Garantias do Consumo

A informação qualificada na concessão responsável do crédito

Autor

  • Andressa Jarletti Gonçalves de Oliveira

    é advogada doutora em Direito pela PUC-PR com doutorado sanduíche na Universidade de Bologna (Itália) mestre pela UFPR professora na Escola Superior de Advocacia da OAB-PR e em diversos programas de pós-graduação vice-presidente da Comissão de Direito Bancário da OAB-PR membro do Brasilcon do IBDCont e da International Association of Consumer Law.

16 de novembro de 2022, 8h00

A Lei 14.181/2021 atualizou o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC) para aperfeiçoar a disciplina da concessão de crédito para consumo, instituindo mecanismos para a prevenção e para o tratamento do grave fenômeno social do superendividamento. Como toda lei, o CDC é fruto de seu tempo e na época de sua edição, em 1990, a sociedade brasileira ainda não tinha vivenciado a explosão do crédito para consumo. A atualização promovida no CDC aos trinta anos de sua vigência surgiu num momento oportuno, em que o nível de endividamento da população brasileira alcança patamares recordes [1], estimando-se que mais de 42 milhões de brasileiros estejam superendividados [2].

As medidas adotadas para atualização do CDC em matéria de crédito para consumo e superendividamento seguiram duas frentes distintas: a prevenção e o tratamento do superendividamento. Esse último é previsto nos artigos 104-A a 104-C do CDC, que instituíram um novo procedimento que se inicia de forma consensual (artigo 104-A) e pode seguir para o trâmite judicial (artigo 104-B), inclusive com adesão compulsória de alguns credores ao plano de tratamento e recuperação financeira do consumidor superendividado. Esse procedimento para recuperação financeira do superendividado aplica-se apenas ao consumidor, pessoa natural e de boa-fé, que não consegue adimplir a totalidade de suas dívidas de consumo sem prejuízo de sua subsistência.

De outro lado, os novos dispositivos sobre a prevenção do superendividamento reforçam o direito à informação como um todo e por isso tem-se defendido que se aplicam para todos os casos de concessão de crédito para consumo, não apenas para os superendividados. Nesse ponto, as novas regras exigidas para concessão responsável do crédito e cumprimento do dever de informação incidem tanto para os consumidores pessoas físicas, estejam ou não superendividadas, quanto para as pessoas jurídicas, que se enquadrem nos conceitos de consumidor standard (artigo 2º, CDC) ou equiparado (artigo 29, do CDC) [3].

As principais medidas para prevenção do superendividamento foram o reforço da boa-fé objetiva e do direito à informação; a previsão de educação financeira do consumidor; o direito básico do consumidor à garantia de práticas de crédito responsável; a preservação do mínimo existencial na revisão e repactuação das dívidas; a regulação da publicidade e da oferta do crédito.

O reforço do direito à informação passa a exigir maior detalhamento sobre os elementos do custo do crédito. A partir de agora não basta ao fornecedor apenas informar, deve também esclarecer adequadamente o consumidor sobre custos, riscos e consequências gerais e específicas do inadimplemento. Essa medida segue a mesma linha da legislação francesa de prevenção ao superendividamento, bem como da Diretiva 48/2008/CE, que exige dos fornecedores de crédito no âmbito da União Europeia o atendimento aos deveres de informação e de conselho, contribuindo assim para a reflexão do consumidor na contratação do crédito.

O cumprimento do novo dever de esclarecimento sobre os custos e riscos do crédito demanda uma análise mais personalizada das condições individuais de cada consumidor, como idade, escolaridade, etc., sobretudo num pais em que muitos consumidores são de baixa renda, baixo grau de escolaridade e praticamente 30% da população é analfabeta funcional. Aperfeiçoar as informações sobre os custos e riscos da concessão de crédito é uma providência crucial já que a falta de educação financeira e de compreensão sobre os custos e riscos das operações de crédito contribuem para o endividamento excessivo dos consumidores. No caso brasileiro, uma pesquisa realizada em 2011 pela Ipsos constatou que quase 70% dos brasileiros não sabem o quanto pagam de juros pelo uso do crédito, o que atesta a necessidade de reforço do direito à informação [4].

