Opinião

Comunidades do Horto do Rio de Janeiro: dois pesos e duas medidas

Autor

13 de novembro de 2022, 15h09

O Horto, no município do Rio de Janeiro, é um caso emblemático dos conflitos fundiários urbanos, bem como da maneira elitista como a legislação ambiental tem sido usada. Mais de 500 famílias moram em diversas comunidades dentro do recentemente redemarcado perímetro do Jardim Botânico, que é bem tombado. São pequenos assentamentos formados há muitas décadas, em alguns casos desde o século 19, e em cujas comunidades vivem, dentre milhares de outras, pessoas de 80 ou mais de 90 anos nascidas nelas. A despeito do grau de consolidação dos assentamentos, há décadas uma ameaça de remoção tem pairado sobre a cabeça dos moradores com a decisão do governo federal em 2013 de remover todas as comunidades, e mais pesadamente sobre 100 famílias que são parte da ação promovida desde o começo da década de 1980 pela Advocacia Geral da União (AGU). Isso no contexto da forte campanha promovida pelo Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro-IJB, Rede Globo e parte dos moradores do bairro Jardim Botânico para que as comunidades sejam removidas e suas casas destruídas. Os moradores estão sendo forçados a se mobilizar para impedir que as remoções sejam executadas, mas algumas famílias já perderam suas casas. Os ataques permanentes e a demonização pela mídia, juntamente com as medidas judiciais ameaçadoras, transformaram a vida dessas comunidades em um pesadelo. Esse quadro tem sido agravado pelo fato de que diversas administrações dos governos federal e estadual têm se recusado a dialogar com os moradores e a considerar opções de negociação e conciliação, enviando mensagens contraditórias com certas agências desautorizando o mandato de outras. Não é figura de retórica dizer que os moradores do Horto têm vivido um processo de terrorismo estatal e midiático.

Divulgação
Divulgação

Esse conflito entre o governo federal e as comunidades do Horto merece ser tratado de maneira articulada e crítica. Não há respostas fáceis e absolutas, e qualquer solução sustentável requer uma decisão que vá além da falsa dicotomia entre o "ambiental" e "o social" que o jornal O Globo e a TV Globo têm explorado. Há muita desinformação, manipulação da pouca informação existente, e especialmente pouco cuidado com o que a ordem jurídica efetivamente diz. Mais do que uma questão jurídica ou política, essa discussão se tornou ideológica e recuperar a história da comunidade e a evolução da ordem jurídica é fundamental. Não existe uma situação única, homogênea, que se possa chamar de "ocupação do Jardim Botânico". Trata-se de um processo histórico — o núcleo original foi constituído há séculos e até hoje vivem lá herdeiros diretos de escravizados —, sendo que certamente há casos de ocupação mais recentes de outras áreas. Todas essas etapas distintas não podem ser tratadas juridicamente da mesma maneira. O tempo gera direitos e direitos diferentes se constituíram no tempo para os moradores dos diversos assentamentos. É importante destacar que essa situação somente virou um problema maior quando os moradores demandaram da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) o reconhecimento do direito conferido pela Constituição Federal de 1988/Medida Provisória nº 2.220/2001 — a Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia (Cuem), que é um direito real restrito que não transfere a propriedade plena do bem público. Em que pese a ação proposta pela AGU no começo dos anos 1980 contra um grupo de moradores, por muitas décadas a maioria das pessoas vivia em um estado de limbo jurídico cheio de ambiguidades, com apoios em pactos político-sociais-institucionais diversos, mas sem gerar essa agressiva resistência da mídia e das classes médias e elites cariocas. Foram décadas de convivência relativamente pacífica entre o "social" e o "ambiental" naquele território do Jardim Botânico. Desde a propositura da ação de reintegração de posse pelo governo federal por determinação do Tribunal de Contas da União (TCU), a ordem jurídica quanto aos assentamentos informais evoluiu e segue crescendo, da Constituição Federal de 1988 à Emenda Constitucional nº 26/2000 ao Estatuto da Cidade — Lei Federal nº 10.257/2001, à Lei Federal nº 13.465/2017, etc.

