Triste República

Lilia Schwarcz e Spacca contam a República sob o olhar de Lima Barreto

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29 de novembro de 2022, 11h39

O livro Triste República, que será lançado em São Paulo no próximo dia 12, conta a história do Brasil sob três pontos de vista diferentes: o da historiadora Lilia Moritz Schwarcz, o do cartunista Spacca e o do escritor Lima Barreto. Schwarcz, professora de Antropologia da USP e da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, é autora de uma vasta coleção de livros fundamentais de História do Brasil. João Spacca de Oliveira é cartunista e quadrinista. Como caricaturista de fino traço, desenha caras para a ConJur quase desde o nascimento da revista eletrônica. Como autor de histórias em quadrinhos publicou seis livros de História do Brasil, três deles em parceria com Schwarcz — Triste República é um deles. Os outros dois são Dom João Carioca, que trata da fuga da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, e As Barbas do Imperador, que conta a história de dom Pedro II. Não seria demais dizer que Spacca é também um historiador

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O livro Triste República será lançado
em São Paulo, no próximo dia 12

E Afonso Henriques de Lima Barreto, o terceiro coautor da obra, "é um dos maiores prosadores da língua portuguesa de todos os tempos", como informa a contracapa do livro. Morto em 1922, no mesmo ano da Semana de Arte Moderna, não foi considerado, à época, um modernista, embora o fosse na verdade. Deixou uma obra essencial para a literatura brasileira, só reconhecida como tal anos após sua morte: Triste Fim de Policarpo Quaresma, Recordações do Escrivão Isaías Caminha; Cemitério dos Vivos, Clara dos AnjosBruzundangas são algumas das obras-primas deixadas por ele. Essa incompreensão do gênio, bem como as agruras que marcaram sua vida e que o levaram à morte prematura e obscura, têm uma explicação: Lima Barreto era negro.

A proposta do livro é contar a história da Primeira República, o período da História do Brasil que vai da Proclamação da República, em 1889, até a Revolução de 30, entremeada com a história de vida e os comentários de Lima Barreto, que, como já se disse, morreu oito anos antes do fim da República Velha. Além do traço primoroso e semifotográfico de Spacca, tudo que está escrito em Triste República, tem origem bem definida: parte saiu dos livros de Schwarcz — especialmente Brasil uma Biografia, em coautoria com a também historiadora Heloísa Starling; Triste Visionário, a biografia de Lima Barreto, que ela publicou em 2017, vencedor do Prêmio APCA daquele ano; e A Bailarina da Morte, o seu relato sobre a epidemia de gripe espanhola que assolou o mundo em 2019 —; parte saiu dos escritos de Lima Barreto — além dos livros já citados, uma referência importante foi o seu Diários Íntimos; e parte foi recolhida de jornais, revistas e outros documentos da época, num trabalho ingente de Spacca para o escrutínio diligente de Schwarcz.

Historiadora de renome, com uma obra respeitada — acaba de vencer o Prêmio Jabuti 2022, na categoria Ciências Humanas, com o livro Enciclopédia Negra — Biografias Afro-Brasileiras —, Lilia Schwarcz faz questão de ressaltar a participação de Spacca na parceria que já está em sua terceira obra, tanto na pesquisa de imagem como na de texto. Ela lembra que são escassas as imagens de Lima Barreto e que Spacca conseguiu criar um retrato dele muito fiel ao que se conhece de seu modo de ser. E, ao contrário de uma fisionomia triste e sorumbática, como poderia induzir sua trágica existência, o Lima Barreto de Spacca tem uma aparência jovial, bonachona e bem-humorada. O que, afirma Schwarcz, ele era na realidade. Além de fino pesquisador gráfico, garante Schwarcz, Spacca é também um acurado pesquisador da História e deu grande contribuição ao texto, indo além dos precisos textos de sua parceira, que deram base à obra conjunta.  

Uma história em quadrinhos pode induzir o leitor a achar que está-se diante de uma leitura leve e fácil, mas isso só é verdadeiro no que se refere à forma. Como é próprio do gênero, também há bom humor e graça, na dose certa. No conteúdo, entretanto, trata-se de um texto denso, que lida com uma realidade da maior gravidade, que descamba com frequência para a crueldade. E isso no que diz espeito tanto à República quanto a Lima Barreto. Para Schwarcz, o formato é uma forma de ampliar o alcance da ciência: "As escolas se queixam, com razão, que a academia não fornece subsídios para os seus alunos, então eu acho importante fornecer outros suportes para elas".