A novidade da Lei 14.181/2021 nesse sentido foi estabelecer o dever de esclarecimento conjuntamente com os deveres de avaliar adequadamente as condições de pagamento do consumidor para a concessão responsável de crédito e de entregar a cópia do contrato ao mutuário e todos os garantes. O esclarecimento exige que o fornecedor de crédito preste as informações adequadas sobre as diferentes modalidades de concessão de crédito, os custos respectivos e riscos.

A informação clara, prévia e adequada sobre os diferentes produtos e serviços colocados no mercado, seus custos e seus riscos, não é novidade, já consta originalmente no artigo 6º, III, CDC, dentre os direitos básicos do consumidor. O que muda com a lei é a exigência de que esse dever seja especificamente observado na concessão de crédito, explicando e orientando o consumidor sobre as diferentes opções de uso do crédito – empréstimos fixos, com ou sem garantia, limite de crédito de cheque especial, cartão de crédito, empréstimo consignado, etc. -, os diferentes custos de cada linha de crédito e os riscos gerais e específicos da inadimplência. Por exemplo, em um contrato firmado com garantia de alienação fiduciária, o fornecedor de crédito deve esclarecer para o consumidor que a inadimplência resultará na perda do bem móvel ou imóvel gravado em garantia do contrato. Esse dever de esclarecimento pode contribuir para que os consumidores façam o uso do crédito de acordo com a modalidade que mais se adeque a seu perfil e a sua necessidade, avaliando de forma mais precisa os custos e riscos de cada linha de crédito. E quiçá pode contribuir para que linhas de crédito de altíssimo custo, como o cartão de crédito, deixem de ser um dos pilares do superendividamento dos consumidores.

O detalhamento do custo de crédito passa a exigir também o atendimento expresso às regras dos artigos 52, 54-B, 54-C e 54-D, CDC, além do cálculo padronizado pela autoridade monetária sobre o Custo Efetivo Total (CET) das operações. Nesse ponto, é importante observar que, desde a origem, o CDC estabeleceu algumas informações obrigatórias que deveriam ser transmitidas ao consumidor nos casos de concessão de crédito ou financiamento, dentre as quais destaca-se a soma total a ser paga, com e sem financiamento (artigo 52, V, CDC). Na prática, os contratos de concessão de crédito deveriam trazer a comparação entre o valor emprestado e o valor total a ser pago pelo consumidor, permitindo assim compreender facilmente o custo efetivo que o uso do crédito implica para o devedor. De nada adianta informar, por exemplo, que um financiamento de veículo tem uma taxa de juros remuneratórios de 2% ao mês. Essa informação, por si só, pode induzir à falsa percepção de que o contrato custa pouco, mas em cinco anos essa cobrança com o critério de juros compostos resulta em uma dívida equivalente ao dobro do valor emprestado. Se os consumidores recebessem a informação completa de que um financiamento de R$ 30 mil irá custar R$ 60 mil ao longo de cinco anos e que o carro, que no começo do contrato valia R$ 30 mil não valerá mais do que R$ 20mil ao final, talvez buscassem outras formas menos onerosas de crédito para aquisição de um veículo, como os consórcios.

Os novos artigos 54-B, 54-C e 54-D, CDC, reforçam esse detalhamento do custo do crédito que já fora previsto originalmente no artigo 52, CDC, e ainda fazem referência ao CET das operações conforme a regulação editada pela autoridade reguladora do sistema financeiro. O CET em geral é sintetizado em um percentual ao ano, que corresponde ao somatório de todos os encargos que incidem sobre a concessão de crédito. Esse percentual ao ano permite que o consumidor compare dentre diversas ofertas de crédito qual é a mais vantajosa. Um contrato com CET de 30% ao ano custa mais caro do que um empréstimo com CET de 25% ao ano. Para efeito de comparação o percentual ao ano é uma boa referência, porém para compreensão real do custo efetivo da concessão de crédito é necessário um detalhamento mais preciso das informações.

