Opinião

Transnacionalidade ambiental: o Acordo de Paris e o Acordo de Escazú

Autor

  • Vanessa Alvarez

    é advogada especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional mestre em Direito Internacional titular de LLM em Direito Francês e Europeu ambos na na Universidade Paris 1 Panthéon - Sorbonne mestre em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutoranda em Direito Internacional Público na Faculdade de Direito de Lisboa.

23 de novembro de 2022, 11h09

A revolução industrial, a globalização e os conflitos internacionais latentes impuseram um novo regime jurídico transnacional para o enfrentamento das mudanças climáticas, assentado sobre quatro pilares: (1) a Convenção Quadro, que entrou em vigor em 1994, ratificada por 197 países; (2) o Protocolo de Kyoto, que entrou em vigor em 1997, com a ratificação atual de 192 países; (3) o Acordo de Paris, que entrou em vigor em 2016 e conta com a adesão de 185 países; (4) o Acordo de Escazú, que entrou em vigor em 22 de abril de 2021.

No cenário brasileiro, a Rio-92 revolucionou o quadro jurídico com o fortalecimento do princípio da precaução e do princípio das responsabilidades compartilhadas e diferenciadas (as ideias de proporcionalidade de acordo com o desenvolvimento de cada país). Em 2009 foi assumido o compromisso climático de, até 2020, reduzir a emissão de GEEs entre 36,1% e 38,9%, em relação às emissões projetadas para o período. Embora o referido documento tenha sido caracterizado como "soft law", a meta anunciada foi consagrada no artigo 12 da Lei nº 12.187/2009 (Política Nacional sobre Mudança do Clima e ratificada no artigo 19, § 1º, I, do Decreto nº 9.578/2018).

Em 2016, a ratificação do Acordo de Paris pelo governo brasileiro confirmou a importância da redução da emissão de GEEs em 37%, com relação ao nível de 2005, até o ano de 2025, e em 43% até o ano de 2030, mas tratou-se apenas de "contribuição nacionalmente determinada" [1], ou seja, de meta determinada por cada Estado-parte.

A questão ambiental é uma questão constitucional
Em 1˚ de julho de 2022, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 708 o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que o Acordo de Paris possui status de tratado internacional de direitos humanos e esse novo desenho traz diversas questões relevantes para o cenário climático global.

A ADPF foi ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pela Rede Sustentabilidade, que pleitearam o reconhecimento da violação de compromissos internacionais por parte do atual governo, notadamente, do Acordo de Paris.

Por maioria, a Suprema Corte brasileira julgou procedente a ação para: (1) reconhecer a omissão da União, em razão da não alocação integral dos recursos do Fundo Clima referentes a 2019; (2) determinar à União que se abstenha de se omitir em fazer funcionar o Fundo Clima ou em destinar seus recursos; e (3) vedar o contingenciamento das receitas que integram o Fundo.

A ADPF, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, fixou o entendimento de que o direito da segurança climática é um direito de status constitucional e a tese de que o Poder Executivo tem o dever constitucional de fazer funcionar e alocar anualmente os recursos do Fundo Clima, para fins de mitigação das mudanças climáticas, sendo vedado seu contingenciamento, em razão do dever constitucional de tutela ao meio ambiente (CF, artigo 225), de direitos e compromissos internacionais assumidos pelo Brasil (CF, artigo 5º, par. 2º), bem como do princípio constitucional da separação dos poderes (CF, artigo 2º c/c artigo 9º, parágrafo 2º, LRF [2]).

O precedente equacionado na ADPF n˚ 708 altera toda a perspectiva nacional no reconhecimento da fundamentalidade da questão climática como uma questão de direitos humanos. O ideal do bloco de constitucionalidade para além do artigo 5˚, parágrafo 3˚ da Constituição Federal (adicionado pela emenda constitucional n˚ 45/2004), foi ratificado, confirmando a tese da constitucionalidade material de tratados internacionais de direitos humanos.

Eficácia paralisante dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos
A tendência contemporânea do constitucionalismo global de prestigiar as normas internacionais destinadas à proteção dos direitos humanos, o desenvolvimento do sistema interamericano e os princípios do direito internacional sobre o cumprimento de obrigações internacionais trouxeram novos obstáculos à manutenção da tese da simples "supralegalidade" dos tratados internacionais de direitos humanos.

Vale lembrar que em 2008, no âmbito do julgamento do Recurso Extraordinário n˚ 466.343 o Supremo Tribunal Federal adotou um verdadeiro controle de convencionalidade (Pacto de San José da Costa Rica) ao alterar significativamente a questão da internalização dos tratados internacionais de direitos humanos, pois decidiu — frise-se, por via indireta — pela prevalência do artigo 7.7 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica ratificado pelo Brasil em 1992) sobre a regra disposta no artigo 5˚, inciso LXVII da Constituição considerando ilícita a prisão civil do depositário infiel [3] (atual súmula vinculante n˚ 25 do Supremo Tribunal Federal).

Na ocasião, a Suprema Corte brasileira reconheceu que os tratados de direitos humanos passam a "paralisar a eficácia jurídica" de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com eles conflitante, uma nova tese da supralegalidade mais abrangente para a efetiva aplicação do princípio "pro homine" independentemente da hierarquia ou do status da norma paradigma.

