Opinião

Reflexos do sistema jurídico em PADs e sindicâncias

Autor

  • Rogério Reis Devisate

    é advogado membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias da Academia Internacional de Direito e Ética da Academia Fluminense de Letras do Instituto Federalista e da União Brasileira de Escritores presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da União Brasileira dos Agraristas Universitários (Ubau) membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ e do Ibap autor de vários artigos e do livro Grilos e Gafanhotos Grilagem e coordenador da obra Regularização Fundiária: Experiências Regionais.

4 de novembro de 2022, 7h02

A Constituição Federal deve valer mais do que as isoladas palavras ali grafadas.

Os seus mandamentos, princípios e valores hão de ser prestigiados exatamente pela sua estatura e dimensão.

Nada ali é em vão, nada é frase para inglês ver. O texto constitucional é a forma de ser do país, é a forma pela qual a nação se nos apresenta, é a sua identidade, a sua estrutura, a sua existência.

Um dos valores constitucionais absolutos é a impessoalidade, como princípio e pedra angular do sistema de Direito Administrativo-Constitucional. Está tão solidamente colocada no pilar constitucional, que o princípio da Legalidade — seja lato sensu ou stricto sensu — não sobrevive sem a Impessoalidade.

O desejo da Constituição Federal e do sistema jurídico brasileiro é o de que os atos administrativos sejam — todos — impessoais. Significa dizer que não podem ser praticados para prejudicar ou beneficiar a quem quer que seja.

O atuar administrativo, portanto, deve ser justo e legal e, para isso, deve ser impessoal. Noutras palavras: neutro!

Inquérito policial não pode, por si só, embasar a sentença de pronúncia: decisão do STJ
O Superior Tribunal de Justiça já se decidiu que o inquérito policial não pode, por si só, embasar a sentença de pronúncia.

Sob relatoria do ministro Sebastião Reis Junior, em 23/2/2021 foi julgado o HC 589.270-GO, pela 6ª Turma, tendo sido concedida a ordem em prol de réu que iria a júri popular com base, somente, nas provas coligidas durante o inquérito policial.

A decisão despronunciou o réu e revogou a sua prisão preventiva.

Da ementa, lemos:

"Todo o procedimento delineado entre os arts. 406 e 421 do Código de Processo Penal disciplina a produção probatória destinada a embasar o deslinde da primeira fase do procedimento do Tribunal do Júri.
Trata-se de arranjo legal, que busca evitar a submissão dos acusados ao Conselho de Sentença de forma temerária, não havendo razão de ser em tais exigências legais, fosse admissível a atividade inquisitorial como suficiente."

Supremo Tribunal Federal, Tema em Repercussão Geral: Constitucionalidade ou não da tramitação do inquérito com o Ministério Público, sem interveniência judicial
Ainda nessa seara, o STF, no julgamento do Recurso Extraordinário RE 660.814-MT, decide se valem e são constitucionais os procedimentos simplificados de tramitação do inquérito policial, deliberados pelo parquet, sem a interveniência do juiz. A Corte Suprema reconheceu a Repercussão Geral (Tema 1.034).

Ali não se discute se há prejuízos ou não à parte ou à defesa.

O vício, sob análise, é formal e bastante, por si só, para se o ter por nulificável, com reconheceu o ministro Ricardo Lewandowski, ao votar no sentido de se declarar a inconstitucionalidade, formal e material, dos dispositivos questionados.

Fiat lux: é de direito material a portaria que cria a comissão do PAD (que vai praticar os atos processuais)
O PAD é um tipo de ornitorrinco, já o disse Rodrigo Fernandes Machado Chaves [1]: "Se o PAD fosse um ser vivo, provavelmente seria um ornitorrinco […] no sistema judicial, uma parte imparcial se debruça sobre o processo conforme os fatos são apresentados de forma passiva […] Já o PAD se objetiva pela busca da verdade material de forma ativa da Comissão designada para sua condução" [2]

O PAD tem características comuns a vários institutos e não uma personalidade própria, clara, definida. De toda sorte, abstraindo tal circunstância, é certo que embasaria, sozinho, a decisão administrativa, punitiva ou não — e nem sempre se lembra de que sofre a incidência dos princípios da inocência e do in dubio pro reo.

