Opinião

Democracia defensiva e os atos antidemocráticos

Autor

  • Sidney Duran Gonçalez

    é advogado criminalista palestrante escritor especialista em teoria jurídica do delito mestre em Direito Penal e doutorando em Direito Penal todos pela Universidad de Salamanca (Espanha).

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22 de novembro de 2022, 21h37

"Quando eu uso uma palavra — disse Humpty Dumpty num tom bastante desdenhoso — ela significa exatamente aquilo que eu quero que signifique… nem mais nem menos[1]."

Nos dias atuais, claro!! Podemos dizer qualquer coisa, sobre qualquer coisa. Essa é a nossa democracia. O poder de dar as palavras o que se quer que elas signifiquem!

Posso não querer ser livre, e é essa a grande liberdade, a liberdade de querer viver sob amarras, isso sim é democracia, é o direito de não ter mais democracia!! Diriam os adeptos Humpty Dumpty, esses que vagam por aí estilo The Walking Dead com camiseta canarinha pedindo "ditadura".

E de repente o absurdo se fez lógico, pois, somente o autoritarismo militar para nos sacar do autoritarismo democrático, pois sim, como não havíamos pensado nisso antes!

Vimos esses dias que a percepção de realidade foi alterada para uma parcela de pessoas, que como em um transe coletivo ocupam as frentes dos quartéis pedindo "ditadura militar" para enfrentar o que consideram violações ao processo democrático, ou seja, não aceitam que o seu candidato perdeu às eleições.[2]

Os manifestantes em elástica e deturpada análise invocam o artigo 142 da Constituição, para suscitarem uma "intervenção militar" com a finalidade de anular às eleições e manter no poder o candidato derrotado nas urnas.

A leitura "equivocada" (leia-se: deturpada e maldosa), do artigo 142 da Constituição Cidadã, tem dado aos manifestantes (leia-se golpistas) o material necessário para em nome da liberdade deles, pedir a retirada da liberdade de todos. Vejamos o artigo 142:

"As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem." [3]

Como se extrai da leitura do texto, pois, já digo, dispensa mínima exegese diante da clareza vocabular, o artigo 142, estabelece em primeiro lugar; que as forças armadas não pertencem ao "governo" da vez, "são instituições nacionais permanentes", e que uma intervenção federal somente pode ocorrer a pedido de um dos poderes, e sempre, sempre, e sempre, como diz textualmente "à garantia dos poderes constitucionais", ou seja, nunca poderia ser chamada a intervenção por populares, contra um dos poderes.

Não existiria qualquer lógica jurídica, em um mesmo artigo garantir "os poderes da república", e se permitir que sejam atacados pelas forças armadas que lhe são subordinadas, ou seja, é impossível logicamente fazer esta leitura do artigo 142, que de fato é uma clara limitação ao presidente da república, em utilizar às forças para neutralizar os outros poderes, pois, ao colocá-lo como autoridade suprema das forças armadas, logo em seguida limita esse poder, dando a exata destinação de sua utilização "à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais", ou seja, o poder de chefe supremo existe para garantir a existência dos poderes, e nunca para agir contra Estes.

O artigo 142 da CF, nos leva a concluir que de fato existe para impedir golpismos, como os quem tem ocorrido em frente aos quartéis, condutas estas criminosas e tipificadas no Código Penal:

359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena — reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.

Essa dinâmica dos "novos tempos", de clara adesão ao extremismo e ao arbítrio, faz com que reflitamos sobre como as democracias podem lidar com os excessos da liberdade garantida por esses regimes.[4]

Muito discutida no mundo pelo menos desde 1937, mas ainda pouco conhecida no Brasil, a teoria da democracia defensiva, que encontra suas origens na democracia de militância, descrita por Karl Loewenstein em seu artigo científico "Militant Democracy and Fundamental Rights" —  em tradução livre: "Democracia de militância e direitos fundamentais", é certamente um sentido norteador paras as indagações logo acima lançadas.[5]

Exige-se debruçar-se em reflexão aos dias atuais, com a crescente sanha autoritária, ao analisarmos o contexto em que se formulou a teoria da democracia de militância, que foi desenvolvida por um jurista alemão, quando da ascensão do regime nazista.

Na época Loewenstein, se preocupava com a existência de partidos políticos com anseios totalitários, o que possibilitaria ataques ao próprio regime democrático, causando a sua extinção. O que se demonstrou justificável, visto que Hitler não alcançou o poder por meio de um golpe de estado, mas sim por meio de disputa democrática pelo Partido Nacional Socialista, já expondo em sua campanha eleitoral que não respeitaria as regras democráticas.

Como sabemos já de muito tempo, algumas Constituições europeias utilizam a teoria da democracia militante,  constando expressamente em seus textos a possibilidade de dissolução de partidos polí­ticos, como nas Constituições da Alemanha, Áustria, Dinamarca e Polônia e Espanha, mesmo sendo objeto de muitas críticas, apesar de sua fundamentação nos fatos ocorridos na Alemanha nazista, já que para alguns autores, a democracia militante confere excessivo poder a uma instituição (que julga), o que pode ser objeto de con­sequente abuso e ameaça ao regime democrático.

