Segunda Leitura

Análise do Brasil a partir de 1960 e o papel da Constituição de 1988

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

6 de novembro de 2022, 8h05

O objetivo desta análise é avaliar como era o Brasil há 62 anos, como foram ocorrendo as mudanças estruturais sob regimes políticos diversos, a volta à democracia com a Constituição Federal de 1988 (doravante apenas CF) e seus reflexos na atual realidade brasileira. Por óbvio, trata-se de apreciação sem os rigores de uma pesquisa científica, feita com base nas notícias do jornal O Estado de S. Paulo, fundado em 1875, que tem uma linha bem definida.

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O método consistiu em acessar os exemplares do dia 4 de novembro, data em que foi feito este artigo, a partir de 1960. Não todos os anos, mas sim de quatro em quatro, um espaço de tempo razoável. O último exame é de 1988, data da vigência da CF. Ao final, uma análise dos avanços e retrocessos.

No dia 4 de novembro de 1960, a página 1 traz quase que exclusivamente notícias internacionais. Na página 3, um setor denominado Notas e Informações toma quase toda a página. Na sequência, as páginas alternam-se entre notícias internacionais, políticas, culturais, até a de nº 19, que traz reportagem sobre tema hoje muito discutido: “Amazônia: solidão verde”. Na página 20, notícia de audiência relacionada com homicídio passional, praticado por pessoa de alta posição social contra um médico. Na mesma, ao centro, reprodução, na íntegra, do regulamento do concurso para juiz substituto em Brasília, providência que certamente antecedeu o primeiro concurso no DF. Segue o jornal com notícias de esporte, amenidades, anúncios, propaganda e cultura (várias peças de teatro, como O pagador de promessas e filmes. Finalizando, um Suplemento Feminino, com nada menos do que 15 páginas.

Na mesma data, quatro anos depois, sob o período de governo militar, a edição saiu com 50 páginas. Nas duas primeiras só notícias internacionais. Na quarta, política nacional, com notícia sobre a Comissão Geral de Investigações, a temida CGI, que investigava casos de enriquecimento ilícito. Na quinta, noticiava a “IX reunião sobre florestas”, em Curitiba, com mais de 100 delegados. Na página 7, anúncio de seminário da Associação de Designers Industrial, o que mostrar que designers não é algo tão novo. Anúncios fúnebres, empregos, compra e venda e, da página 35 à 50, um forte caderno agrícola.

Em 1968 o regime entrou em confronto com grupos de guerrilha, e teve a sua fase mais radical. Talvez por esta razão o jornal não circulou. O jornal do dia seguinte não deu qualquer explicação a respeito. No dia 13 de dezembro daquele ano, foi editado o AI 5, com severas medidas restritivas, inclusive autorizando a censura nos órgãos de comunicação.

Segue o tempo, insensível aos rumos da política brasileira. Folheando as páginas do jornal de 4 de novembro de 1972, veremos na página 3 um editorial sobre segurança, não das pessoas, mas sim do regime político. Na página 12, reportagem sobre a preocupação mundial com entorpecentes e a apreensão de notas falsas em postos paulistas. E assim segue o periódico, com notícias da rotina da época, como um bairro incentivar o plantio de árvores (página 14), críticas de um historiador contra uma caravela colocada na lagoa do Taquaral em Campinas, por não ser uma réplica da nau de Cabral como afirmado (página 16) e, no futebol, anúncio de que Ademir da Guia deveria voltar ao time do Palmeiras no jogo contra o Nacional de Manaus. Total de páginas: 52.

Chega o dia 4 de novembro de 1976. A primeira página do jornal, seguindo a tradição, dava notícias internacionais. No âmbito interno, noticiava que o presidente Geisel prometia lutar para aperfeiçoar a democracia. O Corinthians perdia para o Coritiba e a Cetesb fechava a indústria produtora de papel “Irmãos Spina”, na capital paulista, por poluição do ar, mostrando que a proteção do meio ambiente entrava na agenda.

Vida que segue e no mesmo dia em 1980, saindo do foco da primeira página e aleatoriamente escolhendo a quarta, o noticiário dava apenas notícias políticas e uma matéria paga defendendo o médico legista Henry Shibata, acusado de fraudar laudos do IML em mortes de pessoas envolvidas com o Esquadrão da Morte ou embates com forças do estado. A oitava trazia notícias internacionais e a décima-nona, além de notícias da educação, decisão do ministro do Interior, Mário Andreazza, proibindo a ida do cacique xavante Mário Juruna para depor no Tribunal Russell, na Holanda, por ser um tutelado da Funai e por ter o Brasil um Judiciário independente.

Passo a 1984. A primeira página mostra o desgaste do governo militar, 20 anos após assumir os destinos da nação. Em manchete, a chamada dizia: “Derrotado, governo pretende ‘limpar o SNI”. A vitória de Tancredo Neves sobre Paulo Maluf, candidato da situação, era dada como certa e o governo não queria que os documentos sigilosos colhidos ao longo do tempo pelo serviço de informações chegassem às mãos do opositor. O fim do regime militar estava próximo. No mais, anunciando mudança dos tempos, a página 23 anuncia a prisão do mafioso siciliano Tommaso Buscetta, que promoveu a maior das delações premiadas do mundo, levando à condenação centenas de mafiosos em Palermo. Na violência urbana, um assalto a um supermercado, sem vítimas, dois homicídios, um desacato e um resgate a pessoa sequestrada em Minas Gerais, no valor de 500 milhões de cruzeiros.