A portaria inaugural e as de prorrogação revelam característica de ato material, já que alvitram a criação ou constituição da comissão processante — que praticará os atos processuais.

Nesse ponto, as portarias inaugurais guardam remotíssima semelhança com o Fiat Lux, do Gênese, o primeiro livro da Bíblia — expressão que traduz a origem à luz: "faça-se a luz, e a luz fez-se".

Aquelas com propósito de prorrogação devem, obviamente, prorrogar a anterior, que esteja vigendo — pois, se tiverem chegado ao seu termo final, terão chegado ao seu fim, de pleno direito.

Assim, não são convalidáveis portarias inaugurais ou de prorrogação que contenham vício ou sejam materialmente inexistentes, pois, como tais nulidades são de direito material e, portanto, sem natureza processual, não atraem o princípio de que não há nulidade sem prejuízo (pars de nullité sans grief).

Apenas os atos internos da comissão processante possuem natureza processual e, por isso, sofrem incidência daquele princípio processual.

Controle interno e externo da legalidade, dois momentos: sobre o ato material de constituição da comissão e sobre os atos processuais praticados pela comissão
Todo ato administrativo sujeita-se a controle, nas várias esferas de incidência das normas constitucionais e legais.

Sem nos alongar no tema, pelo limitado espaço desse artigo, convém considerar que o controle interno — via tutela ou autotutela dos atos administrativos — ou o controle externo, pelo Tribunal de Contas, Ministério Público e Poder Judiciário, em relação aos PADs, envolvem tanto os atos de constituição das comissões processantes quanto os atos processuais praticados pela trinca processante disciplinar.

Noutras palavras, dois são os distintos momentos que devem ser considerados para o controle interno e externo:

1. Ato material de constituição da comissão, por portaria(s): focando no ato administrativo-material, que cria (Fiat Lux) a comissão do PAD, que é praticado pela autoridade competente e representado pela edição da Portaria inaugural (e das de prorrogação);

2. Atos processuais, praticados pela comissão do PAD: focando nas condutas e procedimentos regrados e considerando todos os mecanismos e princípios incidentes, incluindo o in dubio pro reo e o princípio da inocência, a dosimetria, etc.

O arcabouço legal e principiológico cabível aos PADs se adequa às sindicâncias, no que couber, dada as diferenças de procedimento.

Além disso, como a administração pública não é uma força sem controle e ao gestor não se dá cheque em branco, a Constituição Cidadã de 1988, em seu artigo 37, parágrafo 4º, já inicia o regramento, fixando os cinco princípios básicos (em verdade, cometidos ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário) aplicáveis: a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência.

Conclusão
Todo ato administrativo deve ser visto a partir da norma jurídica autorizadora e esta precisa ser compreendida a partir do sistema jurídico, sendo importante a observação feita por Cristiano Carrilho Silveira de Medeiros [3], para quem, "no Brasil, o estudo dos sistemas jurídicos continua limitado a poucos pesquisadores".

A primeira tentação do intérprete é analisar a lei, isoladamente, contrariando o pensamento de Hans Kelsen, que (em livre tradução) já fixara a ideia de que é "impossível se compreender a natureza do direito se limitarmos a nossa atenção à norma isolada" [4].

Joseph Raz [5] parte para algo mais contundente e desdobra aqueles pensamentos, dizendo-nos que "a teoria do sistema jurídico é pré-requisito para qualquer definição adequada de 'lei'".

Marcelo Neves [6] nos orienta, ao dizer que "na sociedade complexa de hoje, os princípios estimulam a expressão do dissenso em torno de questões jurídicas e, ao mesmo tempo, servem à legitimação procedimental mediante a absorção do dissenso".

