Opinião

Inconstitucionalidade das regras relativas ao custeio da EC 103/2019 (parte 2)

Autor

  • Luiz Alberto dos Santos

    é advogado consultor legislativo do Senado mestre em Administração doutor em Ciências Sociais professor colaborador da Ebape/FGV e ex-subchefe de análise e acompanhamento de políticas governamentais da Casa Civil-PR (2003-2014)

8 de novembro de 2022, 6h11

Continua parte 1

Da cobrança dos aposentados sobre a parcela abaixo do teto do RGPS
A redação dada ao artigo 149 da CF pela EC 103/19, além de prever contribuições progressivas nos regimes próprios de previdência, que são por si mesmas confiscatórias, à luz da natureza desse tributo, permite que a contribuição do inativo seja aplicada sobre a parcela acima de um salário-mínimo até o teto do RGPS, além da parcela acima do teto do RGPS, que já incide desde 2004, com a EC 41/2003.

Vale lembrar, aqui, o fato de que a cobrança de contribuição de aposentados e pensionistas jamais contou com o beneplácito pleno dos Juristas. A matéria despertou, sempre, acaloradas discussões sobre a sua validade jurídica, como demonstra o debate ocorrido no STF em 2004 quando do julgamento da ADI 3.105, tendo merecido o crivo de inconstitucionalidade nos termos do voto da relatora, ministra Ellen Gracie, por acarretar bitributação.

Não obstante o STF tenha, naquele julgamento, considerado, por maioria de votos, não haver ofensa ao direito adquirido à integralidade dos proventos, ou ofensa ao ato jurídico perfeito quanto ao ato de concessão de proventos integrais, e reconhecido a possibilidade de contribuição previdenciária sobre esses proventos, em atenção aos princípios da solidariedade e do equilíbrio financeiro atuarial, Juristas de escol, como o ex-presidente da República, professor Michel Temer, defenderam tese distinta, em favor da proteção do ato jurídico perfeito, como demonstra o trecho a seguir de artigo assinado por Sua Excelência em 2003:

"O debate parte da premissa equivocada quando impõe o argumento do direito adquirido como fonte única a justificar a impossibilidade daquela cobrança. Na verdade, a razão é outra. A aposentadoria constitui ato jurídico perfeito. (…) Deve ele subsistir indene, intacto, tal como foi 'fotografado' pela ordem jurídica vigente quando se consolidou; Qualquer mudança desse ato é modificação, é violação da coisa então consolidada, tornando-a imperfeita. Assim como hoje se pretende cobrar contribuição de 11% aos inativos, poder-se-á, no futuro, fazer uma cobrança de 40% ou 50% a título de contribuição. (…) Portanto, no caso dos aposentados, não é o direito adquirido que deve ser invocado inicialmente, mas o ato jurídico perfeito da aposentadoria, do qual nasceu, secundariamente, o direito imodificável do inativo". (in Inativos e Direito Adquirido. O Globo, 16/6/2003)

Em outra ocasião, afirmou o ex-presidente da República:

"Tenho sustentado, baseado o instituto do ato jurídico perfeito, a tese da impossibilidade de tributar os atuais inativos. Disse até que a simples invocação do direito adquirido não seria suficiente para impedir a cobrança (…) O argumento do ato jurídico perfeito, entretanto, é o que impede a cobrança". (in A Constitucionalidade da Emenda. Folha de S.Paulo, 3/7/2003)

A contribuição de servidores públicos aposentados e seus pensionistas para o custeio do Regime Próprio de Previdência Social é uma aberração, sob o prisma jurídico e tributário, que somente foi aprovada pelo Congresso Nacional, em 2003, devido à enorme pressão efetuada sobre os Nobres Parlamentares.

Suas motivações, de cunho fiscal, baseavam-se no argumento de que grande parte dos servidores públicos havia se aposentado com proventos integrais, acima do teto do Regime Geral de Previdência Social, sem que houvessem contribuído pelo prazo exigido sobre essa remuneração, o que resultava em desequilíbrio atuarial e financeiro insuportável para todos os entes da Federação. Não obstante, na vigência do regime anterior à Carta de 1988, os servidores contribuíam, sim, para seus proventos, com alíquotas entre 4% e 7%, nos termos do Decreto-Lei nº 288, de 1938.

Assim, sob enorme pressão política, o Congresso Nacional autorizou essa cobrança, e o Supremo Tribunal Federal a convalidou, mas, passados mais de 18 anos de sua vigência, em lugar de ser ampliada, essa exação abusiva e anti-isonômica deveria ter sido extinta.