O modo de discriminar os componentes que formam o custo efetivo total do crédito foi regulado pelas Resoluções CMN 4.197/2013 e 4.881/2020, que exigem que cada componente do CET (juros remuneratórios, tarifas, IOF, seguros, etc.) sejam detalhados com os respectivos valores em percentuais ao ano e em reais (R$). Portanto, não basta informar os percentuais das taxas de juros nos contratos, é necessário que sejam discriminados os valores totais em reais de cada componente do custo do crédito (Resoluções CMN), além de informar a soma total a ser paga, com e sem financiamento (artigo 52, V, CDC). Somente com a informação clara e expressa sobre o valor total cobrado por cada modalidade de encargos bancários, bem como pela comparação entre o valor emprestado e o valor total a ser pago é que os consumidores podem compreender com clareza o custo do crédito.

Importante destacar que essas informações obrigatórias sobre o detalhamento do custo do crédito não são novidade. A soma total a pagar, com ou sem financiamento, é exigida desde a origem no artigo 52, V, CDC. Da mesma forma, o detalhamento dos componentes do CET das operações em percentual ao ano e em reais foi estabelecido em 2013 pelo CMN (Resolução 4.197), sendo que em 2020 essa obrigação de detalhar minuciosamente o custo do crédito passou a ser exigida também para os contratos de micro e pequenas empresas (Resolução 4.881). Basicamente o que a Lei 14.181/2021 fez foi reforçar esses deveres, que há décadas deveriam ser observados pelos fornecedores de crédito.

Para que a informação qualificada seja respeitada na concessão de crédito ao consumidor, a grande novidade da Lei 14.181/2021 foi introduzir a regra do artigo 54-D, parágrafo único, uma penalidade semelhante à prevista na legislação francesa para a concessão irresponsável de crédito:

"Art. 54-D. Na oferta de crédito, previamente à contratação, o fornecedor ou o intermediário deverá, entre outras condutas:

Parágrafo único. O descumprimento de qualquer dos deveres previstos no caput deste artigo e nos arts. 52 e 54-C deste Código poderá acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor."

A penalidade do artigo 54-D, parágrafo único, prevê a redução dos encargos de acordo com a gravidade da conduta do fornecedor na violação dos deveres de informação e de concessão responsável do crédito, considerando também as condições financeiras do consumidor. Essa previsão se articula com o novo direito básico de garantia de práticas de crédito responsável e permite reconhecer a informação qualificada sobre os custos do crédito como um dever inexorável de sua concessão responsável, sob pena de se aplicar a "revisão-sanção" [5] prevista no artigo 54-D, parágrafo único, CDC.

Entende-se que essa penalidade deve ser aplicada tanto no âmbito dos processos judiciais em que se discute o tratamento das situações de superendividamento dos consumidores, quanto nas demais demandas em que o consumidor busque a revisão ou redução de dívidas decorrentes do uso do crédito. Para que a lei 14.181/2021 possa cumprir sua finalidade de aperfeiçoar a disciplina do crédito para consumo é crucial que as novas medidas introduzidas no CDC sejam cumpridas com afinco, penalizando as condutas abusivas de concessão irresponsável de crédito e violação ao direito de informação com a medida que pode surtir impacto no comportamento dos players do mercado financeiro: a redução de sua remuneração e da lucratividade nas operações de crédito para consumo.

 


[1] Conforme dados da Serasa Experian, mais de 66 milhões de brasileiros estavam inadimplentes em junho de 2022. Fonte: Inadimplência bate recorde e atinge 66,1 milhões de brasileiros (gazetabrasil.com.br).

[3] Importante lembrar que a aplicação do CDC aos contratos bancários foi afirmada pela Súmula 297/STJ e também no julgamento da ADIn 2.591/DF, cujo voto condutor do acórdão, de lavra do ministro Eros Grau, reconhece a aplicação do CDC também aos contratos bancários firmados por pequenas e médias empresas.

[4] Ipsos – Estudos Marplan EGM – abril/2010 e março/2011.

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  • é advogada, doutora em Direito pela PUC-PR com doutorado sanduíche na Universidade de Bologna (Itália), mestre pela UFPR, professora na Escola Superior de Advocacia da OAB-PR e em diversos programas de pós-graduação, vice-presidente da Comissão de Direito Bancário da OAB-PR, membro do Brasilcon, do IBDCont e da International Association of Consumer Law.

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