Por isso, numa visão sistêmica, as questões relacionadas ao PAD e à Sindicância não podem ser dissociadas do entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), no já mencionado julgamento do Recurso Extraordinário RE 660.814-MT, no qual se questiona a constitucionalidade ou não dos atos de tramitação do inquérito policial, deliberados pelo Parquet, sem a interveniência do Juiz (apreciando o teor de norma editada pela Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Mato Grosso — TJ-MT), já tendo sido reconhecida a Repercussão Geral (Tema 1.034).

Observemos que ali não se discute se há prejuízos ou não à parte ou à defesa, pois se analisa vício de nulidade formal, que basta por si só.

Sobre os PADs e Sindicâncias deve incidir o peso do Sistema Jurídico, com os reflexos, também, da já citada decisão, proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), com óbice a que o Inquérito Policial possa, isoladamente, embasar a Sentença de Pronúncia. Ao se julgar o HC 589.270-GO, em 23/2/2021, concedeu-se a ordem em Habeas Corpus, despronunciando-se o Réu e revogando-se a sua prisão preventiva.

Não há como agir com dois pesos e duas medidas, com forte rigor na esfera penal (com estrita legalidade e o Direito Penal Garantista) para controle dos feitos e da pretensão punitiva do Estado, enquanto há tendência mais porosa na instância administrativa, na ambiência do Direito Administrativo Sancionador Disciplinar.

Não é exclusividade do Direito Penal e do Direito Processual Penal o pedestal sagrado, onde estão a estrita legalidade, o princípio da inocência, a ampla defesa e o contraditório e os direitos de recorrer e de ser julgado com imparcialidade.

Tal pedestal também é comum e imanente ao Direito Administrativo e aos procedimentos administrativo-disciplinares, não só por habitarem o mesmo sistema jurídico e encontrarem amparo no mesmo texto constitucional, mas até, por mais razão, pelo fato de que — na esfera administrativa — é a autoridade administrativa que institui, por ato seu (portaria), o que haverá de ser apurado e quem fará a apuração e, decorrida esta fase, proferirá o seu julgamento.

Não há fiscalização do Ministério Público ou do Estado-Juiz sobre cada momento, seja sobre a portaria que cria a comissão do PAD ou a Sindicância, seja nos atos de natureza processual, praticados pelos respectivos colegiado ou sindicante.

Ao se cotejar esse contexto com aquele do inquérito policial, é crível que as suso referidas decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal não deixam de repercutir, no que couber, também na esfera administrativa.

 


[1] CHAVES, Rodrigo Fernando Machado. Do Loop no Processo Administrativo Disciplinar. Reflexões e propostas de aperfeiçoamento do controle interno da administração pública federal. In Direito Administrativo Sancionador Disciplinar, org. Ana Maria Rodrigues Barata, Danielly Cristina Araújo Gontijo e Flávio Henrique Unes Pereira. Rio de Janeiro. Ed. CEEJ, 2021, p. 515 e seguintes.

[2] Obra cit., p. 519.

[3] MEDEIROS, Cristiano Carrilho Silveira de. Manual de História dos Sistemas Jurídicos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. XI.

[5] RAZ, Joseph. O conceito de sistema jurídico: uma introdução à teoria dos sistemas jurídicos. Título original: The Concept of a legal system: na introduction to the theory of legal system; tradução de Maria Cecília Almeida; revisão de tradução de Marcelo Brandão Cipolla — São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012 (Biblioteca Jurídica WMF).

[6] NEVES, Marcelo. Entre e Hidra a e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. XXXVIII.

Autores

  • é advogado (RJ), membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da Ubau, membro da Comissão de Direito Agrário da OAB-RJ, defensor público (RJ) junto ao STF, STJ e TJ-RJ, associado ao Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (Ibap) e ao Instituto Federalista e autor de vários artigos e dos livros Grilos e Gafanhotos Grilagem e Poder, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilagem das Terras e da Soberania.

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