Abusiva porque, passados todos esses anos, os servidores aposentados e pensionistas vinham contribuído com 11% sobre a parcela que excede o teto do RGPS. Dessa forma, quem recebia R$ 10 mil mensais contribuiria com 11% sobre R$ 2.913; quem recebe R$ 15 mil, contribuiria com 11% sobre R$ 7.913,00, em valores de janeiro de 2022.

Passados esses 18 anos já se mostra confiscatória essa contribuição, pois a partir de 1993 todos os servidores na ativa passaram a contribuir com 11% sobre a totalidade da remuneração. E, assim, desde então, já se vão 29 anos, tempo que, somado ao tempo de contribuição como inativos, superará largamente o necessário para o custeio dos benefícios.

Além disso, prevê a possibilidade de que, se a cobrança sobre a parcela abaixo do teto do RGPS não for suficiente para superação de "deficit atuarial" — e, com certeza, não o será, dada a composiçao do gasto com inativos e pensionistas no RPPS — fica facultada a instituição de contribuição extraordinária, no âmbito da União, e, se aprovada a PEC 133/2019, também nos Estados, DF e Municípios, dos servidores públicos ativos, dos aposentados e dos pensionistas, que deverá ser adotada pelo prazo de até 20 anos, nos termos do §8º do artigo 9º, e implantada simultaneamente com outras medidas para equacionamento do déficit.

Estados como São Paulo foram ágeis ao passar a exigir essa cobrança, por meio de lei aprovada já em 2020, no governo de João Dória (ex-PSDB), com a alíquota variando de 12% a 14% nas aposentadorias e pensões acima de um salário mínimo. Mas, em outubro de 2022, foi aprovada o Projeto de Lei Complementar 43/2022, de iniciativa parlamentar, para afastar essa tributação. Segundo o projeto de lei aprovado, e que aguarda sanção pelo Chefe do Executivo, a cobrança deixará de ser feita a partir de 1º de janeiro de 2023.

A questão já foi enfrentada pelo STF, quando do julgamento da ADI 3.105, ao apreciar a EC 41/2003, a considerou inconstitucional por permitir a cobrança, pelos Estados e Municípios, de contribuição sobre a parcela de proventos e pensões acima de 50% do teto do Regime Geral de Previdência Social, em face da quebra de isonomia, dado que no RGPS inexiste tal tributação até o teto de benefícios. O Acórdão assim resume a decisão:

"ADI 3.105  INCONSTITUCIONALIDADE DA COBRANÇA SOBRE A PARCELA DE INATIVOS ABAIXO DO TETO DO RGPS
Inconstitucionalidade. Ação direta. Emenda Constitucional (EC nº 41/2003, artigo 4°, § único, I e Il). Servidor público. Vencimentos. Proventos de aposentadoria e pensões. Sujeição à incidência de contribuição previdenciária. Bases de cálculo diferenciadas. Arbitrariedade. Tratamento discriminatório entre servidores e pensionistas da União,  de um lado, e servidores e pensionistas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de outro. Ofensa ao princípio constitucional da isonomia tributária, que é particularização do princípio fundamental da igualdade. Ação julgada procedente para declarar inconstitucionais as expressões 'cinquenta por cento do' e 'sessenta por cento do', constante do artigo 4°, § único, 1 e li, da EC  nº 41/2003. Aplicação dos artigos 145, §1°, e 150, li, cc. artigo 5°, caput e §1°, e 60, §4°, IV, da CF, com restabelecimento do caráter geral da regra do art. 40, § 18. São inconstitucionais as expressões 'cinqüenta por cento do' e 'sessenta por cento do', constantes do § único, incisos I e li, do artigo 4° da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, e tal pronúncia restabelece o caráter geral da regra do artigo 40, §18, da Constituição da República, com a redação dada por essa mesma Emenda."

Como consignou o ministro Cezar Peluzzo em seu voto,

"Em relação às contribuições previdenciárias, o artigo 195, II, garante imunidade às aposentadorias e pensões concedidas pelo regime geral de previdência:
"Artigo 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

(…)
II   –   do trabalhador  e  dos  demais  segurados  da  previdência  social, não    incidindo    contribuição    sobre    aposentadoria    e     pensão concedidas pelo regime geral de previdência  social  de  que  trata  o artigo 201.
Este cânone, embora faça menção apenas às aposentadorias e pensões concedidas  pelo  regime  geral de  previdência,  deve ser interpretado  de forma  teleológica   e  expansiva,  para  alcançar,   no  que  sejam   compatíveis, também aquelas concedidas pelo regime dos servidores públicos, em atenção ao caráter unitário do fim público de ambos os regimes e ao princípio da isonomia".  (ADI 3.105 — voto do ministro Cezar Peluzzo).

