Opinião

Princípios de interpretação constitucional (parte 1)

Autor

  • Reis Friede

    é desembargador federal diretor-geral da Escola de Magistratura Federal da 2ª Região (biênio 2023/25) ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21) mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

7 de novembro de 2022, 6h30

1. Introdução
O objetivo da denominada hermenêutica constitucional cinge-se ao estudo e à sistematização dos processos aplicáveis no âmbito da Constituição para determinar, sobretudo, o sentido e o alcance das normas constitucionais de conteúdo político-jurídico. Não obstante alguns autores entenderem como termos sinônimos, o vocábulo hermenêutica, em essência, distingue-se do termo interpretação. Hermenêutica é, em última análise, a ciência que fornece a técnica e, acima de tudo, os princípios basilares segundo os quais o operador do Direito (magistrados, membros do Ministério Público, advogados, defensores, delegados de polícia) poderá apreender o verdadeiro sentido (jurídico-político) da norma constitucional sob exame. Interpretação, por sua vez, consiste unicamente em desvendar o real significado do regramento normativo ínsito na Constituição, tema que será objeto do presente artigo.

2. Interpretação constitucional
Segundo BARROSO (2011, p. 292), a interpretação jurídica "consiste na atividade de revelar ou atribuir sentido a textos ou outros elementos normativos (como princípios implícitos, costumes, precedentes), notadamente para o fim de solucionar problemas". Assim, toda e qualquer norma jurídica deve ser interpretada através dos critérios hermenêuticos que, em essência, possuem um relativo cunho de generalidade. Ocorre, entretanto, que as normas constitucionais, de forma diversa dos demais regramentos normativos, não possuem um exclusivo conteúdo jurídico, exatamente por se tratar a Constituição de um texto com nítida feição política, sendo válido concluir que os problemas de interpretação constitucional, em certa medida, são mais amplos e complexos do que aqueles afetos à lei comum, até mesmo porque, sob certa ótica, também repercutem sobre todo o ordenamento jurídico.

"Os problemas da interpretação constitucional são mais amplos do que aqueles da lei comum, pois repercutem em todo o Ordenamento jurídico. Segundo HÉCTOR FIX-ZAMUDIO, a interpretação dos dispositivos constitucionais requer por parte do intérprete ou aplicador, particular sensibilidade que permite captar a essência, penetrar na profundidade e compreender a orientação das disposições fundamentais, tendo em conta as condições sociais, econômicas e políticas existentes no momento em que se pretende chegar ao sentido dos preceitos supremos […]. Os diversos conceitos de Constituição, a natureza específica das disposições fundamentais que estabelecem regras de conduta de caráter supremo e que servem de fundamento e base para as outras normas do Ordenamento Jurídico, contribuem para as diferenças entre a interpretação jurídica ordinária e a constitucional." (OLIVEIRA, 1979, p. 54)

Por essa específica razão, a interpretação dos dispositivos constitucionais demanda um amplo conhecimento não só dos princípios norteadores da hermenêutica constitucional (na qualidade de autênticos princípios regentes do sistema de valoração político-jurídica do Texto Constitucional), assim como dos denominados preceitos constitucionais presentes no âmbito da normatização sistêmica da Constituição. Ademais, cumpre consignar que as regras básicas de interpretação das leis infraconstitucionais são igualmente fundamentais no deslinde da correta exegese do texto constitucional.

"Para a boa interpretação constitucional é preciso verificar, no interior do sistema, quais as normas que foram prestigiadas pelo legislador constituinte ao ponto de convertê-las em princípios regentes desse sistema de valoração. Impende examinar como o Constituinte posicionou determinados preceitos constitucionais. Alcançada, exegeticamente, essa valoração, é que teremos os princípios. Estes, como assinala CELSO BANDEIRA DE MELLO, são mais do que normas, servindo como vetores para soluções interpretativas. De modo que é preciso, para tal, conhecer cada sistema normativo.

No nosso, ressaltam o princípio federativo; o do voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias individuais. Essa saliência é extraída do art. 60, § 4o, do Texto Constitucional, que impede emenda tendente a abolir tais princípios.

Por isso, a interpretação de uma norma constitucional levará em conta todo o sistema, tal como positivado, dando-se ênfase, porém, para os princípios que foram valorizados pelo Constituinte. Também não se pode deixar de verificar qual o sentido que o Constituinte atribui às palavras do texto constitucional, perquirição que só é possível pelo exame do todo normativo, após a correta apreensão da principiologia que ampara aquela palavra." (TEMER, 1989, p. 25-26)

De fato, a tarefa do intérprete é buscar o sentido e o alcance da norma jurídica expressa no texto legal que a veicula. Para tanto, é necessário que seja reconstituído o pensamento legislativo de forma objetiva, desapaixonada e equilibrada, cabendo ao intérprete manter-se sempre fiel à essência da lei.

