Opinião

Hermenêutica jurídica clássica: porque o óbvio precisa ser dito

Autor

  • Hélio Roberto Silva de Sousa

    é advogado especialista em Direito Administrativo e servidor de carreira da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e membro da Comissão de Assuntos Regulatórios da Comissão de Direito Administrativo na OAB-DF.

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14 de novembro de 2022, 7h05

Em tempos estranhos, nos quais o julgador parece ser dono da lei, julgando sem considerá-la, ou fazendo de conta que ela não existe, faz-se necessário que se diga: a hermenêutica ainda existe, e, como ciência, não pode simplesmente ser legada a nada, principalmente por que sua principal função é trazer previsibilidade e segurança jurídica à atividade judicante. Discorreremos, portanto, sobre o método hermenêutico-clássico, afinal, o óbvio precisa ser dito em tempos em que a fluidez hermenêutica se tornou tão fluída que não mais se caminha sobre ela, simplesmente se afunda, como se ela (hermenêutica) sequer existisse.

Feito este breve prelúdio, passemos ao texto, tentando ressuscitar a velha, sofrida, humilhada, esquecida e vilipendiada hermenêutica.

Ao falarmos em método hermenêutico-clássico, estamos nos referindo aos cânones [1] sistematizados por Savigny, nomeadamente o gramatical, lógico, sistemático e histórico [2], bem como o teleológico [3].

No tocante ao cânone gramatical de interpretação, devemos atentar para sua finalidade e para o aspecto fundante de sua razão de existir. Nesse sentido, este cânone visa à solução de questões de natureza léxica, ou seja, busca entender a semântica dos termos contidos na norma, bem como a forma como são encadeados entre si, de modo a gerarem significância ao texto normativo.

Este cânone é assaz importante dado seu caráter limitador da atividade interpretativa do julgador. Podemos dizer, de forma ilustrativa, que o cinza pode assumir tonalidades de preto e de branco, mas nunca será amarelo. Desconsiderar o significado das palavras constantes de determinada lei não é ato de interpretar, mas sim ato de legislar travestido de atividade interpretativa. Como ensina Larenz "uma interpretação que se não situe já no âmbito do sentido literal possível, já não é interpretação, mas modificação de sentido" [4].

Importante atentarmos à expressão utilizada por Larenz: sentido literal possível. Isso denota a intenção do autor de apresentar a ideia de que mesmo a literalidade dos termos pode ter múltiplas significâncias, por isso a utilização do vocábulo possível.

A utilização dessa expressão denota, ao mesmo tempo, caráter expansivo e restritivo. Explico: o caráter expansivo se caracteriza pelo fato de que há mais de um sentido possível; já o caráter restritivo se apresenta no fato de que há sentidos que fogem do que determinado vocábulo poderia significar, não podendo ser aplicados.

A título meramente ilustrativo, ao se falar em arma branca, pode-se entender que se está a falar de uma faca, de um porrete ou de um nunchaku, mas nunca de um revólver. À medida que a literalidade do termo “arma branca” permite mais de um significado possível (faca, porrete ou nunchaku), ela também exclui aqueles não aderentes à sua significância (revólver).

Não poderíamos deixar de referenciar, ao tratarmos do cânone gramatical, da Jurisprudência dos Conceitos, idealizada por Georg Putcha [5] e aprofundada por Ihering. Em apertadas linhas, a Jurisprudência dos Conceitos busca conceder cientificidade ao processo interpretativo, de modo a se analisar o sistema de conceitos antes do sistema de normas (direito positivado).

Ao pensarmos em um físico, é necessário que este conheça os conceitos mais singulares para, então, entender os mais complexos. Por exemplo, ao explicar eventos da termodinâmica, o físico precisa entender conceitos como calor, corpo, massa e energia, para, a partir disso, explicar como ocorrem as interações entre os corpos com transmissão de energia, como a transferência de calor de um corpo mais quente para um menos quente, visando ao equilíbrio do sistema.

