Opinião

Sniper do CNJ x blindagem patrimonial do PL 3.401/2008: quem vencerá o jogo?

Autor

  • Arthur Mendes Lobo

    é doutor em Direito pela PUC-SP professor de Direito Empresarial advogado e sócio do escritório Wambier Yamasaki Bevervanço e Lobo Advogados

30 de novembro de 2022, 16h06

Em época de Copa do Mundo, vivenciamos na comunidade jurídica dois novos instrumentos normativos que pretendem, de um lado, satisfazer os interesses dos credores e, de outro, atender as pretensões os devedores. Em outras palavras, temos, de um lado, o chamado Sniper (Sistema Nacional de Investigação Patrimonial e Recuperação de Ativos) instituído pelo Programa Justiça 4.0 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que promete localizar, de forma rápida, com cruzamento inteligente de dados, bens de devedores executados para fins de bloqueio, arresto ou penhora. E de outro, tem-se o Projeto de Lei 3.401/2008 aprovado na Câmara dos Deputados, que pretende restringir as hipóteses de deferimento do chamado incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

O Sniper está jogando no time dos credores. Já está vigente, mas ainda em fase de preparação operacional. Ou seja, ainda não entrou em campo em todos os tribunais. Cada tribunal está criando normas e procedimentos para utilização do sistema.

O Sniper parece ter um bom elenco, que joga com agilidade, sob o comando de um técnico aparentemente inteligente. Permite o cruzamento de dados da Receita Federal, Infojud (dados fiscais), Sisbajud (dados bancários), Anac (registro aeronáutico), Tribunal Marítimo (registro marítimo), CGU (informações sobre sanções administrativas), TSE (informações sobre candidatos e bens declarados), CNJ (processos judiciais, valor da causa, classe e assuntos de processos). Esse time afirma estar preparado para vir a campo, notadamente para identificar relações de interesse para processos judiciais de forma ágil e eficiente. A tática do treinador é promover uma investigação patrimonial centralizada e unificada mediante acesso a diversas bases de dados, sejam eles abertos ou fechados, sem a necessidade de instalar plugins, extensões ou de desenvolver APIs. Tem a vantagem de não ter custos aos tribunais. Também pretende dar maior efetividade aos processos de execução e aos cumprimentos de sentença, porque permitirá investigar patrimônios em segundos, identificando também grupos econômicos. Qual o alvo do Sniper? Fortalecer a estratégia de atuação da Justiça na prevenção e combate à corrupção, combater a lavagem de dinheiro e dar segurança jurídica aos credores, facilitando a recuperação de ativos, para atrair investidores para o mercado brasileiro.

Magistrados de alguns tribunais já estão preocupados com o aumento do volume de trabalho, porque o procedimento até então autorizado exige atuação pessoal e intransferível do juiz. Seria mais um trabalho para o magistrado, pois além de sentenciar, despachar, elaborar decisões interlocutórias, presidir audiências, ele terá que, pessoalmente (leia-se, sem delegar a ninguém) acessar o sistema Sniper para pesquisar e tentar localizar bens do devedor. Tarefa que exige tempo e necessita de delegação. Em outras palavras, o CNJ poderia ter admitido que o escrivão ou outro serventuário, autorizado pelo juízo, pudesse fazer uso da ferramenta.

Já o PL 3.401/2008 joga no time dos devedores. Também ainda não entrou em campo. Aguarda o apito presidencial para fazê-lo. Significa dizer que o Projeto de Lei já foi aprovado pelo Legislativo, mas aguarda sanção do Poder Executivo federal. E o que o projeto traz como novidade? Diversos zagueiros preparados para neutralizar, ou pelo menos dificultar, o ataque dos credores. Prevê uma série de barreiras e linhas de impedimento para anular o ataque ao patrimônio de sócios, administradores ou pessoas de um mesmo grupo econômico da empresa executada. Há quem diga que houve uma burocratização do procedimento, justamente para beneficiar devedores contumazes, que ocultam ativos e colocam o seu patrimônio em nome de terceiros. Enfim, o projeto tem várias jogadas ensaiadas na defesa para afastar o perigo da grande área. O objetivo do projeto de lei foi fortalecer a blindagem patrimonial. Avança a linha de zagueiros, para deixar o atacante impedido e bem longe do gol.

Por outro lado, o PL 3.401/2008 vem preparado para colocar água no chopp do adversário. Promete vir a campo para substituir os avanços trazidos pela Lei da Liberdade Econômica. E também chega com um elenco forte, com ótima agilidade e estrategicamente posicionado para neutralizar o ataque do Sniper. Senão vejamos algumas novidades desse time:

Tem como objetivo restringir, em âmbito judicial ou extrajudicial, qualquer responsabilidade direta, em caráter solidário ou subsidiário a membros, a instituidores, a sócios ou a administradores pelas obrigações da pessoa jurídica.