A vida foi cruel com Lima Barreto. E como. Ele próprio lembra que nasceu num dia 13, "creio que em sexta-feira". No dia 13 de maio de 1888, foi levado pelo pai a comemorar o aniversário de sete anos no Largo do Paço, à espera da assinatura da Lei Áurea, a lei que colocou fim formalmente à escravidão no Brasil. Filho de pais negros, ele conta que nunca vira uma pessoa escravizada. E a abolição da escravidão lhe pareceu sinalizar um futuro promissor. "Os dias que se seguiram, de folganças e satisfação, deram-me uma visão da vida inteiramente de festa e harmonia", escreveu ele. Ledo engano. O grande escritor, que quase se formou engenheiro, e que só teve seu gênio literário reconhecido depois da morte, passou a vida numa repartição pública exercendo a finada profissão de amanuense (num tempo em que não havia computador ou sequer máquina de escrever, era o profissional encarregado de transcrever os documentos oficiais), sem nunca ganhar uma promoção, alternando internações no manicômio, por causa da loucura, e internações na própria casa por conta do alcoolismo. Enquanto seus colegas iam estudar na Europa, Lima se daria por satisfeito se fosse parar em Botafogo, mas acabou no subúrbio carioca de Todos os Santos. Tornou-se, assim, um notável cronista da vida suburbana do Rio de Janeiro de então, mas escrever não lhe deu camisa. Os editores gostavam e elogiavam seus escritos, mas na hora de publicar achavam que não precisavam pagar os direitos autorais.

Tudo isso marcado e ditado pelo fato de Lima Barreto ser negro. Um fato: nos primórdios do Carnaval, o grande sucesso dos desfiles era um maxixe, composto por Bastos Tigre, um colega de Lima na escola polítécnica. O refrão dizia, com má intenção: "Vem cá, mulata, mulata vem cá. Não vou lá não, não vou lá não". Todos se divertiam, menos Lima. "O 'vem cá mulata', penetrou-me nos ouvidos com um insulto. Lembrei-me de minha mãe. O convite canalha parecia dirigido a ela." Se alguém quiser saber o que é racismo estrutural, tem aí um curso completo.

Spacca lembra que Lima era estudioso de teorias raciais e psiquiátricas correntes à época, temas que foram fontes de sofrimento e angústia para ele, já que sofria com o preconceito racial e conviveu com o estado de insanidade de seu pai e com sua própria condição de "louco temporário". Teorias como a do médico italiano Césare Lombroso, para quem o homem criminoso seria o homem que não evoluiu. Dizia também que desvios mentais estavam relacionados a anomalias do corpo, especialmente da face e do crânio.

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O escritor Lima Barreto aparece
na obra como uma espécie de coautor

Seguindo o espírito da época, Lima era chegado a tirar conclusões sobre a personalidade das pessoas a partir de suas características fisionômicas. É assim, por exemplo, que descreve Floriano Peixoto: "A fisionomia do Marechal de Ferro era vulgar e desoladora. O bigode caído, o lábio inferior pendente e mole a que se agarrava uma grande 'mosca'. Seus traços predominantes eram fraqueza de ânimo e muita preguiça. Dessa preguiça de pensar e agir vinha o seu mutismo e seus misteriosos monossílabos. E deu-lhe aquele aspecto de calma superior, calma de grande homem de estado ou de guerreiro extraordinário".

Cruel também é a história do Brasil, que serviu de moldura para as desventuras de Lima Barreto. "A gente gosta de descrever a nossa história como muito pacífica, mas esse é o grande mito nacional’, diz Schwarcz. "A realidade é o contrário, temos uma história muito violenta, um país muito desigual, pautado na mão de obra escrava". Trata-se de uma sucessão de golpes, de estados de sítio, de revoltas, de morte, muita morte. A Proclamação da República, em 1889, é um golpe medíocre, seguido por outro golpe que coloca Floriano Peixoto no lugar do presidente eleito, o golpista da República, Deodoro da Fonseca. Todos militares, marechais.

