Opinião

Entre quixotismos e guerreiros: a esperança na tributação de combustíveis

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13 de novembro de 2022, 6h33

Quixote da Silva acordou de mãos dadas à Esperança. Sentimento efêmero e maldito, único preservado naquela famosa caixa grega, após a curiosidade de Pandora ter liberado sem filtro todas as demais desgraças pela Humanidade. Aliás, milênios depois, hoje não há dúvidas de que dentre elas estavam a complexidade excessiva do sistema tributário brasileiro, assim como todos os interesses que orbitam a sua manutenção.

Franc-Comtois/Pixabay
Franc-Comtois/Pixabay

Complexidade excessiva contra a qual Quixote se acostumara a lutar acompanhado de poucos Sanchos, energizados quase que apenas por aquela irracional crença no alcance de resultados positivos. E interesses travestidos de mais de duas dezenas de moinhos de ventos, vendedores da ilusão federativa. Mas que, na realidade, combatem a todo custo qualquer tipo de mudança que traga sopro de racionalidade e transparência à ferramenta financeira mais relevante à efetiva criação do Estado democrático de Direito que a (inocente?) Carta de 1988 diz querer construir.

Aquela manhã de novembro de 2022 prometia ser um desses cada vez mais raros momentos de trasbordo da tal Esperança. Nosso iludido amigo — também chamado por alguns (com carinho) como Dom — levantara se sentindo especialmente recarregado, meio que entorpecido por aquela mazela grega. Justificável: chegara, enfim, o dia de acompanhar os debates da comissão formada pelo principal órgão do Poder Judiciário nacional para discutir as importantes mudanças pelas quais o sistema tributário dos combustíveis sofrera. Alterações que, se de fato implementadas, continham todos os requisitos técnicos para trazer mais simplicidade, racionalidade e transparência a um dos segmentos que mais padeciam com restituições não restituídas, excesso de obrigações acessórias a cumprir e concorrência desleal gerada por devedores contumazes (muitos deles representantes do crime organizado). E, principalmente: pela sua relevância, mudanças que tinham tudo para representar o pontapé inicial da modernização de todo o modelo tributário brasileiro aplicado ao consumo. Esperança "na veia".

Assim, agitado, enquanto se arrumava para acompanhar a sessão, o sonhador advogado — amante de Direito Tributário — se lembrava das tais modificações legislativas implementadas no início daquele ano. As principais delas se deram com a aprovação em março da Lei Complementar nº 192, por meio da qual o legislador nacional regulamentara normas gerais previstas na Constituição há mais de 20 anos (Emenda nº 33/01). Embora gerada em ambiente político conturbado — isso era verdade —, igualmente verdadeiro era que essa lei alimentava a (mal)dita Esperança de efetivar comandos tributários simplificadores e racionalizadores do sistema, em especial relacionados ao Imposto incidente sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).

Vivo na memória de Quixote, o primeiro e mais fundamental desses comandos havia sido o estabelecimento do chamado "regime monofásico" (artigo 155, § 2º, XII, "h" da Constituição). Por meio desse, o imposto estadual passaria a ser devido e pago apenas pelo produtor ou pelo importador (únicos contribuintes). Diferença crucial em relação ao complexo modelo até então vigente (a substituição tributária para frente — artigo 150, § 7º, da CF), segundo o qual era responsabilidade do primeiro contribuinte da cadeia recolher o seu próprio tributo e, por presunção, o de todos os demais. Além disso, cabia ainda ao último ser restituído ou complementar possíveis diferenças existentes entre o que fora suposto e o que ocorrera na realidade (Recurso Extraordinário nº 593.849/MG, de outubro/2016).

Quixote sempre defendera que, com a monofasia, essa "substituta irracionalidade" acabaria. Na incidência única, a fiscalização se concentraria em apenas um elo da cadeia econômico-produtiva, otimizando recursos públicos, bem como tornando mais previsível a arrecadação. Da mesma maneira, não haveria mais que se falar em complementos e restituições de imposto, o que possibilitava aos estados receberem efetivamente apenas o que lhes era de direito e aos contribuintes reinvestirem de imediato seus recursos na economia. Portanto, com a incidência monofásica, chegariam ao fim os obscuros ajustes de carga tributária, que tantos custos traziam às empresas e à sociedade em geral. Sim, porque, sem quixotismos, essas cobranças poderiam ser refletidas direta ou indiretamente nos preços, ficando a conta para a ser paga todos nós.

"Como me contento com pouco, mas desejo muito, só quero que acabem os puxadinhos tributários. Com a monofasia, todos saberão a carga que se paga por cada litro de combustível", sonhava o esperançoso tributarista lutador.