Assim, como entendeu o STF naquela ocasião, não pode em nenhuma hipótese haver tratamento diferenciado entre contribuintes, e se não é exigida essa contribuição do RGPS, não é cabível sua imposição ao servidor aposentado e aos pensionistas.

Por sua vez, dada a composição dos quadros de pessoal dos entes federativos, que compõe uma massa fechada, em que a força de trabalho não observa obrigatoriamente o aumento da população, nem segue necessariamente o seu perfil demográfico em termos de idades ou perfis profissionais, é virtualmente impossível que não haja "déficit atuarial", quando consideradas as obrigações futuras e suas fontes de custeio específicas. Assim, estará se conferindo, na prática, a tais entes federativos uma prerrogativa ampla de sobretaxação de seus servidores ativos, aposentados e pensionistas.

A inconstitucionalidade da contribuição extraordinária para redução de déficit nos regimes próprios
Além de serem aplicadas sobre os proventos de inatividade, as alíquotas regulares poderão ser ainda mais elevadas se, nos termos propostos para o artigo 149 da CF, o ente estabelecer contribuição extraordinária, desde seja demonstrada a insuficiência da cobrança da contribuição sobre a parcela de proventos de aposentados e pensionistas acima do salário-mínimo.

Assim, inclusive no âmbito dos Estados, DF e Municípios, havendo déficit atuarial, o ente poderá instituir essa contribuição extraordinária, exclusivamente para promover seu equacionamento, por prazo determinado, observados os parâmetros para apuração da base de cálculo e definição de alíquota de contribuições fixadas em lei complementar (artigo 40, §22, X), e em conjunto com outras medidas para equacionamento dessa deficiência (artigo 149, §§ 1º-B e 1º-C).

Nos termos do §8º do artigo 9º, a contribuição extraordinária poderá ser cobrada por até 20 anos.

Se as alíquotas progressivas já configuram confisco da remuneração dos servidores, os §§1º-B e 1º-C do artigo 149 e o §8º do artigo 9º agravam mais ainda esse problema, uma vez que facultam ao governo instituir contribuição extraordinária para equacionamento de eventual déficit nos Regimes Próprios, o que poderá representar uma tributação até mesmo superior a 50% dos salários, sem mencionar os impostos indiretos.

A soma de fatores — progressividade, alíquotas elevadas e contribuição extraordinária — configura clara ofensa ao disposto no artigo 150, IV da Carta Magna, cláusula pétrea, insuscetível de mitigação mesmo por emenda à Constituição, que veda a utilização de tributo com efeito de confisco.

Ad argumentandum, a elevação da alíquota geral e uniforme dos atuais 11% para 14%, como já ocorreu em alguns Estados, ainda que estivesse a matéria sub judice, em vista de seu caráter confiscatório já reconhecido em decisões do Poder Judiciário, seria mais do que suficiente para que seja demonstrada a solidariedade  no regime próprio de previdência dos servidores, e de forma a compensar a redução de alíquotas nas faixas inferiores de renda, não sendo lícita a redução remuneratória com o fim de satisfazer a necessidade de redução de déficits, assemelhando os regimes próprios, de natureza pública e compulsória, a regimes de previdência complementar, de caráter privado e facultativo.

Se a própria progressividade e as elevadas alíquotas fixadas pelo artigo 11 da EC 103/10 já são, de per si, questionáveis à luz da vedação de confisco, ainda que se admita a hipótese, é inarredável que não se admita alíquotas elevadas, com fins confiscatórios, e menos ainda as alíquotas extraordinárias que, inclusive, poderão incidir sobre a parcela da renda abaixo do teto do RGPS em caso de "déficits atuariais".

Todas essas arguições foram apresentadas ao Supremo Tribunal Federal (STF) por meio de doze ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 6254; 6255; 6256; 6258; 6289; 6271; 6279; 6361; 6367; 6384; 6385 e 6916), que questionam as alíquotas e possibilidades de cobrança de contribuições adicionais nos termos da EC 103/2019, ajuizadas por diversas entidades e partidos políticos.