A verdade é que enquanto as pessoas estão dispostas a viver em condições de ambiguidade sem serem reconhecidas como sujeitos de direito – mas dependendo de favores políticos e benesses sociais – todas são toleradas, aceitas, mesmo justificadas. Até na linguagem esse processo se revela: de "invasores" passamos a falar de "ocupantes" e hoje em "comunidades". `Na hora em que se dá nome às coisas e direitos sociais são demandados, os pactos precários se quebram e a resistência de outros grupos se manifesta de maneira assustadora. Nesse contexto, não é de hoje que, como tem acontecido no Horto, o argumento ambiental tem sido usado para opor o reconhecimento de direitos fundiários e de moradia. Argumentos de outras ordens são usados quando são convenientes, como o argumento do tombamento do Jardim Botânico. Agora mesmo no Rio de Janeiro diversos bens tombados estão sendo destombados, ou então com frequência simplesmente o tombamento tem sido ignorado — mas, da perspectiva desses grupos vocais no caso do Jardim Botânico nessas situações parece que o tombamento não significa grande coisa. Há uma série de obras sendo feitas pela administração do IJB dentro do parque — museu, centro administrativo, Espaço Tom Jobim, espaço de exposições, tudo isso acarretando mais pressão por estacionamento dentro do parque — e poucos falam disso. Até a abertura de um hotel já foi cogitada. O próprio presidente do IJB em algum momento dizia que necessitava remover as famílias para no local erguer equipamentos — onde fica o tombamento nessas horas?

Mesmo a entrada em cena do TCU em um conflito fundiário urbano… que coisa inédita! Somente forças poderosas poderiam ter conseguido esse feito, sendo que a mídia distorce a natureza da ação do TCU e as implicações de suas decisões. É inegável que existe uma enorme dificuldade — que é essencialmente um problema de classe social — contra o reconhecimento dos direitos fundiários e de moradia dos pobres, especialmente nas áreas centrais das cidades. O Ministério Público Estadual (MPE) tem sido um desses atores conservadores, mantendo um discurso ambientalista sem qualquer sensibilidade social com as questões da moradia dos pobres. Nesse vácuo, as Defensorias Públicas (DPs) tiveram que se envolver nos conflitos coletivos de moradia, e ao fazê-lo provocaram a ira dos grupos conservadores. O grupo de moradia da DP foi literalmente desmantelado pelo então governador Sérgio Cabral por estar "criando dificuldades" para as políticas de remoções nos projetos da Copa/Jogos Olímpicos. Essa questão classista tem se refletido também nas decisões judiciais. São vários os casos em que os juízes que ordenam a demolição de construções de favelas não determinam a demolição de mansões dos ricos que invadiram terras públicas, com o argumento de que "não se pode ignorar o investimento financeiro feito nessas construções". Investimento por investimento, em termos relativos o investimento nas construções precárias é de muitas maneiras superior… Mesmo no caso do Jardim Botânico, há alguns anos no espaço de uma semana duas sentenças judiciais "resolveram" os conflitos determinando a remoção das construções em um assentamento informal por razões ambientais, e determinando que os moradores de dois condomínios de luxo na Gávea localizados na proximidade em total violação do Código Florestal fossem apenas multados e tomassem medidas de mitigação do dano ambiental…Tem sido curioso ver como esses dois condomínios repetidamente escapam das tentativas de demarcação dos novos perímetros do parque.

