Diário de Classe

Totem, tabu e democracia em tempos de velocidade pós-moderna

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12 de novembro de 2022, 8h00

Recentemente, nestes mesmos privilegiados espaços da ConJur, o professor Lenio Streck (aqui) recorreu ao bom e velho Freud para desvelar — e alertar sobre — os sombrios movimentos que antecederam o segundo turno das eleições, agudizados, como muito já se previa, no pós-pleito. Com certeira menção ao conhecidíssimo Psicologia das Massas e Análise do Eu, encontrou o exato diagnóstico para as insistentes manifestações assentadas na falsa premissa a associar a democracia e a irrestrita vontade da maioria. Sentenciou:

"A formação do discurso [que incita tais mobilizações] foi tomada por agrupamentos de egos vivendo em pequenos rebanhos. Juntando esses grupos (redes sociais, hoje) e pela velocidade pós-moderna, temos o efeito rebanho. Manada. Já não há opinião pública. Há apenas a opinião narrada."

Na mosca. Cavucando num passado nem tão distante assim, tal como se viu na Europa na primeira metade do século XX, esses agrupamentos egoicos bem denunciados procuram, na divergência, justamente a homogeneidade de um discurso que faz do ódio uma forma de política. Nada de novo no front, diriam aqueles que, olhando no retrovisor da História, sabem que a democracia não elimina o poder. Claro. Não há como discordar. Mas não é demais lembrar que esse mesmo ambiente conflitivo, nas democracias consolidadas, estabelece regras. E aí o pai da psicanálise volta à cena, mas com outra obra: Totem e Tabu, originalmente publicada entre 1912 e 1913 na forma de quatro artigos (O Horror do Incesto, Tabu e Ambivalência Emocional, Animismo, Mágica e a Onipotência dos Pensamentos e O Retorno do Totenismo na Infância).

Essa interlocução entre a psicanálise — ou a antropologia?! — freudiana e a democracia pode ser bem lida nas entrelinhas do debate proposto pelo professor emérito do Laboratoire de Changement Social da Universidade Paris VII, Eugène Enriquez. No seu Da Horda ao Estado — Psicanálise do Vínculo Social, publicado no Brasil pela Jorge Zaar Editor em 1990, o intelectual francês projeta justamente no mito freudiano os alicerces para o surgimento da civilização.

Na sua análise, o justo contraponto da barbárie nasce, claro, como o produto do conflito contido na relação entre o pai-tirano, senhor absoluto de todas as coisas, e os irmãos, oprimidos pela onipotência paterna. De acordo com a narrativa freudiana, os irmãos, ao se reconhecerem na igual condição de submissão e impotência diante do poder paterno, tramam, em conluio, a sua morte.

O assassinato da figura opressora, considerado aqui como o momento seminal do social, é a gênese da sociedade: os componentes do grupo – os irmãos – diante da mesma condição de impotência, submissão e opressão, se reconhecem como iguais, com necessidades e objetivos semelhantes. Entretanto, a morte do pai-tirano desencadeia um ciclo em torno da conquista e da manutenção do poder. Afinal, o assassinato tramado pelos irmãos põe abaixo a figura do poder, mas não elimina o lugar do poder, assumido pelos próprios assassinos. Daí decorre a necessidade de um pacto, voltado à proibição do assassinato, do conflito em si. É a partir do pacto, portanto, que se permite a manutenção do poder, agora compartilhado horizontalmente pelos irmãos.

Essa mesma metáfora a informar paradigmas, lida a partir da psicanálise freudiana, também pode ser bem observada a partir da filosofia da linguagem de Wittgenstein. Se uma comunidade política convenciona um jogo de linguagem voltado a instituir uma forma de vida, pressupõe-se, por isso, que todos participem da prática pública que, a partir dela, institui o social. Afinal, essa igualdade, que se estabelece a partir do compartilhamento do poder, só dota a linguagem de sentido ao também partilhar o poder entre os indivíduos que compõem a comunidade política. A linguagem é pública justamente a partir dessa circularidade, responsável por manter o costume que a sustenta, entre todos, como produtora de sentido.

