Opinião

Por uma Defensoria (sempre) profanada

Autor

  • Magdiel Pacheco Santos

    é defensor público. Mestrando em Filosofia pela PUC-RS; especialista em Filosofia e Teoria do Direito (PUC-MG); especialista em Gestão Pública (UFMA); especialista em Direito Penal e Processual Penal (Faculdade Damásio) e instrutor interno ESDPEMA (2019/2022).

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15 de novembro de 2022, 7h07

Profanar é um verbo que, pela influência da formação judaico-cristã na mentalidade do brasileiro, gera uma automática inquietação. Ainda mais em um espaço tão teatral e performático, que é o universo jurídico, falar na profanação de uma instituição já gera o automático sentimento de desconfiança e resistência. Que bom. Este artigo não busca outro caminho senão o de gerar inquietação e incômodo, bem melhor que qualquer posição de neutralidade e marasmo. Mas, antes que seja incendiada a fogueira contra o autor deste texto, é preciso contextualizar sob qual profanação que a Defensoria Pública precisa, de forma contínua, se submeter.

Por esses dias, acabei me deparando com um enxerto de um a reflexão de Agamben. Na verdade, foi no texto Opacidade e profanação do professor Ricardo Timm que encontrei a inquietude etimológica que é o mote dessa coluna. Em síntese, Giorgio Agamben, no texto Elogio da profanação, esclarece que o sagrado (sacrare) [1] estabelecia tudo aquilo que saía da esfera dos homens e adentrava outro patamar, das deidades e existências transcedentes. Nessa lógica, a contrario sensu, o profanar significaria, enquanto práxis, o retorno à disponibilidade dos homens daquilo que fora distante e inacessível. Seguindo esses passos, para tentar ser mais didático, é possível indicar o detalhe de que a própria mitologia grega menciona vários personagens que foram punidos como profanadores — como, dentre outros, Prometeu (titã que ousou trazer o fogo do céu e trazer para a humanidade), Sísifo e uma jornada eterna (um rei que, pela esperteza, foi capaz de ludibriar vários deuses).

Sobre esse ponto de partida e de chegada dessa reflexão, Ricardo Timm esclarece, de forma didática: "Tem-se já aqui, na etimologia jurídico-histórica do termo, uma chave compreensiva que leva facilmente para além da compreensão coloquial do conceito; profanar não é essencialmente atributo de deuses ou super-homens, mas, apenas o contrário de sacralizar: obra dos homens. Se sacralizar significar retirar a disponibilidade, profanar significa restituir a ela" [2]. Assim, a profanação estaria nessa afrontosa postura de trazer à humanidade aquilo que não deveria ser popularizado, ou acessado senão por um grupo seleto.

Deixando um pouco o Monte Olimpo e chegando a terrae brasilis, após 34 anos do seu desenho constitucional, já se pode observar um avanço significativo no amadurecimento e fortalecimento da instituição. De 1988 para cá, cargos e lei estaduais foram criadas. Carreiras, a muito custo, gradativamente erigidas entre desconfianças e embates pelo respeito às prerrogativas. Também ocorreram relevantes avanços constitucionais, legais e orçamentários. Como desdobramento, houve um aumento expressivo das remunerações e do capital político.

Diante desse cenário positivo e de franca evolução, fica o incômodo de, a primeira vista, qualquer problematização soar como inquietação gratuita. Porém, longe de um questionamento desmedido, a autocriticidade da Defensoria Pública e dos (as) seus (suas) membros (as) é uma necessidade urgente e necessária, sob pena de se tornar mais uma instituição autorreferente e encastelada  ou seja, usando o plano de fundo dessa reflexão  sagrada.

A Defensoria Pública, obviamente por estar entre os órgãos do sistema de justiça, inspira e transpira a cultura e o ethos jurídico. Há uma contínua sedução pelo poder, com diversas manifestações de um fetichismo. Se não faz sentido em falar na crença inocente da neutralidade do Direito, também não há como negar a tentação contínua de se impregnar com essa dinâmica de poder. Na verdade, todos os membros e membras, em suas vidas acadêmicas, iniciando prematuramente ou não, foram apresentados ao estereótipo da expectativa do homo juridicus: posturas altivas, palavreado imodesto e a (falsa) autoconsciência de uma superioridade intelectual e moral. Esconder a existência desse cenário prevalecente é negar todo o aparato teatral e simbólico que busca corporificar o poder através desses detalhes. Nesse palco, pilhérias não faltam de que, no Direito, alguns pensam que são Deus; outros, já tem a certeza. E aqui, meus caros e caras, sem espaço algum para deuses ou santos, é que inicia o convite à profanação da Defensoria Pública.

