Opinião

Controle público, leniência e o "multiverso" institucional anticorrupção

Autor

  • Pedro Mazalotti Teixeira

    é advogado graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) pós-graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) e mestrando em Direito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

10 de novembro de 2022, 14h07

Dentro das peculiaridades da sistemática de controle público e responsabilização de agentes administrativos e particulares pela prática de atos contra a administração pública brasileira, uma se destaca: a multiplicidade de instituições, instâncias e procedimentos independentes, com poderes, atuações e ritos diferentes, que, porém, coexistem e atuam concomitantemente na proteção ao erário.

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Não se nega que a Constituição conferiu poder de tutela e controle da gestão da coisa pública a múltiplas instituições, com o intuito de dar maior efetividade à accountability pública ou estatal, e na proteção ao erário. Também é indiscutível a relevância do combate à corrupção, que necessita de instrumentos jurídicos e práticos para ser mais eficiente [1].

Em nosso ordenamento, um mesmo ato pode ser objeto de investigação, de sanções e de ressarcimento na esfera penal (de titularidade do Ministério Público), no âmbito da improbidade administrativa (de titularidade do MP e do Ente lesado), no campo da lei anticorrupção (que, em sede administrativa e judicial, é de atribuição da pessoa jurídica de direito público prejudicada), no campo do direito administrativo sancionatório (punições disciplinares a agentes públicos e sanções a empresas que lesaram o Poder Público em licitações e contratos aplicáveis pelo próprio ente público lesado), em ações populares (qualquer cidadão) e pelos Tribunais de Contas no exercício de controle externo. Isso sem falar nas eventuais repercussões no plano fiscal, a ensejar diferentes sanções, a serem aplicadas por meio de medidas administrativas e judiciais.   

Porém, existem efeitos adversos decorrentes desse "multiverso" de controle público e responsabilização que não podem ser ignorados. A mera coexistência destas atuações ostensivas para responsabilização e ressarcimento ao erário, quando exercidas simultaneamente pelas instituições de controle existentes, já é o suficiente para causar um efeito devastador sobre as empresas e pessoas físicas de forma desproporcional e excessiva, para não dizer fatal.

Levando-se em consideração inicialmente o acordo de leniência na lei anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), destaco as excelentes contribuições de TOJAL e TAMASAUSKAS (2017) [2] à obra "Colaboração Premiada", apresentando uma análise sobre os primeiros anos de vida do instituto no Brasil. Na análise, ao mesmo tempo em que os autores citados destacam a evolução e a importância da criação legal da consensualidade no âmbito do direito sancionador, fazem um diagnóstico dos problemas identificados, principalmente em relação à necessidade de uma atuação orgânica entre as instituições e autoridades aplicadoras da lei e dos acordos de leniência [3].

O tema é relevante, pois a atuação multiagências ou multi-institucional tem efeitos ainda mais diretos quando relacionada aos acordos de leniência, e reclama uma solução para que estas instituições atuem coordenadamente, prevenindo o surgimento de múltiplos processos de investigação e responsabilização, extremamente prejudiciais não somente às empresas lenientes, como ao instituto da leniência em si.

Esta mesma questão foi debatida no âmbito do sistema de responsabilização e combate à corrupção empresarial dos Estados Unidos da América, no qual se identificou a necessidade de implementação de uma política de coordenação de penas corporativas a serem aplicadas por instituições governamentais norte americanas de jurisdições diferentes, com o intuito de evitar o piling on: fenômeno que ocorria quando as empresas norte americanas sofriam múltiplas sanções pela mesma conduta em diferentes jurisdições.

Na política americana, também se estabeleceram princípios básicos a serem observados durante a atuação simultânea de pProcuradores de jurisdições diferentes, prevendo-se, por exemplo, a necessidade de "coordenar os seus trabalhos de modo a evitar a imposição desnecessária de multas ou penalidades repetidas contra a companhia com o objetivo de obter um resultado equitativo" [4].

No Brasil, enquanto isso, o que se verificou na prática foi uma disputa entre as entidades pelo protagonismo no combate aos atos de corrupção. Não obstante a Lei Anticorrupção brasileira tenha incumbido protagonismo à Controladoria Geral da União (CGU) (artigos 8º, §2º, 9º e 16, §10, da Lei n° 12.846/2013), tanto na celebração da leniência, quanto para cobrança das verbas de indenização e ressarcimento ao erário, na prática, o Ministério Público Federal (MPF) foi quem acabou assumindo este papel, talvez em decorrência da conexão direta entre os acordos de leniência e as colaborações premiadas.

