Opinião

Energia que dá gosto: regulação do hidrogênio verde no Brasil

Autor

  • Juliano Heinen

    é procurador do estado do Rio Grande do Sul e doutor em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

13 de novembro de 2022, 17h08

"Energia é o que move o mundo." É uma frase exagerada e até cientificamente incorreta. Mas ela diz muita coisa. Várias são as formas e aplicações das energias para a sustentabilidade da sociedade moderna. Tanto a guerra na Ucrânia quanto à agenda por mudanças climáticas pressionaram a humanidade a repensar sua matriz energética, notadamente em relação à dependência de combustíveis fósseis como o carvão e o petróleo. Neste contexto, surge uma alternativa: a produção de "Hidrogênio Verde" (que abreviaremos pela sigla "H2").

Tal gás é retirado a partir da eletrólise da água, sabidamente composta por duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio (por isto: "H2O"). Então, por meio de um processo físico, a eletricidade quebraria este composto, separando o hidrogênio do oxigênio. Caberia ao produtor captar o primeiro para produzir energia, e o segundo poderia ser lançado na atmosfera ou até mesmo "engarrafado" para usos múltiplos, como o hospitalar.

Claro que o Hidrogênio poderia ser extraído de outras fontes, inclusive do carvão ou do petróleo, mas, neste caso, não seria "verde", seria "marrom", "cinza" etc., porque nestes últimos casos seria produzido a partir de um método poluente. A cor verde é atribuída ao fato de o H2 ser oriundo de energia limpa.

Como esse processo de eletrólise consome muita energia, duas complexidades surgiram: 1) não seria ecologicamente eficiente queimar combustível fóssil para fazer este processo de quebra de molécula, porque não se estaria a compatibilizar o processo com um padrão de transição energética. Ao contrário, estar-se-ia, assim, a continuar investindo em combustíveis que não contribuem com a agenda das mudanças climáticas. 2) E, neste caso, empregando-se as energias eólica ou solar no processo, poder-se-ia estar atuando deficitariamente, dado que se gastaria uma energia vultosa para a eletrólise, quando que se poderia empregar a energia "limpa" diretamente no Sistema Integrado Nacional.

Ainda na presente parte introdutória podem ser formuladas algumas respostas. Primeiro, o H2 é a única energia que pode ser estocada [1] com qualidade e eficiência, e é passível de ser transportada a longas distâncias sem perdas relevantes [2]. Também, sua aplicabilidade é bastante flexível, porque o H2 pode ser queimado a gerar energia elétrica, componentes químicos como amônia etc.

Quanto à ineficiência em se empregar energia limpa na eletrólise, cabe dizer que o custo de transação para outras aplicações pode compensar, notadamente quando o H2 deve ser transportado. Ademais, em certos momentos de pouca demanda de energia elétrica, como no horário da madrugada, as fontes de geração de energia estão ociosas, e poderiam operar para fazer a quebra da molécula. Vamos a um exemplo: enquanto a maioria das pessoas dorme, as turbinas da Usina de Itaipú (Paraná) podem estar com o potencial de geração ociosa, porque a capacidade de produção é maior do que o consumo [3]. Neste momento, a sobra da capacidade de geração poderia ser alocada a se fazer a eletrólise da água, gerando o Hidrogênio verde.

Essa exposição inicial dá conta de que existem desafios técnicos à produção desta espécie de energia. Toda a energia só é viável se existe um mercado para ela. De nada adianta produzir H2 se não há quem queira produzi-lo e quem possa consumi-lo. Logo, o primeiro passo a ser dado pelo Brasil consiste em criar ou fomentar este mercado. É dizer: precisamos compreender o "ciclo de produção" deste insumo, mapeando a cadeia de geração, de transmissão, de distribuição, de comercialização e de consumo. Exemplifico: de nada adianta estarmos diante de um plano de negócio sem convergência de toda cadeia produtiva. Indústrias, automóveis, trens, barcos etc. deverão estar adaptados para poder consumir o Hidrogênio verde. Esse plano de negócios reclama compreender a matriz econômica em que o H2 será aplicado. Por exemplo: é uma energia que vem a substituir outras já aplicáveis.

Afinal, 1) qual é o custo para substituir as plantas industriais já instaladas por aquelas que venham a suportar a aplicação do Hidrogênio? Imagine o custo de adaptação de motores e de postos de combustíveis; 2) qual o ponto de viabilidade econômica desta nova matriz energética e qual seria o preço de produção no Brasil? Será que ele é competitivo em relação às outras energias alternativas e aplicadas também ao setor mapeado? Exemplifico: o custo transacional de uma recarga de um automóvel por meio da rede elétrica é muito maior do que se recarregado por H2. No primeiro caso, as distâncias a serem percorridas não são tão longas e o tempo de recarga é grande, fazendo com que o Hidrogênio leve vantagens em relação aos automóveis movidos por exclusiva energia elétrica. 3) Existem setores em que o H2 não poderá ser aplicado ou deverá ser empregado de modo combinado, como, por exemplo, na substituição de insumos a base de Carbono, como a ureia, cujo composto químico é "CO(NH2)2".