O credor que pedir a desconsideração da personalidade jurídica deverá indicar, necessária e objetivamente, em requerimento específico, quais os atos por eles praticados que ensejariam a respectiva responsabilização, na forma da lei específica, o mesmo devendo fazer o Ministério Público nos casos em que lhe couber intervir no processo. Essa indicação não é fácil, nem simples. Porque muitas vezes esses atos são confidenciais, feitos em âmbito particular com cláusula de sigilo ou de maneira irregular, sem deixar rastros para o credor. Significa dizer que, se o credor não souber, ou não tiver de antemão elementos que identifiquem os atos individualizados dos sujeitos envolvidos em fraude ou simulação, não poderá sequer requerer a desconsideração da personalidade jurídica. Estará, nesta hipótese, na cara do gol, mas em situação de impedimento. Isso porque o artigo 2º do referido projeto dispõe que o não atendimento dessas condições ensejará o "indeferimento liminar do pleito pelo juiz".

Outro ponto forte do PL 3.401/2008 está na neutralização da jogada mais fatal do Sniper, a saber: o elemento surpresa. Enquanto o Sniper ataca de forma surpreendente para bloquear bens do devedor e seus comparsas, o PL exige prévio contraditório, para que eles saibam de antemão que seus bens estão sendo alvo do ataque. É o que dispõe o artigo 3º do citado projeto: "Antes de decidir sobre a possibilidade de decretar a responsabilidade dos membros, dos instituidores, dos sócios ou dos administradores por obrigações da pessoa jurídica, o juiz estabelecerá o contraditório, assegurando-lhes o prévio exercício da ampla defesa".

Além disso, o projeto assegura que o devedor pode ficar sabendo da existência do pedido por mera consulta pela internet, já que o processo é eletrônico e há disposição expressa determinando que o juiz, ao receber a petição, "instaure o incidente, em autos apartados, comunicando ao distribuidor competente".

O Projeto de Lei parece estar preparado para derrotar o time dos credores. Tem estratégias fortes e muitas jogadas ensaiadas, bolas aéreas e bons batedores de pênaltis, senão vejamos. Determina:

(1) que seja observado o prazo de 15 dias para a defesa contestar e que, após isso, será possível a produção de provas pelos membros, os instituidores, os sócios ou os administradores da pessoa jurídica, antes de qualquer decisão sobre o incidente, o que poderá arrastar por meses e anos uma decisão que admita o ataque do Sniper aos seus respectivos patrimônios. A menção do projeto a "proveito próprio" das partes envolvidas no incidente dará ensejo a muitas discussões, provas testemunhais e periciais. E haverá uma tendência: juízes não efetivarão medidas antes do trânsito em julgado.

(2) o projeto determina que o processo fique sobrestado aguardando a citação de todos os envolvidos na possível fraude ou simulação, devendo haver intimação pessoal, mesmo a parte estando representada por advogado no processo. Um atraso demasiado na localização de pessoas ou representantes legais pode ser fatal ao credor, pois sabe-se que o sobrestamento do processo por longo período pode dar ensejo à prescrição da pretensão executória, como também à prescrição prevista na nova lei de improbidade administrativa.

(3) o juiz não poderá decretar de ofício a desconsideração da personalidade jurídica. Essa disposição do projeto inibe o poder do magistrado, já que mesmo evidenciando fraude, lavagem de dinheiro, corrupção ou má-fé do devedor, terá que ouvir o devedor dando-lhe tempo suficiente para ocultação patrimonial.

(4) haverá uma limitação para interpretação extensiva pelo juiz dos motivos determinantes para a desconsideração.

(5) o projeto condiciona o deferimento da desconsideração à prévia oportunidade de pagamento em dinheiro pela pessoa jurídica executada, ou pelo oferecimento de meios para assegurar a execução, o que não tem nenhuma efetividade, já que mesmo diante de uma prova nítida de abuso da personalidade, o juiz teria que cumprir uma formalidade para declarar o óbvio, dificultando o avanço do credor.

(6) o projeto prevê que a lei entrará em vigor na data de sua publicação, surpreendendo os credores, isto é, sem observar a "vacatio legis" prevista na Lei Complementar 95/1998, que determina que a vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula "entra em vigor na data de sua publicação" para as leis de pequena repercussão. Mas essa lei não é de pequena repercussão.

Sabemos, por óbvio, que nem toda inadimplência é maliciosa. Nem todo devedor deve ter sua personalidade jurídica desconsiderada, pois existem critérios objetivos e formais para que tal situação jurídica ocorra. As leis atualmente vigentes e a jurisprudência mais recente já estão suficientemente amadurecidas para garantir esse discernimento com razoabilidade e respeito ao devido processo legal, sem menosprezar a celeridade e a efetividade do processo. Porém, o Projeto de Lei 3.401/2008, se vier a ser sancionado, será um retrocesso jurídico-processual e um grande entrave ao desenvolvimento econômico do país.

Em suma, o Sniper representa um avanço, já que poderia melhorar o sistema de localização de bens de devedores, bem como a descoberta de fraudes, ocultação patrimonial e outras simulações maliciosas utilizadas para frustrar o recebimento de créditos. Enfim, parece ser um grande time para concretização de direitos no Brasil. Mas o PL 3.401/2008 jogará na retranca e tem mecanismos estrategicamente preparados para ganhar o jogo da impunidade, nessa Copa da Inadimplência Contumaz. E na sua opinião, quem vai ganhar esse jogo?

Autores

  • é professor adjunto de Direito Empresarial da UFPR, doutor em Direito pela PUC-SP e sócio do escritório Wambier, Yamasaki, Bevervanço e Lobo Advogados.

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