Opinião

A história do Direito Penal brasileiro

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11 de novembro de 2022, 18h26

O conhecimento sobre a história do Direito Penal, mais que importante, hoje nos é essencial para compreendermos a ciência do Direito Moderno. O conhecimento da evolução histórica faz com que tenhamos a compreensão mínima de sua utilização ao longo dos tempos. César Bittencourt, falando sobre o assunto, diz que "a história do Direito Penal consiste na análise do direito repressivo de outros períodos da civilização".

Disse-nos Von Liszt que não se pode entender a história do Direito Penal, nem valorar o Direito positivo, nem determinar a direção do seu desenvolvimento futuro, se se mantêm ocultos os movimentos de toda a evolução do Direito Penal. Nisso consiste a importância de se ater a história: evitar que ela se repita.

Este artigo propõe apresentar um panorama geral da história do Direito Penal brasileiro. Fato é que ao abordarmos este tema, é costumeiro usar como ponto de partida o Direito Penal português, remontando aos antigos tempos da colônia. Contudo, há conteúdo histórico-criminológico que nos fazem crer num Direito Penal aborígine, dos tempos anteriores ao pré-descobrimento.

Embora haja controvérsia em atribuir as regras sociais aborígines status de lei, não há o que se falar que não eram normas. E, no sentido ainda mais objetivo, normas penais. Rocha Pombo, comentando sobre a história do Brasil, explica-nos que entre os povos que aqui habitavam, vigorava o direito consuetudinário, onde era comum a prática de entregar o criminoso à própria vítima — ou aos parentes dela. E, caso o delinquente fosse membro de uma outra tribo, o delito deixava de ser um crime de natureza pessoal e transformava-se em um crime de Estado.

As leis penais brasileiras pré-Portugal eram marcadas pelos critérios de punição, sendo a gravidade do delito, a justa medida de adequação à pena, de modo que os castigos ali aplicados poderiam variar de castigos corporais, provocações e até a morte.

O Brasil colonial, embora fosse sistematizado por uma lógica de Estado, conseguiu ser ainda mais bárbaro que o aborígine. Assim que o Brasil foi "descoberto" por Portugal, lá vigorava a Ordenação Afonsina, que logo foi substituída pelas Ordenações Manuelinas (1512) e que também logo foi revogada pelo Código de dom Sebastião (1569). Contudo, em termos de relevância jurídica para o Brasil, o Livro V das Ordenações Filipinas, foi o mais importante conjunto de leis criminais, pois mais tarde veio a se tornar o nosso primeiro Código Penal.

Marcada pela característica inquisitorial tardia da idade média, as Ordenações Filipinas visavam coibir a conduta criminosa através da imposição do método do medo pelo castigo. Inclusive, no bojo do próprio código, a pena de morte poderia ser aplicada de muitos modos: a morte de forca, a precedida de torturas, a morte por fogo, etc.

A crueldade nem sempre se limitava às muitas formas de aplicabilidade da pena de morte, mas também às penas de castigo, como as de açoite, as penas de degredo para a África, mutilação das mãos, da língua, queimaduras com ferro quente, confisco, pena de infâmia, pena de multa, entre outros. A crueldade típica dos tempos da idade média se refletiu em absoluto sadismo por parte do legislador português e, por tabela, nas leis brasileiras

Um dos mais famosos e memoráveis casos da aplicação de crueldade excessiva por este código, foi o caso do Tiradentes, que acusado de crime de lesa-majestade, foi enforcado e esquartejado, tendo seus membros fincados em postes e colocados à beira das estradas, com placas de advertência que servem de aviso para que o povo fosse intimidado e não aderisse às condutas do apenado.

Importante destacar que o nosso primeiro código penal criminalizava, também,  a figura do herege e do feiticeiro, sendo a ofensa moral e o pecado confundido com crime, cujo bem jurídico à época (com o perdão do anacronismo enfático) era o da lesa-majestade, que a julgar pela reação social ante a pena, era comumente atribuído ao apenado rejeição semelhante àquela dada ao leproso, cuja infâmia se estendia por todos os parentes e descendentes.

Um dado interessante na dinâmica da pena do primeiro código penal brasileiro é a desigualdade do tratamento dado às diferentes classes sociais. O código trazia expressamente que o juiz deveria aplicar a pena conforme a gravidade do caso e a qualidade da pessoa, de modo que os nobres eram, em regra, punidos com pena de multa; enquanto aos peões e escravos ficavam reservados os castigos mais cruéis e humilhantes.

Fato é que este terrível código foi o que mais tempo durou em vigência no Brasil, tendo produzido os primeiros efeitos em 1603 até quando foi substituído pelo, agora dignamente chamado, Código Penal Brasileiro, de 1830. Foram mais de duzentos anos sob a égide de um código de leis bárbaras. Essa foi boa parte da nossa história.