E aqui entro na parte que mais me interessa: precisaremos pensar a regulação deste setor, que deverá atuar em múltiplos planos, porque toda a energia possui relações diretas com o meio ambiente, com a economia, com a segurança das pessoas etc. Logo, por si só, deverá ser compreendido como os licenciamentos ambientais e as autorizações de produção, transporte, comercialização e distribuição deverão ser feitas. A regulação e o poder de polícia fiscalizatório serão centrais na implementação de um desenvolvimento harmônico, eficiente e sustentável do Hidrogênio verde. Em termos econômicos, a regulação deverá certificar se o Hidrogênio pode ser considerado realmente "verde". Por exemplo, o H2 derivado de eletrólise feita por energia hidráulica poderia ser considerado "verde", ou seja, oriundo de uma energia limpa?

Em relação às funções de fomento ou de planejamento econômico, cabe dizer que todas estas questões pressupõem uma governança para mapear a possível curva de demanda, indicada pelo volume de oferta de outras energias em relação ao consumo projetado. Sem contar que este mapeamento deve perceber a potencialidade de exportação do H2 ao mercado exterior.

O direito empresarial ou cível deverá regular como se darão as interações mercadológicas dos principais stakeholders da cadeia de H2, o que pode ser auxiliado pelas políticas públicas estatais. E, para tanto, há de se caracterizar os aspectos distintivos da cadeia e os desafios socioeconômicos e tecnológicos. Exemplifico: o direito da responsabilidade civil está preparado para lidar com os danos causados por uma explosão durante o transporte do H2? Ele é uma mercadoria, um serviço ou um ativo?

A regulação por incentivos deverá induzir o mercado para que se consiga a substituição de energéticos, preparando para a transição exigida pela agenda das mudanças climáticas. E penso que não poderia ser estruturada somente a partir de diretrizes, porque assim apenas viria a definir os principais insights para as empresas e setores mais característicos da cadeia. Compreendo que isto é pouco. O resultado desta ordenação deve ter a pretensão de criar rotas de baixo carbono.

Ademais, a regulação deverá ser assimétrica para setores-chave, como a agricultura, indústria de transformação, utilidades, transporte e logística, adaptando-se à avaliação do impacto econômico (verbi gratia geração de empregos, tecnologia, impacto ecológico etc.). Exemplifico: o regulador deverá combinar critérios complementares, em uma intervenção pró-competição de quem agride menos o meio ambiente, quem produz mais tecnologia no tema etc. Para isto, as informações deste mercado serão valiosíssimas. Como fazer avaliação do impacto ambiental da emissão de gases de efeito estufa e outros benefícios qualitativos resultantes do desenvolvimento do setor sem um detalhado panorama de resultados a serem alcançados? Quem queima hidrogênio substituindo a combustão de fósseis poderia receber toda sorte de incentivos, inclusive para insumos, máquinas e outros componentes (verbi gratia fornos, turbinas e outros equipamentos de aquecimento na indústria)? E quem combina energias, teria qual tratamento?

A definição da cadeia de incentivos regulatórios poderia partir dos seguintes parâmetros: aplicações com volume alto e no curto-prazo seriam privilegiadas em um primeiro momento. E isto deveria ser projetado a partir do tamanho de mercado da aplicação, com uma análise econômica de alternativas convencionais e de baixo carbono — exemplo: a curva de Total Cost of Ownership projeta cenários competitivos e os impactos econômicos da introdução do H2 na cadeia.

A formação de um ecossistema de H2 no Brasil precisa ser uma meta perene e prioritária na agenda econômica e política, ou seja, uma estratégia consolidada na concretização de um Estado sustentável. Cumprir com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável passa por essa nova matriz energética e, claro, pelo papel do Estado-regulador.

 


[1] Energia elétrica até pode ser estocada em baterias. Contudo, isto não é eficiente, porque a capacidade da bateria é diminuta, e para grandes extensões de energia, ter-se-ia de construir enormes componentes, o que é impraticável. E, em assim sendo, seu transporte seria economicamente inviável. Por fim, o uso da bateria seria ecologicamente insustentável, dados os metais pesados que seriam extraídos para fabricá-la causariam danos ambientais, e seu descarte reclamaria toda sorte de cuidados.

[2] Há outras energias que aceitam um transporte eficiente, como o gás natural. Contudo, é um combustível fóssil sua extração e queima pode ser ambientalmente inapropriada.

[3] Lembrando que a energia elétrica não é estocada, porque o que é gerado é consumido — ou vice-versa. Ao final da contabilização, deve se obter "soma zero", ou seja, tudo o que se consumiu é o que se gerou. Não existe "sobra".

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