lançamento não se fundamente em provas, estará irremediavelmente maculado, devendo ser retirado do ordenamento." Cf. Fabiana Del Padre Tomé. Prova e Aplicação do Direito Tributário, in: Direito Tributário – Homenagem a Paulo de Barros Carvalho, Coordenação: Luís Eduardo Schoueri, p. 621.

[9] Nesse sentido: "[…] ÔNUS DA PROVA DA AUTORIDADE LANÇADORA AUSÊNCIA DE PROVA. VÍCIO FORMAL INSANÁVEL. NULIDADE. Por força dos princípios tributários da estrita legalidade e da tipicidade, a autoridade fiscal lançadora tem o dever de provar, nos autos do processo administrativo fiscal, o fato jurídico tributário que motivou a formalização da exigência do crédito tributário. O documento que formaliza a exigência do crédito tributário deve estar alicerçado em robustos elementos de prova que, necessariamente, deverão ser acostados aos autos do processo administrativo fiscal. É nulo, por vício formal insanável, a Notificação de Lançamento lastreada em meias afirmações ou presunções da autoridade fiscal, desacompanhado dos indispensável elementos de prova destinados à comprovação do fato jurídico tributário nela direta ou indiretamente relatado (art. 9º do PAF). […] Processo Anulado." (Carf – Acórdão nº 3102-00.696 / Processo n. 11050.000234/2006-81; Data da Sessão: 1/7/2010); “IRPJ – OMISSÃO DE RECEITAS – INDÍCIOS – A atividade administrativa de lançamento há de se submeter ao princípio da reserva legal, o que faz com que as exigências tributárias somente possam ser formalizadas com prova segura dos fatos que revelem o auferimento da receita passível de tributação ou mediante a demonstração de que ocorreram os fatos expressamente arrolados pela lei como presunção de omissão de receitas.” (CC, 3ª Câmara, 2ª Turma, Acórdão 103-21-652, relator cons. Paulo Jacinto do Nascimento, j. 18/6/2004); "RECURSO VOLUNTÁRIO – OMISSÃO DE RECEITA – PRESUNÇÃO SIMPLES – Incumbe à fiscalização apresentar um conjunto de indícios que permita ao julgador alcançar a certeza necessária para seu convencimento, afastando possibilidades contrárias, mesmo que improváveis. A certeza é obtida quando os elementos de prova confrontados pelo julgador estão em concordância com a alegação trazida aos autos. Se remanescer uma dúvida razoável de improcedência da exação, o julgador não poderá decidir contra o acusado. No estado de incerteza, o Direito preserva a liberdade em sua acepção mais ampla, protegendo o contribuinte da inferência do Estado sobre seu patrimônio.” (Câmara Superior de Recursos Fiscais, 1ª Turma, Acórdão 01-05-095, rel. Marcos Vinícius Neder de Lima, j. 17/10/2004) ).

[10] Cf. Maria Rita Ferragut. As provas e o Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 59.

[11] Cf. Maria Rita Ferragut. As provas e o Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 59.

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