Opinião

Violência doméstica e pena criminal

Autor

  • João Mestieri

    é advogado doutor em Direito pela PUC-RJ fellow da Yale University (USA LLM Yale Law School USA 1972) membro efetivo da Academia Brasileira de Letras Jurídicas — titular da Cadeira 16 — professor associado da PUC-RJ e membro honorário da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

30 de novembro de 2022, 19h03

Por que as pessoas estão mais sujeitas a serem objeto de violência e, até, vítimas de homicídio em seus próprios lares e pelas mãos de alguém a quem amam? E ainda: por que as mulheres que são humilhadas e sistematicamente objeto de sevícias e lesões, continuam a viver com seus algozes? Por que após uma cena de violência física segue-se, por vezes, um momento de redenção, em que os parceiros experimentam a sensação de estarem mais ligados emocionalmente?

Essas e outras questões desafiam a perícia de psicólogos, terapeutas familiares, advogados e de todos quantos se interessem pelo problema.

A violência doméstica possui características e contornos muito próprios. Nas relações violentas existe sempre um sentimento compartilhado, que é a raiva, mesclada a uma série de vivências emocionais, conjunto este que pode ou não ser exteriorizado, mas ele está lá, internamente. 

Nos Estados Unidos, por exemplo, muitos estados aprovaram leis específicas, diferenciando essa forma de violência dos assault crimes em geral. A grande razão para esse movimento legislativo foi, pitorescamente, obrigar a polícia a tomar ação diante do abuso doméstico e tratar a questão, não como algo sem importância, ou "em que estranhos não devam se meter", mas como um fato delituoso, que deve levar à prisão do suspeito diante da evidência da prática da violência.

Mas a realidade da proteção à mulher de ameaças e ataques físicos e psíquicos ainda é bastante incipiente, mesmo no mundo desenvolvido. A polícia continua relutante em efetuar prisões, promotores hesitam diante da acusação e magistrados não se sentem à vontade para impor penas correspondentes à injúria física. Um estudo conduzido pela Universidade de Brandeis, em Massachusetts, demonstrou que 90% dos agressores de mulheres deixam de ser processados e que, ainda quando levados à corte e condenados, as sentenças são tão leves que eles praticamente nem mesmo vivem a experiência oficial.

Os pesquisadores estimam que a interação entre as agressões à mulher e aquelas dirigidas às crianças seja em torno de 30% a 40%. Tem sido também apontado que meninos expostos a esse tipo de ambiente têm uma alta predisposição a se engajarem nesse mesmo padrão de comportamento na vida adulta.

No Brasil, alguma coisa já está sendo feita, havendo-se de reconhecer o valor da criação das delegacias de polícia de proteção à mulher e a legislação especializada de proteção à mulher, e sobre a infância e a adolescência. 

Em regra, a maioria dos crimes denunciados pelas vítimas junto às delegacias de Defesa da Mulher (órgão que tem a atribuição administrativa de apurar esse tipo de delito) são os cometidos contra a pessoa, cujas lesões físicas ou psíquicas, são apuradas com a técnica e cuidados peculiares à especialidade e delicadeza dessa classe de descompasso familial. Essas questões são disciplinadas, em sua quase totalidade, pela Lei nº 11.340/2006, a popular Lei Maria da Penha, considerada pela ONU como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento das questões da violência contra a mulher.

Para finalizar, é imperioso advertir-se que a atividade sancionatória criminal, de per si, nunca será capaz de neutralizar ou evitar ações de lesão no ambiente familial. O ideal seria a adoção de sistema administrativo/judicial, de natureza restaurativa. Seria uma legislação de corpo inteiro, de proteção da vida familiar, em  seus múltiplos aspectos e que possa trazer soluções de adaptação dos atores dos possíveis conflitos, deixando a pena criminal como último recurso. Urge que se comece a tratar da reforma da legislação atualmente em vigor, tratando a realidade globalmente, holisticamente, digamos criando-se um Estatuto da Família ou da Vida em Comum.

Muito ao contrário do que hoje se pratica, autor e vítima em interação, poderiam adequar a sua atitude perante o agravo sofrido, podendo, mesmo, a suposta vítima, desistir da sua pretensão penal, quando gravosa e implique na ruptura radical de convívio, inclusive com os filhos; tais institutos funcionariam como "uma ponte de ouro" para o agressor retornar sobre as suas próprias pegadas e reconstruir a vida em família, ou no grupo. O approach restaurativo deve ser, sempre, o objetivo maior a ser alcançado na política de bem estar social.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito pela PUC-RJ, fellow da Yale University (USA.LLM, Yale Law School, USA, 1972), membro efetivo da Academia Brasileira de Letras Jurídicas — titular da Cadeira 16 —, professor associado da PUC-RJ e membro honorário da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

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