Assim, como o leitor mais atento pôde perceber, tanto o pacto freudiano quanto o jogo de linguagem wittgensteiniano associam-se à às cláusulas pétreas da Constituição. Ou seja, informam outro pacto e outro jogo – esses, em nada metafóricos! –, sustentados justamente na imposição de limites a eventuais maiorias e respeito a regras estabelecidas. Assim como os irmãos do mito freudiano, não podemos fazer o que bem desejamos irrestritamente, sob pena não apenas de dissolução do grupo, mas, mais que isso, de aniquilação dos indivíduos do próprio grupo. Não à toa, a democracia é remédio contra maiorias, e a política, como campo eminentemente conflitivo, adjetiva os opostos como adversários — e não como inimigos.

Esse é o ponto, conhecido e replicado. Já o alarde desses tempos, a seu turno, lembra que se a vontade de poder também é uma característica intrínseca do sujeito que habita o último princípio epocal da modernidade, esse mesmo indivíduo, em boa medida protagonista de uma certa crise antropológica, ganha força em tempos hiperconectados. Longe das romantizações típicas de um passado recente, as redes não são as ágoras high-tech, menos ainda o indiscutível canal para colocar transparentemente o poder público em público, alusivamente a uma das promessas não cumpridas elencadas por Bobbio. Vai negativamente além. Longe da idealidade, as tais ágoras formaram o abrigo ideal àquele sujeito da modernidade que, no limite, não mais assujeita o mundo a partir de suas subjetivas cosmovisões, mas, sim, de suas muito íntimas vontades em ligação direta com pretensas lideranças, por sua vez, ciosas dos dividendos políticos ofertados pelo desvelar do sentimento nacional.

Como se vê, nessa engrenagem não apenas cada vez mais possível, mas também mais robusta no avançar do século XX, a estrutura política sedimentada nos partidos e seus ideários plurais e representativos vai pouco a pouco desfazendo-se. Inclusive institucionalmente. Contudo, não percamos de vista: o esfacelamento dessa arquitetura não significa afirmar a aniquilação do próprio poder. A democracia horizontaliza — mas não elimina — esse mesmo poder.

Isso significa que o enferrujamento das siglas — os núcleos de poder a projetar alternância nas democracias — pressupõe sua substituição: saem da arena os partidos como entidades representativas, e entram rostos como a encarnação desse pretensioso sentimento nacional formado não apenas pela voz das ruas, mas, sobretudo por uma contemporânea voz das redes.

Como lidar com isso?

A questão – a procurar respostas institucionalizadas e institucionalizáveis –, é a tarefa que se impõe, hoje, para manter não apenas o jogo de linguagem instituído em 1988 como, no mais, o pacto que institui civilizacionais cláusulas pétreas a horizontalizar o poder.

Aos eventualmente interessados nas aproximações deste texto, ver:

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

COPELLI, Giancarlo Montagner. Construções entre filosofia da linguagem e Teoria do Estado: o Estado Social como Estado de Direito e seus desafios no Brasil. Tese de Doutorado, 2018.

ENRIQUEZ, Eugène. Da Horda ao Estado: Psicanálise do vínculo social. Tradução de Teresa Cristina Carreteiro e Jacyara Nasciutti. Rio de Janeiro: Jorge Zaar Editor, 1990.

FREUD, Sigmund. Totem e tabu: algumas correspondências entre a vida psíquica dos selvagens e dos neuróticos. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2013.

LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre a democracia, revolução e liberdade. Tradução de Eliane Souza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2017

WITTGENSTEIN, Ludwig Investigações Filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.

 

Autores

  • é doutor em Direito pelo programa de pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e realiza estágio pós-doutoral na mesma instituição, junto ao Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos, com bolsa Capes/PNPD.

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