A degola está na moda. Na Revolta da Armada, em 1893, contra Floriano, "trezentos prisioneiros 'pica-paus' são degolados. Dias depois, na fortaleza de Anhatomirim, 185 presos, culpados e inocentes, são executados sem defesa e sem julgamento. Mais execuções ocorrem no Paraná". Os combatentes de movimentos insurgentes messiânicos, como Canudos e o Contestado, não escapam da sina da degola. Massacres de presos indefesos ocorre também na Revolta da Chibata, promovida justamente para reivindicar o fim dos castigos corporais a que eram submetidos os marinheiros.

Este tipo de tortura de natureza trabalhista era prática comum naqueles tempos, principalmente no meio militar, e dessa pecha não escapou nem mesmo o grande marechal Rondon, o fundador da política de proteção aos povos indígenas do Brasil. Conta o livro que Rondon — que pregava em relação aos indígenas "morrer se for preciso, matar jamais" — recorria à chibata e à tortura para impor sua autoridade aos subordinados que conduzia em suas expedições pelos sertões inexplorados do país.

A violência política da Primeira República pode ser resumida no simples ato da decretação de estado de sítio, expediente utilizado por todos os governos para sufocar a oposição e reprimir movimentos sociais. Um ano depois de assumir a Presidência, Deodoro da Fonseca impõe o estado de exceção, mas não consegue impedir o golpe de Floriano Peixoto, seu vice, que o substitui no cargo. Em vez de convocar eleições, como mandava a Constituição, o novo marechal-presidente decreta novo estado de sítio e prende quem exigia eleições. Quando Ruy Barbosa entra com pedido de Habeas Corpus para libertar os presos políticos, o marechal reage com a sabedoria de quem pode mais: "Se os juízes concederem Habeas Corpus aos políticos, quem dará aos juízes o Habeas Corpus de que necessitarão amanhã?".

E a história segue. Dos 12 presidentes do período, pelo menos nove recorreram à suspensão de direitos e garantias para governar. Os outros não o fizeram, talvez, por falta de tempo: apenas seis desses presidentes concluíram os quatro anos de mandato. Entre os que cumpriram o mandato do começo ao fim está Arthur Bernardes, que levou o seu governo a termo praticamente em estado de sítio. Uma república construída assim, com menosprezo à Constituição e ao Direito, não podia prometer um futuro menos triste.

O que o livro de Spacca e Schwarcz mostra é que muito daquele passado continua presente na República atual. Isso fica muito claro num episódio que marcou a triste República no início do século 20 e no início do século 21: a epidemia de gripe espanhola num caso e de Covid-19 no outro. Quase tudo o que aconteceu em 1918 repetiu-se em 2019: negacionismo ("São casos comuns de gripe", afirma o diretor de Higiene, Abelardo Baltar); reação contra medidas de proteção e isolamento ("Seria um desastre para a economia", diz o governador de Pernambuco, Manuel Borba); manipulação política ("Essa epidemia é uma invenção de oposicionistas sem escrúpulos que fazem de tudo para desmoralizar a Bahia", discursa o deputado baiano Arlindo Leoni); e censura à imprensa ("Ficam sujeitas à censura policial as publicações desse jornal relativamente à influenza espanhola", decreta Ariosto Pinto, chefe de polícia de Porto Alegre).

A guerra da vacina, que aconteceu também em 2019, foi travada em outras circunstâncias em 1904, no combate à febre amarela dentro de um projeto de modernização urbanística da capital federal, então no Rio de Janeiro. Só que naquela época o governo estava do lado certo e defendia a vacinação da população.

Para Lilia Schwarcz, nossa história está cheia de repetições: "No livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro, um dos supostos é que nosso presente está cheio de passado. São muito impressionantes as repetições da história, estes momentos de divisão política, de ódio, as reconstruções também".

Quem ler o livro vai descobrir, por exemplo, que o surto de patriotismo que assola os quartéis brasileiros desde 30 de outubro não é uma completa novidade. Por ocasião da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o Brasil foi tomado por uma onda patriótica para que deixasse sua posição de neutralidade e participasse do conflito na Europa. A campanha pelo alistamento militar, que teve entre seus líderes o poeta parnasiano Olavo Bilac, tinha como lema o "cidadão-soldado": "Quero e sempre quis a instrução e a defesa do país pelos livros e pelas armas", dizia o poeta. Já Lima Barreto achava que o serviço militar obrigatório era "um crime contra a liberdade" e uma "violência aos temperamentos individuais".

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