Opinião

Do crime de apologia a ditadura e a dialética dos novos tempos

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22 de abril de 2020, 20h52

A dialética atual impõe a parte majoritária da sociedade, uma séria análise das manifestações ocorridas em data próxima, indicando que existe outro fator em nosso meio que não se coaduna com os princípios democráticos.  Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em seu livro Como as Democracias Morrem, nos adverte com suas observações, já permeada por outros autores, que afirmam que “Desde o final da Guerra Fria, a maior parte dos colapsos democráticos não foi causada por generais e soldados, mas pelos próprios governos eleitos[1]”.

Nas sábias palavras do eminente ministro Marco Aurélio Melo, que já nos alerta em suas manifestações no Supremo Tribunal Federal com a frase "tempos estranhos estamos vivendo", refletindo a refinada visão do magistrado, que há muitos anos carrega o peso da toga que lhe foi confiada, sempre firmando posição na defesa do Estado de Direito e da Democracia. Outro grande magistrado que nos guarda a história, Marco Túlio Cícero, quando ocupava o cargo de cônsul romano, ao descobrir que o senador Lúcio Catilina, organizava uma conspiração para assassiná-lo, reuniu o senado e proferiu o primeiro de seus quatro célebres discursos contra Catilina, que assim se inicia[2]:

“Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? Quam diu etiam furor iste tuus nos eludet? Quem ad finem sese effrenata iactabit audacia?”

Ambos juristas que iconicamente marcam o seu tempo, e coincidentemente compartilham o mesmo nome, nos trazem questões que merecem profunda reflexão. O primeiro, já a alguns anos alerta de que existe uma estranha mudança no ambiente do Estado, e digo estranha diametralmente ao Estado Democrático de Direito, é isso que entendo por “tempos estranhos”, são estranhos à base que nos forma como nação, apartando-se de nossa sociedade criada para buscar a cidadania e a fraternidade. O segundo, nos alerta quanto ao fascínio pelo poder, nos releva a traição golpista, e nos exorta a pensar se toleraríamos situações de ruptura autoritária.

Até quando Catilina abusarás da nossa paciência, clama Cícero, frase que pronunciada há mais de dois mil anos, poderia ser perfeitamente utilizada nos dias de hoje. Até quando os que clamam pela ditadura abusarão da paciência da nação? Será que a sociedade democrática é obrigada a ter que conviver com pessoas que clamam pelo autoritarismo, pela violência e pelo abandono das liberdades individuais?

A liberdade de expressão não abarca o clamor pela violência, tortura e perda de garantias, que a custo de muito sangue e sofrimento foram conquistadas no decorrer de séculos de luta contra o autoritarismo. A sociedade não é obrigada a comungar com o pensamento de pessoas que abandonaram os limites da republica e bailam com atores que querem a implantação do terror.

O nosso Estado contém dispositivo legal para conter aqueles que queiram alterar pela subversão violenta, o nosso regime democrático solidificado na Constituição Federal:

Art. 23 – Incitar:
I – à subversão da ordem política ou social;
II – à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis;
III – à luta com violência entre as classes sociais;
IV – à prática de qualquer dos crimes previstos nesta Lei.
Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.

A Lei 7.170/83, denominada Lei de Segurança Nacional, diz em seu artigo 23 ser crime com pena de 1 a 4 anos, a incitação a subversão da ordem política ou social, ou seja, todos aqueles que se manifestam publicamente defendendo a intervenção militar em nosso Estado; a substituição dos poderes constituídos democraticamente por um poder imposto pela força e pelo medo, estão cometendo um grave crime.

O artigo 23 da Lei de Segurança Nacional pode e dever ser utilizado para imputar penalmente a conduta de aglomerar-se em via pública com a intenção de incitar o rompimento democrático com o pedido de intervenção militar. Organizar e participar de manifestações contra o regime democrático que vigora em nosso país é crime, e deve ser imputado à aqueles que abandonando a vida dentro das regras sociais estabelecidas,  passam a querer viver pela prática de delitos graves.

A propaganda com intuito de engrandecer e potencializar as manifestações que pedem a intervenção militar e o fechamento do Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional, também são figuras típicas descritas no Art. 22 da própria Lei de Segurança Nacional e no Art. 287 do Código Penal.

No caso, não existe qualquer violação ao direito constitucional da livre reunião e manifestação do pensamento, como meio de expressão da liberdade de expressão, pois, mesmo que sendo livres para pensar e manifestarmo-nos publicamente, o direito a manifestação também é regido por limites. O direito a se expressar livremente nunca poderá ser exercido contra direta ou indiretamente direitos fundamentais, principalmente contra a dignidade da pessoa humana, que é frontalmente atingida pela instalação de regimes ditatoriais, sendo isto que nos revela a história de nosso país e o exemplo que temos de países que vivem sob este tipo de regime, portanto, a legitimidade de impor limites à liberdade de expressão está justificada de princípio, para que uma garantia não se choque com outra.

A esperança contra o arbítrio e os interesse obscuros de alguns, só podem estar nas Leis e nas instituições, não existe saída fora das Leis e longe do Estado Democrático. A confiança nos poderes constituídos, e a certeza que o fortalecimento da democracia é a única saída para as crises que se instalam, deve ser o nosso guia nesses novos tempos, e o combate a aqueles que no escuro valsam a beira do abismo, será com luzes e com o exercício do estado de leis, pois seguiremos “com a lei, pela lei e dentro da lei; porque fora da lei não há salvação”. (Rui Barbosa)

François Andriex narra a história, que em um lugar chamado de “sem-preocupação” um vendedor de farinha enfrentou um grande imperador que ameaçava tirar-lhe as suas terras, eternizando a célebre frase “Isso seria verdade se não houvesse juízes em Berlim”, a confiança na justiça que não se dobra aos interesses dos poderosos, fez com que o moleiro mantivesse o seu moinho, trazendo-nos uma grande lição e perspectiva para os dias atuais, confiemos na justiça, ainda há juízes no Brasil.

 


[1] Ver Larry Diamond, “Facing Up to the Democratic Recession”, Journal of Democracy 26, n.1 (jan 2015), p.141-55; e Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk, “The Democratic Disconnect”, Journal of Democracy 27, n.3 (jul 2016), p.5-17

[2] CÍCERO, Marco Túlio. As catilinárias. Trad. Nicolau Firmino. Rio de janeiro: H. Antunes, 1952.

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