Aliás, também como sempre dissera Dom, as duas alterações seguintes trazidas pela LC nº 192 eram simples decorrências lógico-jurídicas daquela primeira. Ou seja, se cabia ao legislador nacional definir quais combustíveis se submeteriam a uma única (redundância proposital) incidência do ICMS, evidentemente também era seu papel estabelecer que aos mesmos seria aplicada alíquota (i) igualmente única, por produto, em todo o território nacional (artigo 155, § 4º, IV, 'a' da Carta), assim como (ii) específica, calculada sobre uma unidade de medida (artigo 155, § 4º, IV, 'b'). Até porque, qualquer variação que não observasse com rigor esse "tripé" — monofasia + uniformidade + especificidade — abriria a possibilidade de ajustes tributário-financeiros ao longo da cadeia. E, por evidência lógica, se assim se desse, não haveria uma única incidência em um único contribuinte/ responsável.

"Elementar, meu caro Dom", diria o incisivo e racional amigo de outra passagem, repetindo as palavras "único" e "única" de forma intencional — como feito acima — até que fossem absorvidas, ainda que por osmose.

Não que para Quixote essa repetição fosse necessária. Pelo contrário. Para ele, era óbvio jurídica e logicamente que, uma vez estabelecido o "como" — norma geral em matéria de legislação tributária (artigo 146, III, da Carta) — pelo legislador complementar, aos estados caberia o fundamental papel de definir o "quanto" ingressaria em seus cofres (artigo 155, § 4º), mediante deliberação conjunta (artigo 155, § 2º, XII, "g"). Tudo em observância à competência que lhes foi atribuída pela Constituição da República (artigo 155, II). "Elementar, meu caro Alves."

Portanto, sereno em suas reflexões, mas firme em suas atitudes, Dom se dirigiu confiante (e esperançoso…) ao local onde ditos especialistas e representantes das partes interessadas debateriam os rumos da tributação do ICMS nos combustíveis. E isso, não apenas no que se referia à LC nº 192, mas também à LC nº 194/22, que estabelecera que esses bens – dentre outros, além de certos serviços – não podem ser tratados como supérfluos. Dessa forma, a norma proibira a fixação de alíquotas sobre as operações com tais bens e serviços em patamar superior ao das operações em geral, justamente em observância às suas essencialidades.

"Arranjo difícil, admito, já que os Estados podem perder arrecadação de imediato", sempre dizia Dom, ciente dos interesses "mais" ou "menos" legítimos que poderiam contrapor-se política e juridicamente a esse pacote de mudanças. "Porém, em especial no que se refere à LC nº 192, são alterações modernizadoras e moralizantes, fundamentadas em conceitos normativos sólidos. Precisamos conciliar e avançar."

No entanto, foi quando se lembrava dessa ponderação que o acompanhava por meses, que se percebeu já dentro do salão de debates, no qual "experts" e "interessados" — menos os contribuintes (?!) — discutiam. Começou ouvindo a conclusão do grupo de especialistas de que a LC nº 192 seria inconstitucional, ainda que parcialmente, por ter retirado dos Estados o poder de definir e deliberar sobre o regime de alíquotas do ICMS a ser adotado. Além disso, essa lei "apenas" poderia ter definido quais os combustíveis se submeteriam ao regime de incidência única. "E nada mais."

"Ora, sei que a humildade é a base e o fundamento de todas as virtudes e sem ela não há nenhuma que o seja. Mas é exatamente por isso que me pergunto como compatibilizar esse 'apenas' com a lógica e a realidade", questionava-se Dom, sentindo sua mão coçar por ainda estar entrelaçada à cretina Esperança da manhã.

A dúvida quixotesca era compreensível. Isso porque, em outras palavras, a conclusão dos especialistas era que, "em teoria", o regime até poderia ser de incidência única — conforme estabelecido pelo legislador complementar —, mas se as alíquotas aplicáveis a essa incidência seriam uniformes, específicas ou percentuais, isso caberia aos Estados decidirem. Portanto, "na prática", a depender dessa definição, poderia haver "ajustes" a serem feitos, mesmo no regime monofásico (lembre-se da Etimologia da palavra mono: deriva do grego "mónos", justamente o sentido constitucional de "único").

"Trata-se de contradição em si", pensou Quixote, enxergando as palavras dos experts como ameaçadores moinhos de vento. "Como se ajusta depois o que se diz ser único? Se é eliminada a causa, o efeito se cessa…."

Por isso, para Dom, não fazia sentido lógico e jurídico defender uma "monofasia ajustável", que teria como efeito deixar de ser "única". Se assim fosse, o novo regime já nasceria com as mesmas complexidades da substituição tributária: complementos e restituições, diferença de cargas, diversos contribuintes, sonegação fiscal… Frustração nítida ao propósito simplificador e moralizante dado pelo constituinte ao instituir a EC nº 33/01.