Interpretar não é declarar o sentido histórico já inexistente na lei, mas aquilo que seja imanente e vivo, muitas vezes expresso em metáforas, que se esclarece à medida que é colocado em conexão com outras normas. Na interpretação, o jurista deve ter sempre em mente o resultado prático que a lei visa atingir e os próprios princípios constitucionais fundamentais. Decerto, o objetivo da interpretação da lei é exatamente o de desentranhar o sentido atual da norma jurídica, que nem sempre será o mesmo da época em que a lei foi promulgada. Todavia, tal ato interpretativo não pode ser levado a extremos, chegando ao cúmulo de transformar o intérprete em legislador, sem a necessária legitimidade. De qualquer forma, a interpretação constitucional, particularizada no universo da interpretação jurídica, engloba uma série de princípios, os quais serão tratados nos itens seguintes.

3. Princípios de Interpretação Constitucional
A doutrina e a jurisprudência aludem aos seguintes princípios de interpretação constitucional: princípio da unidade da Constituição, princípio da concordância prática ou harmonização, princípio do efeito integrador, princípio da força normativa, princípio da máxima efetividade ou eficiência e princípio da justeza ou da conformidade (exatidão ou correção) funcional.

3.1. Princípio da Unidade da Constituição
O princípio da unidade da Constituição, como a própria denominação sugere, preconiza que os dispositivos constitucionais devem ser analisados não de forma isolada, mas enquanto integrantes de um dado sistema unitário de regras e princípios. Demonstrando a aplicação concreta do princípio em epígrafe, transcreve-se o seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal:

"Os postulados que informam a teoria do Ordenamento Jurídico e que lhe dão o necessário substrato doutrinário assentam-se na premissa fundamental de que o sistema de Direito Positivo, além de caracterizar uma unidade institucional, constitui um complexo de normas que devem manter entre si um vínculo de essencial coerência.

O Ato das Disposições Transitórias, promulgado em 1988 pelo legislador constituinte, qualifica-se, juridicamente, como um estatuto de índole constitucional. A estrutura normativa que nele se acha consubstanciada ostenta, em consequência, a rigidez peculiar às regras inscritas no texto básico da Lei Fundamental da República. Disso decorre o reconhecimento de que inexistem, entre as normas inscritas no ADCT e os preceitos constantes da Carta Política, quaisquer desníveis ou desigualdades quanto à intensidade de sua eficácia ou à prevalência de sua autoridade. Situam-se, ambos, no mais elevado grau de positividade jurídica, impondo-se, no plano do ordenamento estatal, enquanto categorias normativas subordinantes, à observância compulsória de todos, especialmente dos órgãos que integram o aparelho de Estado.

Inexiste qualquer relação de antinomia real ou insuperável entre a norma inscrita no art. 33 do ADCT e os postulados da isonomia, da justa indenização, do direito adquirido e do pagamento mediante precatórios, consagrados pelas disposições permanentes da Constituição da República, eis que todas essas cláusulas normativas, inclusive aquelas de índole transitória, ostentam grau idêntico de eficácia e de autoridade jurídicas.

O preceito consubstanciado no art. 33 do ADCT – somente inaplicável aos créditos de natureza alimentar – compreende todos os precatórios judiciais pendentes de pagamento em 05.10.88, inclusive aqueles relativos a valores decorrentes de desapropriações efetivadas pelo Poder Público" (STF, 1ª Turma, Recurso Extraordinário nº 160.486/SP, rel. min. CELSO DE MELLO, julgamento em 11/10/1994).

Da leitura do julgado acima nota-se que a Corte Suprema, com base no princípio da unidade da Constituição, afastou a existência de qualquer hierarquia entre as normas que integram o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) e as que se encontram no corpo do Texto Magno.

3.2. Princípio da Concordância Prática ou Harmonização
Objetiva-se, através princípio da concordância prática, harmonizar os bens jurídicos constitucionalmente tutelados, evitando-se, diante de eventual situação de conflito, o sacrifício de um deles. Com efeito, deve o intérprete, em casos assim, buscar uma solução que viabilize a realização de todos os bens jurídicos envolvidos e, ao mesmo tempo, adotar uma postura interpretativa que não acarrete a negação de nenhum deles.