Assim, um conceito complexo como o da termodinâmica só é possível de ser compreendido quando se compreendem os conceitos mais simples que lhe compõem.

O mesmo se aplica à Jurisprudência dos Conceitos. Para seus idealizadores, o jurista só conseguirá compreender conceitos jurídicos complexos quando partir da compreensão dos mais simples que lhe compõem, e isso perpassa pelo cânone gramatical.

Debate digno de nota sobre a esta questão é o que envolve a possibilidade de criação de cláusulas pétreas pelo Poder Constituinte Derivado. Seria possível que, uma vez criado direito fundamental por meio de Emenda Constitucional (atividade do Poder Constituinte Derivado), tal direito recebesse o manto das cláusulas pétreas? Por outro lado, poderia o próprio Poder Constituinte Derivado retirar do ordenamento jurídico-constitucional direito por ele mesmo positivado? Essa discussão tem como pano de fundo, dentre outros aspectos, a própria Jurisprudência dos Conceitos.

Defende Paulo Gustavo Gonet Branco que não é possível que o Poder Constituinte Derivado crie cláusulas pétreas, já que não pode este limitar a si mesmo [6]. Desta forma, somente o Poder Constituinte Originário poderia criar cláusulas pétreas.

Como dito acima, essa discussão está envolta à ideia trazida pela Jurisprudência dos Conceitos. É que a Constituição da República não preconiza, expressamente, a proibição de que o Poder Constituinte Derivado crie cláusulas pétreas. Tal entendimento provém, portanto, da compreensão do que vem a ser os Poderes Constituintes Originário e Derivado.

Ao se compreender que o Poder Constituinte Originário é um poder de fato, ilimitado e superior ao Poder Constituinte Derivado, conclui-se que este não pode ser alçado ao mesmo status constitucional do Poder Constituinte Originário, por serem conceitos jurídicos distintos.

Desta forma, a Jurisprudência dos Conceitos, ao apontar a necessidade de compreensão de conceitos jurídicos mais simples (por exemplo, os conceitos relacionados aos Poderes Constituintes Originário e Derivado) permite melhor compreensão daqueles mais complexos (como as limitações ao Poder de Reforma para criar cláusulas pétreas).

Se por um lado o cânone de interpretação gramatical pode apontar para um caminho a ser seguido pelo intérprete, por outro pode gerar ambiguidades interpretativas que não consegue solucionar, ou seja, o cânone gramatical pode, portanto, apontar problemas na construção textual da lei que outros cânones deverão solucionar.

Já com relação ao cânone lógico, observa-se que seu cerne está na conexão lógica de uma expressão normativa com as demais do contexto [7]. Observam-se, portanto, situações em que se utiliza no mesmo texto normativo termos com consequências diversas, ferindo, desta feita, o princípio lógico da identidade. Valendo-me mais uma vez de exemplo apresentado por Tércio Sampaio:

"A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 155, §3º, determina que, à exceção dos impostos tratados no inciso II do caput do artigo e no artigo 153, I e II, nenhum outro tributo poderia incidir sobre operações de energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do país. Em outros artigos (por exemplo, 146, III, a, 150, I), o termo tributo é usado num sentido amplo, de gênero, que abarca várias espécies, inclusive as contribuições sociais. O Supremo Tribunal Federal, contudo, entendeu que as contribuições sociais não estavam subsumidas à expressão nenhum outro tributo do mencionado artigo 155, §3º" [8].

Neste prisma, o princípio lógico da identidade (A = A) permite ao juiz identificar problemas, mas não os solucionar [9]. Desta forma, as regras atinentes ao cânone lógico de interpretação criam máximas a serem aplicadas pelo juiz, como "o legislador nunca é redundante", ou "se duas expressões estão sendo utilizadas em sentido diverso, é por que uma deve disciplinar a generalidade e a outra traz uma exceção", ou ainda "deve-se ater aos diferentes contextos em que as expressões ocorrem e classificá-los conforme a sua especificidade" [10].