O defensor público e a Defensora Pública, já não mais como jovens acadêmicos, mas como participantes de uma instituição, convivem, de maneira diuturna, com o aliciamento por uma cultura endógena. Invariavelmente, existe, no fortalecimento e amadurecimento de uma instituição, a tendência para uma postura ensimesmada e solipsista. E compreendo que isso não ocorra, necessariamente, de modo leviano. A necessidade não é de perpetuar o ritmo e as lutas inerentes ao momento de legitimação do espaço  comuns nos primeiros anos de criação e inclusive de grande confusão e desgaste com outras carreiras ; pelo contrário, mas de se insistir nessa autocrítica: qual Defensoria Pública está sendo construída? Qual perfil defensorial, como membro ou membra, estou assumindo?

Em percepção pessoal e comparativa com as demais instituições, noto que, em linhas gerais, conforme suas dimensões e importâncias constitucionais, o Poder Judiciário está correlacionado com a imparcialidade e aplicação do Direito ao caso concreto; o Ministério Público se revela como o baluarte da ordem jurídica e do interesse público; já a Defensoria Pública não se estrutura em torno desses valores jurídicos ou normativos. Mas, sim, exclusivamente  e, de maneira expressa  foi erigida e, de forma inafastável, conectada aos necessitados. A Defensoria foi criada e desenhada, enquanto instituição, para responder aos apelos dos vulneráveis. Portanto, a existência teleológica da instituição gravita em torno do reconhecimento, da compreensão e do diálogo com os destinatários do seu trabalho. Diante desse telos, o que restaria de uma Defensoria Pública que se afastasse dos seus destinatários e se encastelasse em suas próprias divagações e lógicas institucionais?

Aqui, para não cansar a leitura, acabo por utilizar as palavras de Amilton Bueno de Carvalho que há muitos anos, mesmo na posição de uma voz externa à Defensoria, sabe ressoar inquietações legitimamente defensoriais:

"…a Defensoria que sonho não quer ser poder, não quer estar ao lado do poder, não quer chegar próximo do poder, não pode ser poder, ela tem claro que todo o poder tende insuportavelmente ao abuso, que o poder ‘imbeciliza’ (Nietzsche), que o poder não suporta a alteridade, que o poder necessita, em consequência, de verdade absoluta (Bauman), que poder necessariamente é mentiroso (Heidegger). Ao contrário, a Defensoria deve ser contrapoder (Daniel Lozoya), limitadora do abuso do poder, parceira do débil!" [3].

A instigação profanadora que aqui se faz busca delimitar uma racionalidade lógica e necessária a todos e todas que pensam, contribuem ou almejam construir a Defensoria Pública: a práxis defensorial se esvai quando não encharcada com a realidade vulnerável. É preciso dar a cor, o rosto, o cheiro e a vivência de quem se dá a voz. Perder-se no próprio conforto institucional ou, melhor, não sentir desconforto no conforto institucional é sintomatizar um distanciamento ao fim constitucional da instituição.

Nesse momento, num atrevimento de quem busca ser mais didático, gostaria de adaptar um trecho do saber-fazer e o saber-ser pedagógico de Paulo Freire para inquietar os leitores [4] : "Há perguntas a serem feitas insistentemente por todos nós e que nos fazem ver a impossibilidade de defensorar por defensorar. De defensorar descomprometidamente como se misteriosamente, de repente, nada tivéssemos que ver com o mundo, um lá fora e distante mundo, alheado de nós e nós dele. Em favor de que atuo? Em favor de quem? Contra que atuo? Contra quem atuo?".

É preciso sempre celebrar e exercer com consciência a parcialidade inerente à Defensoria. Invariavelmente, e conscientes dos rechaços políticos e acadêmicos, os membros e membras devem, em suas atuações, potencializar esse incômodo que o Outro-vulnerável gera, através da instituição, ao se atrever alçar a voz dentro do sistema de justiça. Pois, entre as pompas e galhardia do Olimpo dos juristas, o atrevimento de dar voz aos vulneráveis representa um acinte e uma afronta à dinâmica da perpetuação dos privilégios. Dar voz aos excluídos, meus caros, é profanar o sistema de justiça.

Porém, o espaço desta coluna é trazer essa reflexão de que: paradoxalmente, sem a autocrítica, sem aquilombar seus debates, sem democratizar e fortalecer o acesso e a proximidade das comunidades, a Defensoria corre o risco de ensimesmar-se. E, assim, sacralizando seu espaço institucional, constrói-se um hiato de privilégios, afastando-se daqueles e daquelas que, todo dia, representa judicialmente e extrajudicialmente. Por isso, sem ainda entrar no mérito do mito [5] do "defensor vocacionado" e da quimera concurseira do "coração verde" — que deixo para outro texto profano —, é preciso que a carreira se afaste da demasiada certeza [6], tão característica do modus intelligendi dos juristas, e se exponha mal-estar e angústia da luta pela justiça [7] e "desencaixe qualquer aura de obviedade e aceitabilidade" [8].

