Opinião

Responsabilidade da academia em relação às manifestações golpistas

Autor

  • Adriana Cecilio

    é professora de Direito Constitucional advogada especialista em Direito Constitucional mestra em Direito e autora da obra A Separação dos Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos.

24 de novembro de 2022, 15h12

As manifestações que se seguiram aos resultados das eleições do último dia 30 de outubro estão causando diversos transtornos e prejuízos à sociedade. Pessoas foram atropeladas nas estradas e nas ruas. Um senhor foi preso por deixar os filhos dentro do carro para participar da manifestação e responderá por abandono de incapaz. Um rapaz tentou invadir um quartel, crime enquadrado no artigo 302, do Código Penal Militar (CPM). Manifestantes derrubaram uma árvore centenária para fechar uma estrada, logo, praticaram crime ambiental. Crianças, pessoas idosas e mulheres foram ou talvez ainda estejam sendo usadas como escudo em bloqueios. São pessoas do povo, pais, mães, "tias do zap", aquele nosso vizinho e a vizinha, que estão comprometendo o seu futuro em razão de uma luta inglória.

Esse movimento possui dois pilares elementares que, sem eles, nada disso estaria acontecendo. O primeiro é o fato de o presidente da República e seus apoiadores terem reiteradamente ventilado que o processo eleitoral poderia ser fraudado, incitando a população a desconfiar da legitimidade das eleições, algo que merece apuração rigorosa e punição exemplar; e o segundo motivo que impulsionou essa desordem social foi um elemento trazido pela academia, no sentido de afirmar que as Forças Armadas (FA) poderiam assumir o poder em um caso de celeuma entre os poderes constituídos.

É de se destacar que o impacto financeiro das paralisações será mais um elemento na já quase impossível equação para fechar as contas do nosso país, considerando o rombo de quase R$ 400 bilhões deixado pelo atual governo aos cofres públicos. Mas, sem dúvida alguma, os danos estão sendo maiores para aqueles que vêm realizando esses atos. Para as pessoas que estão perdendo o seu tempo, reclamando de uma fraude que não existe e esperando uma "intervenção militar" que nunca virá, porque não pode vir, pois a Constituição Federal veda expressamente, e de forma inequívoca, qualquer possibilidade de as Forças Armadas assumirem o poder em nosso país. Exceto pelo golpe de Estado.

Nenhuma interpretação do artigo 142, da CF, pode levar a crer que as Forças Armadas possuem essa prerrogativa. Os nossos constituintes originários tiveram o cuidado de fechar a porta à hipótese da chamada "tutela militar", ao determinarem que as FA estão sujeitas a uma autoridade civil, "sob autoridade suprema do presidente da República".

É relevante trazer um trecho da fala de Fernando Henrique Cardoso, então constituinte originário, por ocasião da aprovação do artigo que trata a respeito das Forças Armadas:

"Todos estamos cansados de ouvir e de saber dos argumentos desde a Constituição de 1891, através da qual efetivamente foi outorgada uma espécie de poder de tutela às Forças Armadas. Todos sabemos que a doutrina das intervenções frequentes e a tentativa de transformar as Forças Armadas em Poder Moderador acabou por gerar, no Brasil, uma situação de permanente suspeita entre a sociedade e as Forças Armadas. O texto do Constituinte Bernardo Cabral, desde a primeira formulação até à segunda,na verdade, o que buscou e busca é romper com essa tradição.
O que inovou o Relator Bernardo Cabral nos dois textos? Inovou ao dizer que as Forças Armadas são, sim, destinadas a garantir a integridade da Pátria; inovou ao claramente definir que: "qualquer outra participação das Forças Armadas no processo nacional, que não seja o da defesa da integridade da Pátria, depende da decisão dos poderes constitucionais". É a ruptura entre as formulações anteriores e a formulação atual. Ruptura, porque anteriormente não se dizia isso A iniciativa, implicitamente, pelos textos anteriores, ficava nas mãos das Forças Armadas" [1].

Essa fala, que transcrevo do livro A Separação do Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos, foi extraída dos Anais da Assembleia Nacional Constituinte. Publiquei a pesquisa completa aqui [2], em junho de 2020, época em que surgiu a teoria de que as FA poderiam assumir o poder em um momento de crise. Pelos debates dos nossos constituintes originários, não resta dúvida de que o Texto Constitucional não outorga às Forças Armadas o status de Poder Moderador. Não existe hipótese alguma albergada pela Constituição brasileira que permita qualquer movimentação autônoma por parte dos membros das FA.