Na verdade, o antigo código penal brasileiro, importado das ordenações filipinas, foi revogado por questões político-ideológicas, oriundas da precipitação política da burguesia na França, com os rumos que a revolução francesa havia tomado. Não havia, em verdade, mais espaço para um código daquela natureza, de modo que toda a Europa caminhava rumo à modernidade.

Ainda sob vigência das ordenações filipinas, grandes juristas já militavam pela necessidade de uma revolução legislativa. Um dos mais brilhantes exemplos de humanidade foi dado pelo eminente jurista Pascoal José de Melo Freire, também conhecido como "Beccaria português", que foi professor da Universidade de Coimbra.

Melo Freire executou um projeto inovador de código penal, conhecido como código de Direito Criminal Português, onde expressou as reivindicações progressistas, que talvez tenha sido o motivo pelo qual o código não foi recepcionado e não se converteu em lei em Portugal.

Tratando-se de Brasil, toda a ebulição da revolução francesa e da era napoleônica, somados ao surgimento de um novo sistema de produção, nascido do fenômeno da revolução industrial, foi em 1822 que o Brasil oficialmente declarou a independência ante Portugal.

Com a proclamação de independência surge a necessidade de se estabelecer novas leis, para substituir as antigas leis da metrópole. Assim, foi convocada a Assembleia Constituinte, em 1823, que decidiu, a contragosto de muitos, a continuar a vigorar no Brasil as leis portuguesas. Isso não agradou o povo, haja vista que regridiríamos enquanto nação independente às ordenações filipinas portuguesas, que não mais se aplicavam naquele contexto social.

Ocorre que após este fato, o império prometeu a promulgação de um novo código criminal. Para tal ofício, foram convocados dois dos maiores nomes do Direito da época: José Clemente Pereira e Bernardos de Vasconcelos, que tomaram a responsabilidade de entregar, cada um, um projeto de código criminal brasileiro. Tal proposta que, em tese, deveria ser para já, a fim de que o Brasil se tornasse completamente livre de Portugal. Contudo, o imediatismo durou sete anos, tendo sido a lei efetivamente entregue e promulgada somente em 1830.

Durante este longo período de sete anos até a efetiva promulgação do Código Criminal Brasileiro, o Brasil passou a ter a sua primeira Carta Política, em 1824, que funcionava como uma espécie de primeira Constituição brasileira, de modo que o Código Criminal Brasileiro bebeu de fonte direta da sua primeira Constituição, cumprindo uma das mais fundamentais exigências modernas, que é a harmonia sistemática das normas inseridas num sistema de validade racionalmente posto.

Importante destacar, também, que esta mesma Carta Política havia sido diretamente influenciada pela França e pelos Estados Unidos, que estavam em absoluta efervescência, tendo o legislador pátrio dedicado significativo espaço para a promulgação e enumeração dos direitos e garantias individuais, que fundamentou o código criminal que estava por vir.

Quando a Comissão Legislativa, em 1830, analisou os projetos de códigos criminais dos juristas Clemente Pereira e Bernardo de Vasconcelos, preferiram as construções elaboradas pelo último, tendo sido o Bernardo de Vasconcelos, discípulo direto do Melo Freire, em Coimbra, o idealizador do primeiro Código Penal de cunho constitucional e 100% nacional do Brasil.

O código do Bernardo de Vasconcelos, foi quase que integralmente convertido em lei. Podemos dizer, inclusive, que somente uma matéria deu margem para discussões no Parlamento: a aplicabilidade da pena de morte.

Como acima dito, Bernardo de Vasconcelos havia diplomado-se em direito pela Universidade de Coimbra e teria sido aluno de Melo Freire. Incutiram sobre ele as principais ideias liberais do seu mestre, que recebera influxo da obra de Beccaria. O dissídio sobre a aplicação ou não da pena de morte dividiu calorosos e apaixonados debates no parlamento, sendo o grupo conservador, que era a extrema maioria, favorável à aplicação do extremo suplício e o grupo liberal, contrário, embora representasse minoria.

Em verdade, venceram os conservadores. O argumento da vitória foi o da criminalidade do elemento servil, de natureza escravocrata. Entendiam os conservadores que sem a pena de morte, não se manteria a ordem entre os escravos, os quais, pelo seu teor de existência, seriam indiferentes a outros castigos senão a morte, pela própria condição existencial de escravo.

Não demorou muito e a pena de morte foi abolida do Direito Penal do império pelo próprio imperador Dom Pedro 2º, quando cometera terrível erro aplicando injustamente a pena de morte em Manoel da Mota Coqueiro, como descrito por José do Patrocínio em uma coletânea escrita para a Gazeta de Notícias.

Passando-se dois anos da promulgação do Código Criminal brasileiro, surge em 1832 o Código de Processo, também influenciado pelo liberalismo da época. Fato é que as tendências liberais incomodavam a elite brasileira, que por inspiração anti-liberal manifestou-se de modo a retirar dos juízes a faculdade do juízo de culpabilidade da conduta do agente, dando essa autoridade às forças policiais, que passavam a partir de então, julgar se o réu era ou não culpado.