3.3. Princípio do Efeito Integrador
Segundo o princípio do efeito integrador, quando da resolução de problemas jurídico-constitucionais, o operador do Direito deve priorizar soluções que conduzam à integração social e à unidade política. Afinal, a Constituição, além de estabelecer uma determinada ordem jurídica, necessita produzir e manter a coesão sociopolítica, enquanto autêntico pré-requisito ou mesmo condição de viabilidade de qualquer sistema jurídico (MENDES et al, 2010, p. 178).

3.4. Princípio da Força Normativa
De acordo com a ideia central contida no princípio da força normativa, deve-se conferir às normas constitucionais, quando da solução de problemas, a máxima aplicação e efetivação. Com base em tal raciocínio, a Suprema Corte tem empregado o princípio em questão em suas decisões, mormente para afastar interpretações divergentes da Constituição, evitando-se, deste modo, o enfraquecimento de sua força normativa, exatamente a conclusão obtida quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 560.626/RS, relatado pelo ministro GILMAR MENDES:

"I. As normas relativas à prescrição e à decadência tributárias têm natureza de normas gerais de Direito Tributário, cuja disciplina é reservada à lei complementar, tanto sob a Constituição pretérita (art. 18, § 1º, da CF de 1967/69) quanto sob a Constituição atual (art. 146, III, b, da CF de 1988). Interpretação que preserva a força normativa da Constituição, que prevê disciplina homogênea, em âmbito nacional, da prescrição, decadência, obrigação e crédito tributários. Permitir regulação distinta sobre esses temas, pelos diversos entes da federação, implicaria prejuízo à vedação de tratamento desigual entre contribuintes em situação equivalente e à segurança jurídica.

II. O Código Tributário Nacional (Lei 5.172/1966), promulgado como lei ordinária e recebido como lei complementar pelas Constituições de 1967/69 e 1988, disciplina a prescrição e a decadência tributárias.
III. As contribuições, inclusive as previdenciárias, têm natureza tributária e se submetem ao regime jurídico-tributário previsto na Constituição. Interpretação do art. 149 da CF de 1988. Precedentes.
IV. Inconstitucionalidade dos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/91, por violação do art. 146, III, b, da Constituição de 1988, e do parágrafo único do art. 5º do Decreto-lei 1.569/77, em face do § 1º do art. 18 da Constituição de 1967/69.

V. São legítimos os recolhimentos efetuados nos prazos previstos nos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/91 e não impugnados antes da data de conclusão deste julgamento" (STF, Tribunal Pleno, Recurso Extraordinário nº 560.626/RS, rel. min. GILMAR MENDES, julgado em 12/6/2008).

Em outra ocasião, o Pretório Excelso entendeu que a "manutenção de decisões das instâncias ordinárias divergentes da interpretação adotada pelo STF revela-se afrontosa à força normativa da Constituição e ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional" (STF, Tribunal Pleno, Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário nº 328.812/AM, rel. min. GILMAR MENDES, julgamento em 6/3/2008).

Continua parte 2


Referências Bibliográficas

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo, 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 2011.

BRASIL. STF. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.063/DF, rel. min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgamento em 18 mai. 1994.

___________. STF. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 160.486/SP, 1ª Turma, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 11 out. 1994.

___________. STF. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.551/MG, Tribunal Pleno, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 2 abr. 2003.

___________. STF. Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário nº 328.812/AM, Tribunal Pleno, rel. min. Gilmar Mendes, julgamento em 6 mar. 2008.

___________. STF. Recurso Extraordinário nº 560.626/RS, Tribunal Pleno, rel. min. Gilmar Mendes, julgado em 12 jun. 2008.

___________. STF. Habeas Corpus nº 104.410/RS, rel. min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgamento em 6 mar. 2012.

___________. STF. Reclamação nº 4.335/AC, rel. min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgamento em 20 mar. 2014.

___________. STF. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.136/DF, Tribunal Pleno, rel. min. Gilmar Mendes, julgamento em 1 jul. 2014.

___________. STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.203/RJ, Tribunal Pleno, rel. min. Dias Toffoli, julgamento em 30 out. 2014.

___________. STF. Agravo Regimental no Recurso em Habeas Corpus nº 124.137/BA, 1ª Turma, rel. min. Luiz Fux, julgamento em 17 mai. 2016.

___________. STF. Habeas Corpus nº 124.306/RJ, 1ª Turma, voto-vista do min. Roberto Barroso, julgamento em 29 nov. 2016.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Coimbra, Almedina, 2003.

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LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2012.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010.

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional, 3ª ed., São Paulo, Método, 2009.

OLIVEIRA, José Alfredo de. Teoria da Constituição, São Paulo, Resenha Universitária, 1979.

TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional, 5a ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1989.

Autores

  • é professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) e professor honoris causa da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica (Ecemar) e professor emérito da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais do Exército (EsAO).

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