Embargos Culturais

Perante os juízes romanos, de Detlef Liebs

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

27 de novembro de 2022, 8h05

IDP/Saraiva Jur publicam, em belíssima tradução do magistrado Márcio Flavio Mafra Leal, Perante os juízes romanos, de Detlef Liebs. O autor, respeitado historiador do Direito, oferece-nos uma forma inusitada de estudo dos institutos de Direito Romano. Ao contrário dos textos tradicionais, que se ocupam de conceitos e estruturas de Direito Privado, Liebs recolhe, sistematiza e conta em pormenor vários processos que ilustram a reminiscência jurídica romana.

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O autor fixa narrativa histórica, identifica contexto e fontes, apresenta razões jurídicas, fundamentos, bem como a influência e o desdobramento posterior dos vários casos que apresenta. Há um capítulo (IX) sobre o julgamento de Jesus, no qual o autor retoma a narrativa neotestamentária (Mateus, 26, 27, Marcos 14,15, Lucas 22, 23, João 13, 18, 19). Ao lado de recentes trabalhos sobre o fascinante tema (de autoria de Zagrebelksy, Agambem e Cohn), o texto de Liebs é central na discussão, tomada em perspectiva jurídica e literária, e não teológica. Liebs reflete em torno de uma crucificação preventiva, no contexto da qual explora o tema da jurisdição penal romana nas províncias.

A Palestina era dominada pelos romanos. À época dos fatos, o imperador romano era Tibério César. O governador romano na Palestina era Pôncio Pilatos. O governador da Galileia, parte da Palestina, de onde vinha Jesus, era Herodes Antipas. Um fortíssimo nacionalismo judeu os colocava contra a dominação romana na Palestina.

A partir do julgamento de Jesus Cristo pode-se também problematizar o papel das várias facções e opiniões políticas nos grandes debates judiciais. Dependendo do ponto de vista seguido esse importante julgamento pode exemplificar a pressão da opinião pública junto aos magistrados. Liebs trata de audiência de Cristo com Pilatos. Os motivos determinantes do governador romano são explorados. Para Liebs, Pilatos “se decidiu pela execução, pelo caminho mais seguro, enquanto uma absolvição ou uma mera pena corporal, contrariando os determinados líderes locais, poderiam influenciar negativamente em sua carreira”.

No limite, pode-se sustentar que o Direito é, na essência, política, e o texto de Liebs oferece chaves interpretativas para esse postulado. Para o autor alemão, o processo de Jesus é um indicativo de que o processo estatal nem sempre é justo, mesmo quando baseado na lei e em argumentações jurídicas plausíveis.

O primeiro capítulo, “o assassinato da irmã enlutada pelo inimigo abatido” é uma retomada do julgamento que sucedeu ao episódio da luta dos irmãos Horácios e Curiácios, ilustrado no quadro de Jacques-Louis David. A fonte é literária, está em Tito Lívio, historiador romano que teria nascido por volta de 59 a.C.

Na guerra entre Roma e Alba Longa decidiu-se pela luta entre trigêmeos que representavam as duas cidades, como medida mesmo para que se poupassem vidas. Os Horácios representavam Roma e os Curiácios a Alba Longa. Restava apenas um Horácio, que ardilosamente simulou debandada e assim enfrentou cada um dos Curiácios em momentos diferentes, vencendo a contenda.

Ao entrar em Roma constatou, enfurecido, que a irmã chorava a morte de um inimigo; fora noiva de um Curiácio. O irmão assassina a irmã e é levado a julgamento. A situação é paradoxal. Horácio é um herói, vencera a guerra. Porém, ao mesmo tempo, deveria responder pelo homicídio da irmã. O desfecho é fascinante.

Esse processo é um dos vários casos que o autor relata nesse empolgante livro. Chama a atenção a qualidade da tradução, de um germanista, que conhece muito bem nossa língua também, e que por isso traduz com fluência. O cuidado com a edição é impecável. Atente o leitor para a nota de rodapé 3, que é do tradutor, e que nos informa que esse drama já fora levado para o cinema.

Perante os juízes romanos, de Detlef Liebs, é um livro de cultura jurídica, de sabor enciclopédico, bem dosado nessa compreensão da difícil relação entre direito e história. Trata-se um esforço historiográfico original, com especial ênfase nos temas de Direito romano, de cuja falta se ressente na bibliografia contemporânea, muitas vezes de facilitação e de superficialidade reflexiva.

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

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