Aliás, essa desilusão de Quixote com a ilógica defesa de uma "incidência única ajustável" era ainda mais profunda quando pensava que, ao observarem o "como" do regime tributário definido pelo legislador complementar e pelo constituinte, em nada os Estados teriam seu papel reduzido. Gestores de serviços públicos básicos que são, eles não só poderiam como deveriam definir o "quanto" fariam jus ao fixarem suas alíquotas uniformes (por produto) e específicas. E isso, a depender de possível interpretação, inclusive deliberando se a essencialidade (LC nº 194) dos combustíveis indicados na LC nº 192 seria de fato a eles aplicável.

Isso porque, conforme definido pela própria LC nº 194 — artigos 1º e 2º, por meio dos quais foram inseridos, respectivamente, o inciso I do parágrafo único do artigo 18-A do CTN, e o inciso I do § 1º do artigo 32-A da LC nº 87/96 –, o que o legislador complementar vedou foi "a fixação de alíquotas sobre as operações (…) em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços". Ora, só existe "patamar" sobre o que é escalonável (a palavra "superior" não deixa dúvidas). Se o regime de tributação de incidência única (com alíquotas uniformes e específicas) é aplicável somente aos combustíveis constantes na LC nº 192, pode-se entender que essa norma é especial em relação à geral presente na LC nº 194 (que prevê outros bens e serviços, não somente os combustíveis). E, se assim for, não haveria que se falar em essencialidade se adotadas a uniformidade e a especificidade.

"Quem acha que perde seus bens, perde muito. Mas quem tem a certeza de perder a coragem perde ainda mais", murmurava Dom, enquanto deixava o salão de monólogos e tentava se desvencilhar da maldita Desgraça grega. "Se os estados acharem que perdem arrecadação com a essencialidade dos combustíveis, que defendam a aplicação do regime de incidência única, uniforme e específica da LC nº 192/22 e definam as alíquotas ad rem que julgarem necessárias para equilibrar seus orçamentos. Sempre com a coragem de assumir todos os bônus e ônus de suas escolhas."

Àquela altura, porém, era Dom que tinha a coragem de recuar do campo de batalha, derrotado pelos moinhos de vento da retórica, da manutenção de interesses e da complexidade excessiva. A manhã plena de energia e vigor se transformara em um fim de tarde pesado e silencioso, em que nem mais a Esperança parecia ter vontade de segurar-lhe a mão.

*****

Avermelhadas luzes do Sol iluminavam a bela praça pela qual Quixote caminhava sozinho, no coração do Brasil. Ao seu redor, os Três Poderes exibiam perante a Bandeira nacional suas usuais harmonias aparentes, ainda que dias como aquele deixassem dúvidas se sonho e realidade, mesmo que ocasionalmente, em algum momento se encontram.

Cabisbaixo e distraído, Dom sentiu o frio repentino, típico das sombras. Ao parar, reparou que à sua frente havia dois Guerreiros que se fundiam, abraçados, meio que a proteger únicos e uniformes aquela específica praça. Empatia imediata, Quixote teve a certeza de conhecê-los de longa data, cada um a enfrentar seus moinhos de vento e a defender suas ilusões simples, racionais e transparentes.

"Pela liberdade, assim como pela honra, pode-se e deve-se arriscar a vida", refletiu, lembrando-se do que escrevera um grande espanhol da época em que o Brasil nascia. "E como não há liberdade sem cidadania, a minha está comprometida até o fim com a construção de sistema tributário em que todos saibam "o que", "como" e "por que" contribuem para formação do bem comum, exigindo seus direitos e orgulhando-se dos seus deveres."

Foi no embalo desse pensamento que ela se reaproximou, quase sorrateira. Chegou mansa, sorriso leve, olhar penetrante e mão ligeiramente estendida. Dirigiu-se a Dom:

"Como poucos me percebem, ouvi agora que os debates da comissão serão prorrogados até dezembro. Não acabou. Sigo viva e de mãos dadas a você", disse-lhe a bela moça de vestido verde. "Vamos, amanhã será outro dia."

Quixote e Esperança novamente deram as mãos, como se únicos e uniformes fossem, justamente ali, diante dos Guerreiros Candangos. Se de fato ele não passava de um iludido e ela de uma maldita, não seria novamente naquele dia que se saberia. A única certeza era que, apesar de especialistas, interesses, retóricas e conservadorismos, Dom voltaria a sonhar. E que acordaria reenergizado pela maldita Desgraça grega para lutar contra os moinhos da complexidade, da irracionalidade e do obscurantismo tributários do Brasil.


[1] https://www.conjur.com.br/2022-mai-01/fabio-silva-alves-estudo-tributario-verde-amarelo.

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