Nada disso quer dizer que um erro justifica outro, que devemos ignorar o tombamento, as medidas ambientais e/ou os direitos sociais fundiários e de moradia dependendo do interesse. Temos que fazer o esforço de ver para além da ideologia o que a ordem jurídica diz. Qualquer leitura tem que começar na Constituição Federal de 1988, fazendo uma interpretação hermenêutica e integrada dos princípios espalhados no texto dessa lei, bem como uma leitura articulada da legislação federal à luz desses princípios. Lei por lei, se há uma série de leis ambientais, há também outras que tratam de patrimônio da União e muitas leis que tratam da regularização fundiária de assentamentos informais. Todas são leis federais. Nenhuma delas existe de maneira isolada e não pode ser aplicada sem que as demais sejam consideradas. O princípio constitucional é o mesmo nas quatro áreas — meio ambiente/patrimônio cultural/patrimônio da União/ regularização fundiária: função social da propriedade privada e pública. Valores ambientais não são intrinsecamente superiores a valores de moradia, e vice-versa, ambos têm a mesma raiz constitucional. O Código Florestal não vale mais do que o Estatuto da Cidade ou do que o Decreto-Lei nº 25/37 (que criou o Tombamento) — e vice-versa. Ainda não existe uma política de estado que reconheça a noção da função social da propriedade pública da União. Em 2003, o Ministério das Cidades tentou em vão levar adiante essa discussão. A SPU/Ministério do Planejamento tentou romper com a visão pecuniária que sempre orientou sua ação, passando a afirmar a função social de certos bens públicos para fins de regularização de assentamentos através da Cuem. Foi nesse contexto que a SPU se posicionou favorável ao reconhecimento dos direitos dos moradores do Horto, chegando a contratar um ótimo projeto de regularização fundiária feito pela UFRJ, até que a situação explodisse politicamente.

No que diz respeito ao conflito entre regularização fundiária/direito de moradia e meio ambiente, a lei é clara. Até a CF-1988 e especialmente a MP nº 2.220/2001, como se tratava de ação discricionária as políticas públicas e sentenças judiciais que determinavam a remoção de ocupantes por qualquer razão (inclusive ambiental) não tinham qualquer compromisso com a necessidade de se encontrar uma solução para a moradia dos pobres. "Removam-se", diziam, e ficava por isso mesmo. Na medida em que a lei passou a reconhecer o direito subjetivo dos ocupantes à moradia, a ação do poder público não pode mais desconsiderar esse direito e as políticas públicas têm que levá-lo em conta. Se em uma mesma situação valores de "preservação ambiental" e de "moradia de interesse social" estiverem envolvidos, esforços têm que ser feitos para encontrar um equilíbrio entre eles — equilíbrio pragmático, recusando situações idealizadas e recusando situações inaceitáveis, e procurando soluções possíveis. Na impossibilidade dessa convivência, se o "valor moradia" tiver que prevalecer, trata-se de buscar medidas que compensem e mitiguem os danos ambientais. Se o "valor ambiental" tiver que prevalecer, os direitos de moradia continuam existindo para serem exercidos em outros lugares através de processos negociados. Remoção não é o princípio geral da política pública, pelo contrário, a permanência no local é o princípio geral; a ordem jurídica aceita a remoção em caráter excepcional, desde que soluções aceitáveis sejam negociadas. A questão é definir critérios e processos decisórios para que isso possa ser feito.

A prática generalizada de remoções no Rio de Janeiro não tem levado em conta esses direitos fundiários dos ocupantes. Os valores ínfimos pagos a título de "cheque-despejo" ou "aluguel social" não possibilitam a relocalização das comunidades em condições comparáveis. No cálculo desses valores, as administrações não estão levando em conta o valor da terra — se o estivessem fazendo, teriam que repensar a viabilidade financeira das enormes intervenções que têm sido feitas às custas dos direitos dos pobres. O desafio é de duas ordens: definir os critérios que permitam a aferição da medida e das formas da convivência do "ambiental” com o "social" levando em conta as situações jurídicas distintas; e criar os adequados processos decisórios interministeriais e com participação dos grupos afetados. Essa discussão complexa requer uma visão articulada do problema e não pode ser tratada da maneira puramente ideológica.