Vale rememorar, que a democracia de militância já teve testes práticos de sua teoria, onde podemos citar o cassação de registro do partido separatista basco, Batasuna, na Espanha.

As manifestações que temos visto ultimamente, são claramente uma projeção daquilo que tem pregado já há muito, o seu maior incentivador, o presidente da República, que eleito pelo voto popular de maneira democrática, volta-se contra o sistema e incentiva desconfianças acerca das eleições, colocando em descrédito todo o sistema.

Os desafios da democracia que temos acompanhando nesses dias, nos obrigam a pensar em ações práticas para criação de mecanismos de defesa previstos no próprio sistema, ou, para impedir que se possa no ambiente político serem aceitas propostas de cunho autoritário, ou que ataquem os fundamentos do Estado democrático; ou ainda, que se criem ferramentas jurídicas que antecipem e punam condutas violadoras do Estado democrático.

O fato de que a democracia possibilita as armas para que seja atacada por seus "inimigos", é um dos motivos para pensarmos na adoção de uma postura defensiva ao sistema democrático, sendo interessante lembrarmo-nos a frase de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha nazista[6]:

"Sempre será uma das melhores piadas da democracia o fato de que ela dá aos seus inimigos mortais os meios para destruir a si própria."

Por esta visão, concluímos que para que seja possível a democracia, é extremamente necessário a existência de ferramentas desenvolvidas no seio democrático a fim de obstar ideias totalitárias que passem a ameaçar o próprio sistema democrático.

O filósofo austríaco Popper chama essa problematização de "paradoxo da tolerân­cia", quando analisa os paradoxos da liberdade e da democra­cia aos quais Platão fazia referência, afirmou que[7]:

(…) chamado paradoxo da liberdade é o ar­gumento de que a liberdade, no sentido de ausência de qualquer controle restritivo, deve levar à maior restrição, pois torna os violen­tos livres para escravizarem os fracos.

Menos conhecido é o paradoxo da tolerância: a tolerância ilimitada pode levar ao desa­parecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até àqueles que são intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância.

Popper, não defendia de qualquer maneira suprimir o direito à manifestação de filosofias intolerantes, desde que se pudesse contradizer racionalmente tais manifestações, mantendo certo controle perante a opinião pública, nestes casos deveria ser possível a sua livre manifestação, todavia, necessitaria existir previsão de que possibilitasse suprimir manifestações intolerantes, quando se visse impossível conte-las com argumentos racionais.

Como podemos ver, o grande problema das democracias segundo os autores citados, seria manter um regime que prega a total tolerância a manifestações, e podendo ser esta tolerância cultuada sem limites o fator de destruição do próprio regime democrático.

As ideias trazidas por Loewenstein, no sentido de defender a necessidade de exclusão de certos grupos políticos como forma de sobrevivência da democracia, faz-se no sentido de que a democracia não pode aceitar todo tipo de afronta ao seu sistema, e que estas afrontas sistêmicas estariam amparadas pela liberdade de expressão e manifestação, pois, se assim se posiciona, assinaria sua carta de suicídio, sendo assim defendido por  Loewenstein, que, se criem mecanismos para a legítima defesa da ordem democrática.

Na conjuntura atual, faz-se necessária a discussão quanto a adoção de mecanismos de defesa democrática, sendo que os momentos ora vividos nos fazem refletir, diante dos exemplos da utilização das liberdades democráticas com o fim de exterminar a própria democracia, o que nos convoca ao debate quanto a implementação de ferramentas capazes de afastar ameaças autoritárias.


[1] CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice através do espelho. São Paulo: Círculo do Livro, 1983.

[2] ABELIN, Carolina. Manifestações contra eleição de Lula completam 11 dias na porta de quartéis em SP e no DF. Disponível em: < https://jovempan.com.br/programas/jornal-da-manha/manifestacoes-contra-eleicao-de-lula-completam-11-dias-na-porta-de-quarteis-em-sp-e-no-df.html.

[3] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

[4] DURAN, Gonçalez Sidney. Do crime de apologia a ditadura e a dialética dos novos tempos. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-22/crime-apologia-ditatura-dialetica-novos-tempos>.

[5] LOEWENSTEIN, Karl. Militant democracy and fundamental rights, I. The American Political Science Review, [s. l.], v. 31, n. 3, p. 417-432, June 1937. DOI: https://doi.org/10.2307/1948164.

[6] FERNANDES, Tarsila Ribeiro Marques. Democracia defensiva: origens, conceito e aplicação prática. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 230, p. 133-147, abr./jun. 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/ril_v58_n230_p133

[7] POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1974. v. 1. (Coleção Espírito do nosso Tempo, 1).

Autores

  • é advogado criminalista, palestrante, pós-graduado em Processo Penal, especialista em Teoria do Delito, mestre em Direito Penal, doutorando em Direito Penal, todos pela pela Universidad de Salamanca (ESP).

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