Esse entendimento permaneceu durante trinta anos e somente em 1871 a determinação dos critérios de culpabilidade retornaram aos juízes em detrimento das forças de polícia. Foi também em 1871 que o código passou a introduzir na legislação punição aos crimes culposos de homicídio e lesão corporal.

Já em 1889 o Brasil decide proclamar-se uma República. Este fato também repercutiu no cenário jurídico-penal da época, de modo que embora houvesse sido um código progressista, o então código penal houvera tornado-se ultrapassado e não mais adequado àquela sociedade. Isso provocou a necessidade de um novo projeto de código criminal, agora sob a responsabilidade do jurista Baptista Pereira, a incumbência de organizar um código penal para a república, que com urgência foi promulgado apenas um ano após a proclamação. 

Ocorre que, devido a urgência, o novo código de 1890 havia sido compilado com inúmeros erros. Tais vícios foram detectados por um dos maiores nomes do direito da época, o jurista Carvalho Durão, que através de uma série de duros artigos publicados em forma de crítica ao novo código, afirmava ter sido o pior da história.

Já no início do século 20 o desembargador Virgílio de Sá Pereira, renomado penalista, recebeu do governo brasileiro a missão de elaborar um novo projeto de código penal, tendo sido em 1927 a promulgação da parte geral do código, junto à exposição de motivos. O jurista deu início a elaboração da parte especial do então novo código, mas veio a falecer durante o processo. Tal projeto foi inteiramente revisado por uma comissão de juristas composta por nomes como Evaristo de Moraes e Mário Bulhões Pedreira.

A comissão encontrou inúmeros erros teóricos do projeto de código promovido pelo Virgílio de Sá, tendo sido atribuído a outro jurista a missão de fornecer bases teóricas para um novo projeto. O jurista designado foi o professor Alcântara Machado que, nas palavras de Nelson Hungria:

"É de todo verdade que a comparação no sentido de que o projeto de Alcântara Machado está para o Código Penal como o projeto de Clóvis Beviláqua está para o Código Civil". (Conferência sob a autoria intelectual do código penal de 1940).

Alcântara Machado, na exposição dos motivos do projeto de código, expôs que o antigo projeto de Virgílio de Sá havia sido robustamente reformado. Precisou reformular-lo por completo. Não rendendo a fadiga, Alcântara Machado dedicou os seus últimos dias de vida a oferecer um trabalho belíssimo, quase artístico, que foi submetido a estudos e infinitos comentários. Este é o atual código vigente no Brasil, o Código de 1940.

A comissão de revisão, composta pelos principais nomes do direito brasileiro do século 20, tais como Narcélio de Queiroz, Nelson Hungria, Vieira Braga, Roberto Lyra e Costa e Silva fizeram as últimas modificações, adequando à lógica-dogmática alemã que surgia, já sob os auspícios do finalismo de Hans Welzel, em detrimento da antiga teoria clássica, também conhecida como teoria causal-natural, ainda sob influência da noção psicológica da culpabilidade, que entendia o elemento subjetivo do conceito material de crime como elemento da culpabilidade, tendo sido, a partir da reforma, modificado e adaptado à tipicidade, já sob influência da teoria finalista da ação.

O Código Penal de 1940 somente entrou verdadeiramente em vigor em 1942, após o devido tempo demandado para o estudo dos juristas que a partir dali passaram a aplicar o novo código já sob as novas tendências da teoria do delito da época.

O Código de 1940 foi terreno fértil para que os principais juristas se dedicassem a teorizá-lo. Nomes como Heleno Fragoso, Nelson Hungria, José Salgado Martins, Euclides Custódio Silveira, Cunha Luna, Roque Brito Alves, Vicente Sabino Júnior, Basileu Garcia, José Frederico Marques, Sady Cardoso Gusmão, Roberto Lyra, etc, todos reunidos para elaborar o melhor código penal que o país já viu.

Eis a história da nossa lei penal brasileira. Uma história tortuosa, marcada por violência, barbárie, preconceito e pelos esforços de grandes pensadores que dedicaram as suas vidas na missão de fazer, com teoria, frente a violência do Estado. O poder de punir sempre vem, num primeiro momento, pelo discurso. O discurso transforma-se em ideologia e a ideologia em barbárie.

É papel do estudioso do direito do tempo presente compreender a dimensão política do próprio ofício, sabendo que herda os méritos das grandes mentes, e que tem o dever de seguir, assim como Heitor, a travar com bravura uma guerra que sabe que está perdida.

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Referências
NORONHA, E. Magalhães. Direito penal – tomo I, Parte Geral.

GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal.

RUDÁ, Sólon, Antônio. Breve História do Direito Penal e da Criminologia.

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