No caso do Horto, dado o tempo de ocupação, os estudos já feitos sobre as possibilidades da regularização, bem como as estratégias de mitigação do dano ambiental já em prática ou de possível aplicação, não há como defender a posição que propõe a remoção de todos os moradores. O desdobramento mais positivo aconteceu recentemente, por conta da pressão das comunidades: a área foi finalmente classificada como Zona Especial de Interesse Social (Zeis) pelo município do Rio de Janeiro, indicando a intenção de sua regularização. Se o município e o estado podem contribuir para a regularização urbanística e ambiental da área, cabe ao governo federal especialmente através da LF nº 13.465/2017 promover sua regularização jurídica. Um ótimo antecedente foi a regularização pelo Estado do Rio Grande do Sul de um assentamento dentro do Jardim Botânico em Porto Alegre.

A remoção das famílias significaria o fracasso do governo federal na construção de uma fórmula jurídico-política que proponha um equilíbrio possível entre os princípios constitucionais e leis federais que tratam da preservação ambiental, da proteção do patrimônio cultural e da gestão do patrimônio público, com os princípios e leis que reconhecem o direito social de moradia mesmo em áreas de propriedade pública e que determinam o direito coletivo à regularização fundiária de assentamentos informais consolidados mesmo em áreas de interesse ambiental e cultural. O processo decisório tem sido vergonhoso: todos os órgãos do governo federal cederam às pressões das preconceituosas elites cariocas, da manipuladora Rede Globo e de grupos ambientalistas intransigentes e insensíveis às questões sociais da moradia. O Ministério do Meio Ambiente tem sido incapaz de coordenar um processo democrático de pactuação entre os interesses divergentes e de incorporar a dimensão dos direitos de moradia e da regularização fundiária em seu discurso ambiental seletivo, e não contestou a existência de áreas ocupadas nos anos 1990 por grupos de elites que assim não estão ameaçadas de remoção. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) depois de proceder tardiamente à redemarcação da área do perímetro tombado inicialmente se manifestou favorável à permanência de mais de 300 das famílias, para depois acatar silenciosamente a decisão de remoção das mais de 500 famílias, tendo também deixado de questionar tanto a permanência dos condomínios ricos, quanto as intervenções dentro da área tombada que têm sido feitas pelo próprio IJB.

Tem sido vergonhosa a ação do Poder Judiciário que em ações de reintegração de posse iniciadas em contexto jurídico já superado determinou a remoção das comunidades pobres, mas permitiu a permanência dos condomínios. O TCU interferiu nessa discussão para atender as pressões dos grupos poderosos que têm acesso a esse órgão obscuro, fazendo uso de um discurso jurídico antiquado por não incorporar os elementos da nova ordem jurídico-urbanística, e também aceitou sem questionar a sentença que possibilitou a permanência dos ricos. A SPU se posicionou favoravelmente à permanência das comunidades à luz da nova legislação, assim mudando a orientação do órgão no tratamento da questão no contexto das ações de reintegração da posse iniciadas no começo dos anos 1980; contudo, depois de fazer um trabalho de levantamento jurídico e socioeconômico das áreas e comunidades e depois de reconhecer os direitos das comunidades, perdeu a queda de braço e acabou acatando silenciosamente a decisão de remoção das famílias, sem enfrentar a permanência dos ricos que vivem a uns meros 400 metros de distância. O Ministério das Cidades que era responsável pelo reconhecimento do direito social de moradia e da regularização fundiária não apareceu ao longo desse processo, deixando sem representação as questões urbanísticas e sociais. A mesma AGU que facilitou a entrega do patrimônio da União em áreas de preservação para políticos influentes adotou uma posição conservadora para determinar a reintegração de posse e tampouco enfrentou a permanência dos ricos na mesma área. Somente a resistência renovada das comunidades pode mudar os rumos desse processo que se caracterizou pela utilização sistemática de dois pesos e duas medidas pelo governo federal, que fez uma utilização seletiva e ideológica da ordem jurídica para determinar a remoção dos pobres ao mesmo tempo em que fecha os olhos para a permanência dos ricos. A remoção das famílias do Horto nos envergonharia a todos.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!