No tocante ao cânone sistemático, chamado de filosófico por Savigny [11], deve-se considerar a unidade inerente ao sistema jurídico. Assim, considerando a hierarquia presente no ordenamento jurídico, conforme preconizado pela pirâmide de Kelsen, deve haver congruência na interpretação de determinada norma ou dispositivo com o todo presente no ordenamento jurídico, máxime quanto às normas superiores.

Assim, não se deve interpretar a lei isoladamente (sem considerar as normas superiores a ela, como a Constituição e demais normativos que compõem o Bloco de Constitucionalidade), tampouco se interpretar um dispositivo de determinada norma dissociado dos outros dispositivos da mesma norma.

Busca-se, portanto, através do cânone de interpretação sistemático, considerar a unidade do sistema jurídico como um todo, de modo a se promover racionalidade e consistência às interpretações decorrentes de determinado texto normativo.

Tem-se, ainda, o cânone de interpretação histórico. Para este cânone, é importante conhecer a gênese motriz do processo legiferante de determinado texto normativo. Para tal, o intérprete deve buscar nos atos preparatórios  discussões parlamentares envoltas à edição de determinada lei; justificativas do projeto de lei; emendas parlamentares apresentadas e discutidas, etc  bem como o contexto histórico à época em que aquela lei foi gerada.

Com os olhos votados para trás, o intérprete poderá entender de maneira holística as razões de existir de determinada norma, de modo a melhor aplicá-la no tempo presente, sem que isso signifique petrificação ou engessamento do direito.

Com relação à interpretação histórica, entendo que se deve aferir se aqueles motivos fundantes ainda persistem no seio da Sociedade (aqueles que impulsionaram e fundamentaram a edição da lei); caso a resposta seja positiva, devem ser considerados; caso seja negativa, deve-se aplicar a lei em seu caráter dinâmico e equitativo, ou seja, permitindo a evolução do direito com segurança e previsibilidade.

Com relação ao cânone teleológico, valemo-nos do apresentado por Engish. Segundo o autor, o cânone teleológico é aquele que "procura o fim, a 'ratio', o 'pensamento fundamental' do preceito legal, e a partir dele determina o seu 'sentido'" [12].

Importante destacar que este fim (finalidade) pode assumir origem intrínseca ou extrínseca ao ordenamento jurídico. Assim, quando o direito penal tutela bens também inerentes ao direito civil, mas não garantidos por este, há uma finalidade de aplicação da normal penal intrínseca ao próprio sistema jurídico, onde um segmento do direito se vale a preencher as deficiências do outro. Outrossim, é pertinente o alerta apresentado por Engish: "também seria ingenuidade querer subpor a cada norma jurídica um determinado fim. Há fins mais próximos e mais remotos, menos e mais elevados" [13].

Avançando no estudo do cânone teleológico de interpretação, encontramos na teoria da Jurisprudência dos Interesses, idealizada por Philipp Heck, forte fundamentação para utilização desse cânone. Havia certa discussão sobre em que ponto a interpretação teleológica se confundiria com a histórica, já que em ambos os cânones busca-se encontrar a finalidade da norma, conquanto esta última se valha dos atos preparatórios legislativos.

Nesse cenário, a Jurisprudência dos Interesses defende que se deve garantir os interesses finalísticos de determinada norma, e isso vai além da mera reconstrução histórica dos interesses que fundaram a edição da norma, alcançando a promoção do equilíbrio entre os interesses que a norma visa a garantir, evidenciando contundente pensamento teleológico.

