Defesa da Concorrência

Cooperação entre concorrentes: desafios para o Cade e riscos para as empresas

Autor

  • Ticiana Lima

    é doutora em Direito Econômico e Economia Política e mestre em Direito do Estado pela USP LL.M. pela Harvard University e sócia do escritório VMCA Advogados.

7 de novembro de 2022, 8h03

A tendência de aumento de instâncias de cooperação entre concorrentes, ao que tudo indica, veio para ficar, acompanhando o aumento do grau de complexidade do mundo em que vivemos. De fato, cada vez mais se coloca a necessidade, não só de se permitir, mas inclusive de facilitar a cooperação entre concorrentes. O assunto surge com força sempre que estamos diante de temas de grande impacto coletivo como, por exemplo, a disponibilização e desenvolvimento de novas tecnologias tal como o 5G, ou ainda a necessidade de cumprir parâmetros mínimos de sustentabilidade que garantam a viabilidade da nossa vida em sociedade conforme os parâmetros da agenda ESG.

Spacca
A questão é que a cooperação entre concorrentes pode despertar preocupações. Há o risco, por exemplo, de que a cooperação limite a possibilidade ou os incentivos das empresas envolvidas competirem efetivamente, seja por reduzirem sua capacidade de tomar decisões independentes, seja por permitirem acesso a informações concorrencialmente sensíveis uma da outra, seja por fecharem o mercado para outras empresas que não participam do acordo cooperativo. Por essas e outras, esse tema se apresenta como um desafio para autoridades de defesa da concorrência ao redor do mundo, que têm buscado diferentes formas de sinalizar para o mercado quando acordos de cooperação entre concorrentes podem representar um risco da perspectiva antitruste e quando, ao contrário, são desejáveis do ponto de vista econômico. A criação de normas específicas sobre o tema, e a elaboração de guias para orientar agentes econômicos sobre situações de maior e menor risco, são algumas das iniciativas que autoridades de defesa da concorrência costumam adotar nesse sentido.

Merece destaque, por exemplo, a recente revisão feita pela Comissão Europeia tanto do seu guia com orientações sobre cooperação horizontal (horizontal cooperation guidelines) como de duas regulamentações estabelecendo isenções antitruste para casos específicos de acordos de cooperação para pesquisa e desenvolvimento e para acordos de especialização. As novas regras, que entram em vigor em janeiro de 2023, têm, entre outras coisas, o objetivo declarado de facilitar a cooperação entre concorrentes para a consecução de metas de sustentabilidade, que foram definidas de maneira a incluir não apenas questões afeitas à proteção ao meio ambiente, mas também objetivos sociais como a proteção a direitos trabalhistas e direitos humanos de forma mais ampla.

É certo que os níveis de eficácia dessas medidas podem ser bastante variados pois dependem da capacidade dessas regras e orientações de, de fato, fornecerem parâmetros capazes de permitir maior segurança jurídica na tomada de decisão pela cooperação. Ainda assim, o próprio esforço de tentar reduzir a insegurança jurídica em torno de como e quando concorrentes podem cooperar já é digno de nota. Afinal, essa insegurança jurídica muitas vezes impede empresas de cooperarem de maneira econômica e socialmente desejável.

No Brasil, ainda há um longo caminho a percorrer nesse sentido. Apesar de o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) já ter uma reconhecida atuação na edição de guias e também competência estabelecida para editar regulamentos sobre a aplicação da Lei 12.529/2011, ainda não há regulamentação nem orientação específica sobre a matéria, à exceção da Resolução 17/2016 que disciplina as hipóteses de notificação de contratos associativos.

De fato, no Brasil o debate em torno da cooperação entre concorrentes, da perspectiva da análise de condutas anticompetitivas, é inteiramente dependente da análise de precedentes do Cade. A partir da análise desses casos, é possível apreender alguns parâmetros gerais que ajudam na análise de risco de arranjos cooperativos entre concorrentes, mas esses parâmetros têm se mostrado insuficientes para garantir segurança jurídica em torno do tema.

Sabe-se, com base na jurisprudência do Cade, por exemplo, que a tendência é que acordos que não tenham como objeto apenas a restrição da concorrência sejam analisados a partir dos efeitos que podem ter no mercado. Assim, a regra geral é, portanto, que acordos de cooperação entre concorrentes sejam analisados com base na regra da razão. Contudo, mesmo com relação a esse ponto elementar, em algumas situações, como no caso da diferença entre carteis de compra e acordos de compra conjunta, a diferença nem sempre é tão nítida.

Da mesma forma, sabe-se que a apreciação dos potenciais efeitos negativos da cooperação entre concorrentes passa pela análise da participação de mercado das partes envolvidas, bem como por uma análise da existência de concorrentes efetivos ou potenciais, capazes de mitigar os riscos de que a cooperação tenha como efeito uma redução no bem-estar do consumidor. Contudo, para além da previsão de existência de posição dominante para empresas que detenham a partir de 20% de um dado mercado (um dos parâmetros mais baixos no mundo), muito pouco se sabe sobre níveis de participação que de fato disparam situações de maior risco na prática.

Na mesma linha, embora se saiba que cooperações de escopo mais amplo tendem a trazer maiores riscos que cooperações mais pontuais, e que cooperações envolvendo aspectos comerciais são mais sensíveis do que cooperações sobre aspectos apenas mais indiretamente ligados à estratégia concorrencial das empresas (como, por exemplo, no caso da distinção feita entre compartilhamento de infraestrutura ativa e infraestrutura passiva no setor de telecomunicações), é muito difícil tentar traçar, a partir da jurisprudência, safe harbors que permitam às empresas saber que a cooperação pode se dar em maior segurança.

Essa grande margem para indefinição, aliada a uma postura mais recente do Cade de se debruçar sobre arranjos cooperativos de maneira mais intensa – como fez sinalizando a possibilidade de caracterização de ilicitude de consórcios independentemente da configuração de cartel – podem acabar por colocar em xeque a decisão pela cooperação, impedindo empresas de se engajarem em cooperações economicamente desejáveis. Nesse canário, seria bastante desejável que o Cade buscasse ativamente reduzir a insegurança jurídica em torno do tema.

Enquanto isso não acontece, um caminho possível de ser explorado pelas empresas para a mitigação de riscos na cooperação entre concorrentes no Brasil é a reflexão em torno do desenho da governança desses arranjos. Por meio de regras de governança bem estabelecidas, é possível estabelecer mecanismos que reduzam, em alguma medida, os riscos de efeitos negativos no mercado. Alguns exemplos de medidas nessa linha envolvem a criação de chinese walls para impedir o acesso a informações concorrencialmente sensíveis, ou instâncias de decisão que preservem ao máximo a esfera de atuação independente entre as partes. Ainda que não sejam suficientes para blindar acordos de cooperação em caso de questionamentos, essas medidas podem ser usadas para defender a licitude dos acordos de cooperação no caso de eventuais denúncias.

Autores

  • é doutora em direito econômico e economia política e mestre em direito do Estado pela USP, LL.M. pela Harvard University e sócia de VMCA Advogados.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!