E assim chegamos a 4 de novembro de 1988, sob uma nova Constituição, tendo José Sarney, um civil, na Presidência da República. A primeira página do Estadão mostrava-se mais conflituosa. Entre as notícias, estava a de greves que pararam o metrô, denúncia de nepotismo no CNPQ e a de que um cabo eleitoral atira em pichadores. Na página 40, o jornal revelava que a polícia espancava grevistas na Praça da Sé. A seção da cultura ocupava 10 páginas do caderno 2. O jornal inteiro tinha nada menos do que 74 páginas, muitas delas destinadas a anúncios comerciais.

Já se passaram décadas da vigência da nova Constituição, muitas emendas constitucionais a alteraram, governos de todas as vertentes políticas ocuparam a Presidência da República, os costumes e a forma de viver mudaram de forma significativa. Neste novo mundo, nesta nova realidade, vejamos as notícias do mesmo jornal O Estado de S. Paulo, na edição de 4 de novembro de 2022. A partir daí façamos a comparação com a realidade narrada a partir de 1960 até a atualidade.

O jornal diminuiu de tamanho, sua leitura tornou-se mais fácil, porém sua imponência viu-se diminuída. Dividido em cadernos, o A, que é o principal, tem 20 páginas; o B, Economia e Negócios, 16; o C, Cultura e Comportamento, 12; o D, Loteamentos Imobiliários, 16; e há um Guia da Faculdade, 12. Total: 76.

A edição de sexta-feira passada mostra, na primeira página, que a política internacional cedeu espaço para as notícias nacionais, talvez devidos às recentes eleições. De qualquer forma, é um fato.

No aspecto do meio ambiente, a Constituição de 1988 deu forte impulso para uma maior proteção. Mas isto não significa que antes não existiam ações. O que acontece é que os problemas ambientais eram infinitamente menores, a população e o consumo também. Nem se cogitava, por exemplo, de deslocados climáticos (migrantes dentro do próprio país), algo que o Banco Mundial, na edição de sexta-feira passada, estimou em 22,3 milhões em 2021. O tema é complexo e está na agenda internacional. O suporte dado na CF de 1988 foi, com certeza, positivo.

No tema indígenas, a Constituição promoveu significativo avanço, com dispositivos de proteção expressos nos artigos 231 e 232. A passagem ocorrida em 4 de novembro de 1980 com o Cacique Juruna, que foi o primeiro deputado federal indígena, com certeza não ocorreria hoje. No entanto, problemas graves afetando estes brasileiros, persistem. A mineração ilegal de ouro na Amazônia é um deles. E não se ouviu, a respeito, uma palavra dos candidatos à presidência da República.

No item saúde pública, a CF de 1988 promoveu avanço considerável. Ainda que os jornais pesquisados nada falem a respeito, por conhecimento próprio posso dizer que pessoas sem emprego formal, como os pescadores, nos anos 1970 ficavam absolutamente fora do sistema e, quando adoentados, condenados ao abandono. O Sistema Único de Saúde (SUS), previsto nos artigos 196-200 da CF, é um caso de sucesso.

Os jornais do passado não relatavam problemas de pessoas vivendo nas ruas. Em 1988 a CF reconheceu, no artigo 6º, vários direitos sociais e, entre eles, o de moradia. Atualmente, milhares de pessoas perambulam por vias públicas e muitas vivem embaixo de viadutos e locais semelhantes. A edição do jornal de sexta-feira passada registrou que o “País tem 15% de avanço de favelas em áreas de risco” (página A14). Houve algum avanço após a previsão na CF? Não. Houve, sim, muitos estudos. Na área do Direito são milhares de artigos a repetir romanticamente que todos têm direito à moradia. Só não dizem como fazer.

A segurança pública nunca foi o foco do Estadão. Assim, tanto no passado como agora, poucas são as notícias. O que não significa, absolutamente, que não há problemas na segurança. Na verdade, a preocupação do mundo com o crescimento do uso de drogas (tóxicos no original) era razoável. Tanto assim que, no Brasil, as organizações criminosas tomaram conta de diversas áreas dos municípios e agora de partes da Amazônia. A rotina dos brasileiros, principalmente os que vivem nos bairros mais pobres, é de medo permanente. O tema não entrou na agenda dos debates eleitorais. O artigo 144 da CF não parece ter atendido às expectativas.

No âmbito cultura, artigo 215 da CF, as edições do jornal antigas eram maiores e mais substanciosas. A edição de 1960 dedicava 15 páginas à cultura e o caderno C, que inclui comportamento, de 4 de novembro deste ano, 12. E dentro dele duas páginas abordam tema estranho à cultura e uma é coluna social.

Do que foi visto, é possível concluir que a CF de 1988 traduz o grande sonho de um Brasil melhor, procurando conciliar correntes diversas de pensamentos. Alguns se realizaram, outros não. Escrever no texto uma sucessão de direitos fundamentais não significa que eles serão cumpridos. Ordens judiciais, inclusive do STF, não são cumpridas se não tiverem base na realidade. O professor Joaquim Falcão dá bom exemplo de sonho x realidade, quando, em suas palestras, se refere ao princípio da transparência, previsto no artigo 5º, XXXIII, da CF: não basta que a transparência exista, é preciso que ela dê e mostre os resultados de sua existência.

Em suma, a pesquisa nos jornais de décadas passadas, em publicações quadrienais sempre do mesmo dia, revelam aspectos pouco conhecidos das novas gerações e dão a noção da importância da CF de 1988, mas com a ressalva de que ela não foi nem será o elixir mágico para todos os males que afligem o Brasil.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUC-PR, desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e ex-presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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