Dado elevado grau de abstração e plasticidade do cânone teleológico, não raras têm sido as críticas que lhe são dirigidas. Como colaciona Hesse, o cânone de interpretação teleológico consiste em verdadeiro "cheque em branco" entregue nas mãos do intérprete. Nas precisas palavras de Hesse:

"La 'interpretación teleológica' es prácticamente una carta blanca, pues com la regla de que hay que plantearse el sentido de un precepto no se avanza nada respecto de la pregunta fundamental, la de cómo descubrir dicho sentido" [14].

Cabe apontarmos a crítica formulada por Hesse, no sentido de que a os cânones de interpretação são insustentáveis quando aplicados à hermenêutica constitucional. Segundo autor, o texto constitucional raramente se apresenta com sentido unívoco, devendo sua real significância nascer do processo interpretativo. Nas palavras de Hesse:

"Também os 'métodos' de interpretação individuais, considerados em si, não dão diretrizes suficientes. O texto frequentemente ainda não diz nada de unívoco sobre o significado das palavras e deixa nascer a questão segundo o que  por exemplo, pelo uso linguístico geral ou por um jurídico especial, pela respectiva função do conceito  esse significado se determina" [15].

Por outro lado, Larenz arrazoa de maneira destoante de Hesse, já que para aquele a Constituição, como lei, traz normas de aplicabilidade imediata, motivo pelo qual não haveria motivos para que os princípios gerais interpretativos não pudessem ser aplicados à hermenêutica constitucional. Vejamos as precisas palavras de Larenz:

Não vejo fundamento bastante para não se aplicarem, pelo menos em princípio, os princípios interpretativos gerais também à interpretação da Constituição, pois que a Constituição é, enquanto lei  tal como todas as outras leis (redigidas na maior parte em linguagem corrente) , uma obra de linguagem, que, como tal, carece de interpretação, tal como as proposições nela contidas têm o caráter de normas; o seu efeito vinculativo não é certamente menor, mas mais vigoroso do que o das demais leis [16].

A assertiva apresentada por Larenz, à qual nos filiamos, ganha maior eco com a inteligência do parágrafo 1º, do artigo 5º, da Constituição da República de 1988, segundo o qual as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Nesse sentido, por terem aplicabilidade imediata, tais normas são dotadas de significância desde logo, inclusive pelo fato de muitas delas terem natureza jurídica de regras, o que ratifica a possibilidade, consoante apresentado por Larenz, de aplicabilidade, de maneira satisfatória, dos métodos tradicionais de interpretação de leis também à interpretação constitucional.

Assim, a partir deste breve artigo, faz-se um apelo à sã aplicação da hermenêutica jurídica livre de paixões ou impulsos de momento. Com isso, a Lei, o Direito, os Operadores do Direito e os Jurisdicionados agradecem.

 


[1] Utilizamos o termo "cânone" ao nos referirmos às interpretações gramatical, lógica, sistemática, histórica e teleológica.

[2] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 89.

[3] Não obstante Savigny tenha declinado do método teleológico, resolvemos inseri-lo neste ensaio, haja vista sua importância e larga utilização como método de interpretação constitucional.

[4] LARENZ, karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2005. p. 454.

[5] Ibid., p. 23.

[6] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op cit., p. 128.

[7] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 2003. p. 287.

[8] Ibid., p. 288.

[9] Ibid., p. 288.

[10] Ibid., p. 288.

[11] LARENZ. Op cit., p. 10.

[12] ENGISH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983. p. 133.

[13] Ibid., p. 141.

[14] HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983. p. 40. Tradução livre:  A "interpretação teleológica" é praticamente uma carta branca, pois com a regra de que o sentido de um preceito deve ser considerado, nada avança quanto à questão fundamental, a de como descobrir esse sentido.

[15] HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federativa da Alemanha. Porto Alegre: SAF Editor. 1998. p. 58.

[16] LARENZ. Op cit., p. 513-514.

Autores

  • é advogado, especialista em Direito Administrativo e Servidor de carreira da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e membro da Comissão de Assuntos Regulatórios, da Comissão de Direito Administrativo e todas na OAB/DF.

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