Após mais de dois anos, o Plenário Virtual do STF iniciou, em 16.09.2022 o julgamento dessas ADIs. O relator, ministro Roberto Barroso, considerou em seu voto que o déficit no setor é incontestável, com piora significativa nos últimos anos, e o pagamento de aposentadorias e pensões consome fatia relevante do Produto Interno Bruto (PIB) e do orçamento estatal, deixando poucos recursos para setores como saúde e educação. Ressaltou em seu voto a necessidade da autocontenção judicial, reconhecendo a validade da EC 103, aprovada pela maioria de três quintos de cada Casa do Congresso Nacional, e que o "princípio da solidariedade" justificaria o aumento de contribuição. Sobre a progressividade das alíquotas entendeu que a medida não caracteriza confisco, já que busca efetivar o princípio da capacidade contributiva. E afirmou que a mera previsão constitucional da possibilidade de criar a contribuição extraordinária não ofende, a priori, cláusula pétrea, mas pode vir a ser objeto de exame a lei que a institua. Sobre a aplicação da contribuição de aposentados e pensionistas sobre o valor dos proventos de aposentadoria e de pensões que supere o salário-mínimo, propõe interpretação no sentido de que a base de cálculo somente possa ser aumentada em caso de persistência comprovada de déficit previdenciário após a adoção da progressividade de alíquotas (o que, na União, já ocorreu). Quanto ao ponto, o ministro Edson Fachin divergiu do Relator e julgou parcialmente procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade do artigo 1º da EC nº 103/2019, na parte alteradora dos parágrafos 1º-A, 1º-B e 1º-C do artigo 149 da Constituição Federal. O julgamento foi interrompido pelo pedido de vistas do ministro Ricardo Lewandowski.

O voto do relator, talvez pressionado pelas acusações de "ativismo judicial" que tem afligido a Suprema Corte, registra que o "dever de autocontenção judicial" determina uma "deferência" à decisão do Legislativo, dado que "as questões abrangidas pela reforma previdenciária são divisivas, de difícil obtenção de consenso". Assim, afirma o voto que "a cautela e deferência próprias da jurisdição constitucional acentuam-se aqui pelo fato de se tratar de uma emenda à Constituição, cuja aprovação tem o batismo da maioria de três quintos de cada Casa do Congresso Nacional" e, ademais, "a intervenção do Poder Judiciário deve ter em conta os limites impostos por sua capacidade institucional e pelos efeitos sistêmicos que as decisões judiciais podem produzir nessa matéria". Aponta que "a população brasileira está vivendo mais" e que "o déficit previdenciário é incontestável e teve piora significativa nos últimos anos", asseverando que "reformas na Previdência Social que reduzam o endividamento público podem ter impactos macroeconômicos positivos, como o estímulo ao consumo e à produção".

Trata-se, sobretudo, de argumentos políticos e não jurídicos, e que somente à luz da chamada "análise econômica do Direito" podem ser acatados. Contudo, lastreada em ideias e conceitos mais próximos do ideário neoliberal, a sua aplicação de forma ampla não se coaduna com os objetivos centrais da Carta de 1988 e seus princípios, servindo, antes, à sua nulificação.

 O STF, guardião da Constituição e dos seus princípios, como os da vedação do confisco tributário e do retrocesso social, tem um papel fundamental e a enorme responsabilidade de não se deixar seduzir ou enganar pelo discurso fiscalista que, desde 2019, permeou todo o debate sobre a previdência no Brasil, e assegurar a prevalência das garantias constitucionais contra tais excessos.

A imposição desse confisco e a ameaça de sobretaxação ainda maior tem sido fator relevante para levar um maior número de servidores a optar pelo regime de previdência complementar, ou apenas pela sujeição ao teto de benefícios e contribuição do RGPS, abrindo mão do direito à aposentadoria integral e à paridade entre ativos e inativos. Aqueles, que, por terem ingressado no serviço público até a vigência da EC 41/2003, fariam jus  aos direitos com base em regras de transição, migrarem para o novo sistema, contam com as garantias "legais" de não incidência de contribuição previdenciária sobre o "benefício especial" assegurado pela Lei nº 12.618, de 2012. Todavia, mesmo essa garantia é de natureza meramente legal e não constitucional, e não é protegida, sequer, pela natureza indenizatória do benefício especial, mas decorre do reconhecimento, por pareceres jurídicos, de que teria natureza "compensatória", e não previdenciária. Contudo, para quem ignora os limites constitucionais que devem reger a ordem tributária, o que representa uma garantia dessa ordem, que pode ser afastada facilmente por meio de novas interpretações de órgãos jurídicos?

Trata-se de um conjunto de agressões aos princípios da ordem tributária e da proteção do contribuinte contra o excesso de exação que não podem ser validados pelo Poder Judiciário, sob pena de abalo irremediável aos alicerces do Estado democrático de Direito, verdadeira "derrama" que penaliza quem vive da renda do seu trabalho, ou se acha em gozo de aposentadoria ou pensão, e não os donos do capital, que detém elevada parcela da renda nacional.

Autores

  • é doutor em Ciência Sociais, mestre em Administração, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, advogado, consultor Legislativo do Senado Federal, professor Colaborador da EBAPE/FGV, sócio da “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”.

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