Em verdadeiro controle indireto da convencionalidade da própria Constituição brasileira, o Supremo Tribunal Federal esvaziou a força normativa da previsão constitucional concernente à possibilidade de prisão do depositário infiel ao impossibilitar ao legislador ordinário a regulamentação da matéria.

No precedente, o que se considerou é que a leitura global e contextualizada do texto constitucional permite inferir a existência de um bloco de constitucionalidade, conforme citado no voto do ministro Celso de Mello, por meio da cláusula geral da dignidade da pessoa humana disposta no artigo 1˚, inciso III [4]; artigo 4˚, inciso II que dispõe a respeito da prevalência dos direitos humanos), artigo 5˚, parágrafo 2˚, além do artigo 225, caput, todos da Constituição Federal brasileira.

Assim, através da análise dos precedentes do RE n˚ 466.343 e da ADPF 708, é ratificado o bloco de constitucionalidade materialmente fundamentado no artigo 5˚, parágrafo 2˚ da Constituição no sentido de que: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

O Acordo de Paris e o Acordo de Escazú
No âmbito internacional, o Acordo de Paris é um tratado internacional que aborda o tema da mudança climática. Adotado por 196 Partes na COP 21, em Paris, em 12 de dezembro de 2015, entrou em vigor em 4 de novembro de 2016. O acordo estabelece diretrizes para preservar o futuro do planeta, dada a emergência de um princípio de solidariedade para ampliar progressivamente a perspectiva, dos direitos humanos aos deveres para com a humanidade. Contudo, o Acordo de Paris não prevê um mecanismo de sanções, mas, apenas, uma estrutura de transparência chamada MRV (monitoramento, relatório e verificação) [5].

No âmbito regional do Mercosul, em 4 de março de 2018, a América Latina e o Caribe tomaram uma decisão histórica ao adotar em Escazú, Costa Rica, o Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Questões Ambientais na América Latina e no Caribe.

Obtempere-se que o Acordo de Escazú é vinculante e não prevê a possibilidade de reservas. O principal objetivo é garantir o direito das gerações presentes e futuras de viver em um ambiente saudável e de ser protegido pela justiça ambiental. Os pilares mais importantes são: o acesso à informação, o acesso à participação, o acesso à justiça climática e a proteção dos defensores do meio ambiente. O acordo entrou em vigor em 22 de abril de 2021.

Ainda, o Acordo de Escazú, é a resposta dos países do Cone Sul à Agenda para o Desenvolvimento Sustentável de 2030 da ONU e o primeiro tratado ambiental a dedicar disposições específicas aos defensores do meio ambiente na América Latina e reconhece importantes direitos: (1) no artigo 1˚ o acesso à informação, participação pública nos processos decisórios ambientais e justiça em matéria ambiental; (2) no artigo 3˚ importantes princípios ambientais são descritos como o princípio da não regressão e o princípio da progressividade; o princípio da boa fé; o princípio da prevenção; o princípio da precaução e o princípio da equidade intergeracional; (3) Ainda, no artigo 8 é previsto o acesso à justiça em matéria ambiental (uma lacuna significativa no Acordo de Paris), o que representa um passo importante da América Latina e do Caribe.

Então, por que o Brasil ainda não ratificou o Acordo de Escazú?
O Acordo de Escazú entrou em vigor em 22 de abril de 2021, após a ratificação por 12 Estados (Argentina, Bolívia, Chile, Uruguai, Equador, Guiana, México, Nicaraguá, Panamá, entre outros [6]).

O Brasil assinou o Acordo de Escazú em 27 de setembro de 2018, mas ainda não o ratificou, o que significa que o procedimento previsto pela Constituição Federal Brasileira ainda não foi concluído.

Obtempere-se que os retrocessos ambientais perpetrados pelo atual governo brasileiro — notadamente nos anos de 2020 e 2021 — se refletiram, inclusive, na negativa do governo francês em dar continuidade ao tratado Mercosul-UE, que fez exigências para assinar o acordo de associação com o Mercosul como o comprometimento de não aumento do desmatamento e o alinhamento das políticas públicas dos Estados do Mercosul com seus compromissos no âmbito do Acordo de Paris.

Portanto, apesar do reconhecimento da fundamentalidade constitucional do Acordo Regional — nos termos do artigo 5˚, parágrafo 2˚ da Constituição — é essencial que o Brasil ratifique e internalize o Acordo de Escazú (que até agora só foi assinado), para que se comprometa de forma vinculante a implementar normas eficazes de combate às mudanças climáticas, além de promover o respeito ao meio ambiente e aos seus defensores.


[1] ADPF n˚ 708, conteúdo disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=763392091. Acesso em 9/11/2022.

[3] Recurso Extraordinário n˚ 466.343: PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do artigo 5º, Inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do artigo 7º, § 7º, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.

[5] Neste contexto, deve ser destacada a importância do portal Nazca (Non-State Actors' Climate Action Zone), uma ferramenta para um caminho mais concreto em direção aos compromissos climáticos no mundo todo.

Autores

  • é advogada do escritório Zanin Martins Advogados, especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional, mestre em Direito Internacional na Universidade Paris 1 Panthéon—Sorbonne e secretária-geral do Lawfare Institute.

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