Outro fator que influencia para a atuação multi-institucional e o piling on brasileiro, é a previsão na Lei Anticorrupção quanto à necessidade de reparação integral dos danos causados ao erário, independente dos valores de ressarcimento estabelecidos em acordo de leniência (Artigo 16, §3º. "O acordo de leniência não exime a pessoa jurídica da obrigação de reparar integralmente o dano causado").

Durante a celebração de acordos de leniência no país foram feitas diversas negociações técnicas entre as pessoas jurídicas lenientes e o MPF, com o intuito de se chegar em valores suficientes para ressarcir os entes e entidades públicos afetados pelos ilícitos cometidos. No entanto, mesmo com um acordo de leniência celebrado e homologado, prevendo o valor e as condições de ressarcimento, empresas ainda foram instadas a ressarcir ao erário em procedimentos instaurados perante instituições de controle público diversas.

Isso se deu, simultaneamente, em Tomadas de Contas perante o TCU, em procedimentos administrativos de responsabilização e ressarcimento perante entidades públicas autônomas (Caixa Econômica, BNDES e Petrobrás, principalmente), em ações de improbidade administrativa e em ações populares. Na maioria destes procedimentos as empresas estão sujeitas a decisões cautelares de indisponibilidade de bens e ativos, suspensão de contratos, perda de benefícios e incentivos fiscais, entre outras medidas que, embora ainda precárias e provisórias, podem inviabilizar a continuidade de suas atividades [5] [6] [7] [8], mesmo depois da celebração de acordo de leniência, que tem na sobrevivência da empresa uma de seus objetivos práticos.

Mesmo quando diante de um acordo de leniência, frente suas características, competências e poderes, as instituições e os atores envolvidos no sistema anticorrupção apresentaram comportamentos dissonantes, trazendo insegurança jurídica ao próprio sistema.

Em conclusão, o "multiverso" de controle público e responsabilização por atos contra a administração pública necessita de uma atuação institucional coordenada e centralizada (ao invés da CGU, talvez mediante a criação de entidade pública centralizadora e autônoma) tanto para a leniência anticorrupção, quanto para o ressarcimento ao erário em si e demais implicações da Lei Anticorrupção.

A multiplicidade de instâncias, em vez de contribuir para os esforços de combate à corrupção, conspira decisivamente contra eles.


[1] Sobre a efetividade da proteção ao erário no país: FERREIRA, Viviane Pereira. "When Institutional multiplicity backfires: the battle over the jurisdiction to prosecute politicians for administrative improbity in Brazil". Revista Direito GV, v. 17, nº 2. 2, 2021.

[2] TOJAL, Sebastião Botto de Barros; TAMASAUSKAS, Igor Sant'Anna. "A leniência anticorrupção: primeiras aplicações, suas dificuldades e alguns horizontes para o instituto". In BOTTINI, Pierpaolo Cruz; MOURA, Maria Thereza de Assis (coords.). "Colaboração Premiada". São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 237-254.

[3] Os autores também tratam sobre o tema nestes artigos publicaods no Conjur: TOJAL, Sebastião Botto de Barros "Eficácia de acordo de leniência exige atuação orgânica entre instituições". Conjur, 2017. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-ago-21/tojal-acordo-leniencia-exige-atuacao-organica-entre-instituicoes;

e TOJAL, Sebastião Botto de Barros; TAMASAUSKAS, Igor Sant'Anna "Acordo de leniência precisa de estabilidade". Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-ago-05/tamasauskas-tojal-acordo-leniencia-estabilidade.

[4] POLILLO, Renato Romero. "Responsabilidade e corrupção". São Paulo: Editora Contracorrente, 2021. p. 142 – 143.

[5] "TCU bloqueia bens da Odebrecht e OAS em investigação sobre refinaria". (17/08/2016). Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2016/08/tcu-bloqueia-bens-da-odebrecht-e-oas-em-investigacao-sobre-refinaria.html>. Último acesso em 08/11/2022.

[6] "Advocacia-Geral da União pede que TCU bloqueie bens da JBS e seus sócios". Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-jun-21/advocacia-geral-uniao-bloqueio-bens-jbs-socios> (21/06/2017). Último acesso em 08/11/2022.

[7] "TCU bloqueia R$ 520 milhões em bens da Andrade Gutierrez". (25/04/2018). Disponível em: < https://valor.globo.com/empresas/noticia/2018/04/25/tcu-bloqueia-r-520-milhoes-em-bens-da-andrade-gutierrez.ghtml> último acesso em 08/11/2022.

[8] "MPF cobra devolução de R$ 21 bi por fraudes a favor da JBS no BNDES" (10/12/2019). Disponível em: <https://noticias.r7.com/brasil/mpf-cobra-devolucao-de-r-21-bi-por-fraudes-a-favor-da-jbs-no-bndes-29062022>. Último acesso em 08/11/2022.

Autores

  • é advogado, graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pós-graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) e em Business Law MBA pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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