Qualquer militar que intente algo contra os poderes instituídos comete crime, previsto no artigo 169 do Código Penal Militar. Tampouco, seria legítimo que o presidente da República convocasse as FA para agir em face dos demais Poderes, pois tal ato se configuraria em um desequilíbrio entre os três Poderes, algo próprio das ditaduras, como ensina o professor Ives Gandra Martins em sua obra Uma Breve Teoria do Poder:

"Hoje, graças aos meios de comunicação mais sofisticados e à internet, a manipulação, nas ditaduras, é mais difícil que no passado, mas nem por isso inexistente. É de se lembrar que, nas semiditaduras da Venezuela, Bolívia e Equador, as constituições garantem, com mecanismos como leis habilitantes, direito de dissolução dos Parlamentos, referendos populares dirigidos, supremacia do Poder Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário" [3].

A ideia de que as Forças Armadas teriam a prerrogativa de tomar o poder para resolver problemas entre os três Poderes fez nascer esse grave factoide jurídico, a famigerada "intervenção militar constitucional". Que seria uma espécie de golpe de Estado "constitucional" (sic), porque, supostamente, a Constituição teria deixado subentendido algo da mais alta relevância, como a possibilidade de instauração de um regime de exceção, para além das hipóteses positivadas.

A maioria absoluta da academia entende que isso não faz sentido, mas as pessoas leigas, e em especial destaco as senhoras idosas que ficaram dias ajoelhadas rezando o terço em frente a quartéis — senhorinhas essas que deveriam estar com sua família, mas que aderiram a essa cruzada messiânica por salvar o país —, elas não sabem. Nem elas, nem as demais pessoas que não são da área jurídica.

O atual presidente, depois de dias de manifestação, pediu para as pessoas desocuparem as rodovias, mas apoiou os protestos, atribuindo um caráter de legitimidade a atos que questionam o resultado eleitoral e o direito de se insurgir contra o candidato eleito. Uma clara violação da regra do jogo eleitoral, das normas postas e, por conseguinte, do Estado democrático de Direito. É fato notório e ululante que a liberdade de expressão não alberga o direito de pleitear um golpe de Estado. E não aceitar o resultado do pleito eleitoral, requerendo intervenção militar, significa pedir um golpe de Estado, não há outra denominação possível.

Depois da fala do presidente, os manifestantes não clamaram mais por ele, mas seguiram, e alguns ainda seguem, pleiteando que as Forças Armadas "salvem o país". Salvar o país da democracia? O resultado das eleições é e sempre foi idôneo e legítimo. Agora, restou definitivamente comprovado e atestado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pelo Ministério da Justiça (MJ), por meio do relatório apresentado pelas Forças Armadas. Não fosse por esse último relatório, o caos poderia ter se instaurado de forma definitiva em nosso país, uma vez que a fé dos manifestantes estava totalmente depositada nas FA.

Essas pessoas que seguiram todos esses dias protestando, gastando sua saúde e sua vida, atrapalhando a paz social, comprometendo sua honra, sua primariedade, elas o fizeram porque ouviram e acreditaram que existe uma possibilidade de as FA assumirem o poder. Cidadãos brasileiros que foram influenciados por informações totalmente equivocadas advindas da academia.

Como professora, me sinto responsável pelo que ensino aos meus alunos e alunas. Me esforço para fazê-los crer na importância do Estado democrático de Direito e na força normativa da nossa Constituição. E honro as minhas verdades com a prática. Por isso defendo, diuturnamente, de forma incansável e convicta, a nossa Constituição Cidadã. E é óbvio que, ou se respeita a Constituição, ou se defende a possibilidade de as FA tomarem o poder ao arrepio de qualquer autorização constitucional expressa. Uma coisa exclui a outra.

Ao longo da história, o posicionamento da academia sempre influenciou a sociedade para o bem ou para o mal. Em que pese a liberdade de interpretação de cada professor, defender teses atentatórias às instituições é algo desastroso, capaz de causar grandes e graves estragos. Como bem estamos atestando nesse passo da vida política de nosso país. Que essa situação fique registrada para a posteridade, a fim de que os membros da academia jurídica das próximas gerações tenham sempre a consciência de sua imensa responsabilidade com o povo brasileiro.


[1] Cecilio, Adriana. A Separação dos Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos. São Paulo: Ed. Amanuense, 2022, p. 182.

[3] Uma Breve Teoria do Poder. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009, p. 123

Autores

  • é professora de Direito Constitucional, advogada, especialista em Direito Constitucional, mestra em Direito, autora da obra A Separação dos Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos e consultora de Direito Constitucional da Comissão de Observatório Eleitoral da OAB-SP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!