Por fim, seja para o leitor e leitora que foram pacientes, ou quem apenas leu o título e desgostoso pulou para esse final, termino com a reflexão do professor Ricardo Timm, apresentando um pouco o desdobramento da racionalidade ética para as instituições  e que é o ponto de partida e de chegada de uma Defensoria profanada: "Uma instituição não pode ser concebida, em termos humanos, a não ser no sentido de originar-se da mesma semente da relação ética, saudável, pois esta relação saudável é o corretivo que a instituição necessitará constantemente, para não degenerar em totalidade violenta. (…) Uma instituição que não tenha, na sua constituição mais profunda, na sua medula do sentido, a própria dimensão relacional humana, é uma instituição vocacionada ao fracasso. Ela não subsistirá aos momentos concretos que se sucedem no tempo e acabam expondo suas verdadeiras entranhas, aquilo que está oculto em nome de grandezas ou jogos de poder ecológica e humanamente injustificáveis" [9].

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[1] Para contextualizar um pouco a categoria usada como plano de fundo desse texto: no ensaio Elogio da profanação, Giorgio Agamben traz uma reflexão que vai de encontro ao pensamento comum de que a religião (de religio) não seria derivado de religare (o que une o humano e o divino), mas de relegere (o escrúpulo e o cuidado em respeitar a separação entre o sagrado e o profano). Porém, o que aparentemente parece ser um ensaio etimológico e com cunho teológico, acaba por recair num paralelo entre capitalismo e religião, profano, sagrado e improfanável. De forma mais objetiva, o seguinte trecho é um norte interessante para compreender a provocação: "A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso". (Giorgio Agamben. Profanações. São Paulo: Boitempo editorial, 2007, p. 61).

[2] Ricardo Timm de Souza. Ética como fundamento II: pequeno tratado de ética radical. Caxias do Sul: Educs, 2016, p. 113.

[3] Amilton Bueno de Carvalho. Defensoria Pública: entre o velho e o novo. (…) Autonomia & Defensoria (…), Salvador: JusPodivm, 2017, p. 22.

[4] Baseado no seguinte trecho: "Há perguntas a serem feitas insistentemente por todos nós e que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar. De estudar descomprometidamente como se misteriosamente, de repente, nada tivéssemos que ver com o mundo, um lá fora e distante mundo, alheado de nós e nós dele. Em favor de que estudo? Em favor de quem? Contra que estudo? Contra quem estudo?". (Paulo Freire. Pedagogia da autonomia: saberes necessária à prática educativa. 52ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015, p. 75).

[5] Nesse ponto, o termo mito é utilizado no seguinte ensino de Luiz Warat: "(…) o mito dissolve a complexidade dos atos humanos. Confere-lhe a simplicidade das essências. Organiza um mundo sem contradições aparentando uma clareza onde translucidamente se podem constatar ou reconhecer os valores. Por isso o mito é um discurso de reconhecimento e não de explicação. Por seu intermédio pretende-se que o receptor visualize sempre uma situação de normalidade decorrente da natureza das coisas. Assim, ele pode ser caracterizado como um discurso de neutralização, cheio de significações despolarizadas. É neste sentido que basta falar naturalmente de alguma coisa para que ela se torne mítica". (Luis Alberto Warat. Introdução geral ao Direito […]. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995, p. 56)

[6] "Só, na verdade, quem pensa certo, mesmo que, às vezes, pense errado, é quem pode ensinar a pensar certo. E uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas". (Paulo Freire[…], 2015, p. 29).

[7] "A militância gera, sim, sofrimento, angústia, mal-estar, incompreensão. Mas, se não for parra isso, melhor voltar ao passado quando os 'defensores' sequer eram concursados. (…) há o desprazer do prazer, por isso penso que ser Defensor não é caminho para qualquer-um, talvez um profissional do amanhã, que nasceu póstumo". (Amilton Bueno […], p. 23).

[8] Ricardo Timm (…), p. 117.

[9] Ricardo Timm (…), p. 187.

Autores

  • é defensor público, especialista em Filosofia e Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), em Gestão Pública pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Damásio, instrutor interno da Escola Superior Defensoria Pública Estadual do Maranhão (ESDPEMA), fotógrafo amador e poeta.

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